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Notas sobre Portugal
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EXPOSIÇiO KiCiOliL DO RIO DE JiMEIRO EM 1908
SECÇÃO PORTUGUESA
Notas
'" sobre PortUgal
Volume II
• • »* «
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^
LISBOA
IMPRENSA NACIONAL
1908
/
984156A
A ■■ : ■ .-x /-D
ADVERTÊNCIA PRELIMINAR
OADJUVANDO O mcu collcga António Teixeira Júdice nos
trabalhos preparatórios das Notas sobre Portugal, cou-
be-me especialmente o encargo de traçar o plano do
volume II, desde o inicio destinado á expressão esthetica da vida
e do país português. Varias razões a que no anterior volume se
allude, vieram porem difficultar e limitar a realização do primi-
tivo plano do livro. O presente volume está por isso mesmo,
como o primeiro, muito longe de ser a expressão integral a que
aspirávamos. Entre outros capitulos deixaram de nos ser envia-
dos os que se occupavam dos seguintes assunti)^ { Cerâmica Por-
tuguesa. Escultura e Pintura emPor^u^al^J Lingua Portuguesa
(sui evolução no Brasil e em i^octugai ), O Lyrismo Português.
A falta d'estes artigos faz-se viv,^»nenie ^sentir, é evidente. En-
tretanto alguns houve que, dada a natureza dos seus assuntos, foi
absolutamente necessário entregar a novos collaboradores. Refi-
ro-me aos que, devendo constituir uma como que Introducção es-
thetico-geographica ao volume ii, descreveriam O País Português,
O Povo Português, As Praias e as estações de aguas em Portugal.
VI Advertência preliminar
Sem a apresentação d'esses tres números, o 2.® volume teria de
ser adiado porventura sine die; e mais valia publicá-lo, ainda que
incompleto, desde que o seu plano se definisse.
Primitivamente dirigira-me eu ao Sr. Ramalho Ortigão e pedi-
ra-lhe que se dignasse acceitar a redacção dos citados tres artigos.
Apesar, porem, da minha insistência, o illustre escritor declinava
o encargo numa carta em que me dizia não se achar, ao tempo,
no estado de espirito necessário «para formular esse documento
de sorridente carinho, para escrever as doces e coloridas pagi-
nas que nem escrevera já, nem de modo algum poderia escrever
agora por falta de azul e de rosa em que molhar a ferrugenta
penna».
Sendo porem, como disse, absolutamente necessário dar um
successor ao Sr. Ramalho Ortigão, viu-se que não era fácil, neste
caso, como em qualquer outro, substituir a sua «ferrugenta penna» ;
e neste principalmente, attento o caracter que deviam ter esses
três capitulos e que o illustre escritor tão bem definiu, e attento
ainda o pouco tempo de que dispúnhamos. Teixeira Júdice en-
carregou-me então de resolver eu a questão, entregando-me a re-
dacção d'esses números.
Ora, ridiculo seria acceitar eu o encargo nas mesmas condi-
ções em que primitivamente o propusera. Acceitei apenas, como
uma espécie de dever, organiiar tudo quanto se referisse a esses
artigos, dentro do espirito que presidiu á elaboração do plano do
livro. Org^z;//;íírr:4'0.-teiyi)0:J4stG^.íç>plicavel ao processo por mim
adoptado para ''ar •cbô^ecSjçãfe" 'á^esiê- intento, processo que, resol-
vendo a dificuldade* â& ri^íácç^i: porque a limitava á capacidade
dos meus recursoç,.*n-^,í)^flviíiá jacceitar o terrível encargo, até
com verdadeiro prâzéí/* '••' :'•.::..:
Graças á profissão de engenheiro, viajei por quasi todo o país,
chegando a conhecê-lo na grande variedade de aspectos que só
conseguem observar os que estudam e constroem vias de commu-
nicação. Igual conhecimento adquiri dos habitantes das nossas
Advertência preliminar VII
varias províncias, com os quaes convivi e trabalhei. E, como na
nossa litteratura, após 1870, muitas paginas se occupem da pai-
sagem e do povo português, resolvi escolher de entre essas as
que mais se ajustassem á impressão que directamente recebera
do país e das nossas gentes, bem como ao caracter doesta pu-
blicação. Desde já, porem, declaro que não pretendo ter esgo-
tado a serie d'essas descrições, nem o pretenderia ainda quando
dispusesse de maior espaço do que me foi attribuido e de mais
largo tempo.
Fixo a data de 1870 de uma maneira um pouco vaga. Só de-
pois do apparecímento do naturalismo na nossa litteratura, é
que o estilo da língua portuguesa começou a especial izar-se no
sentido do assunto a tratar. Ksse aspecto que, na arte de escre-
ver, toma o principio, commum a todas as artes, do emprego ló-
gico do material, teve entre nós o seu inicio em Kça de Queiroz.
Até elle, ou não se descrevia (Camillo e, em geral, Garrett), ou
se tratava a paisagem de uma forma heráldica, ou genérica (Her-
culano, Júlio Diniz). O novo processo formal deve-se pois aos es-
critores naturalistas, e aos que se lhes seguiram, encontrando-se
portanto nas obras publicadas após a data que fixei.
Voltando, porem, a falar da solução adoptada, julgo-a talvez
mais fecunda do que se a descrição de todo o país ficasse entregue
a um só temperamento artístico, o qual, sem duvida, se revelaria
por forma desigual, pois que desigual seria a commoção nelle
despertada pelos differentes sitios ou povoações. A minha solu-
ção deve necessariamente levar, senão desde já, com certeza mais
tarde e num trabalho mais completo, á criação de uma espécie de
galeria de paisagens e quadros de género onde todas as escolas
de arte manifestem livremente os seus recursos próprios, em ex-
pressões do máximo poder ; por nos revelarem commoções deter-
minadas por affinidades de temperamento, e não productos de ar-
tifícios artísticos a cujo emprego, em certos casos, a encommenda
fatalmente leva.
VIII Advertência preliminar
Achada a solução, desejável seria poder reunir a paisagem ou
representação pictoral á paisagem litteraria; a juncção de duas
expressões de arte, presas a processos formaes tão diversos, por
certo daria dos vários assuntos uma mais completa e valiosa im-
pressão. Para isso seria, porem, necessário empregar a gravura
colorida, o que tornava sobremaneira complicado e dispendioso
o problema. Recorreu-se pois, á gravura a preto, reproduzindo a
photographia na maioria dos casos.
Fixada a parte meramente estructural dos citados artigos, devo
ainda justificar, para cada um d'elles em separado, o espirito di-
rigente ahi seguido.
Na apresentação methodica das varias Terras poriugnesas, di-
vido o país em quatro zonas principaes. Tal divisão, feita grosso
modo, á vara larga, pode sem duvida completar-se pela sub-divi-
são em zonas menores e mais especificamente caracterizadas. Pro-
cedo, porem, d'esta forma, não só por facilidade de exposição,
como também em virtude das conclusões a que se chega em outro
ponto do presente livro. Assim o Dr. Silva Telles, na sua Intro-
diicção geographica ao i.® volume, formulando uma synthese que
se me afigura abranger todas as opiniões anteriores sobre a ma-
téria, affirma:
«Portugal, no seu conjuncto, apresenta, pelos seus caracteres
geomorphologicos, o aspecto de um immenso amphitheatro irre-
gular, de SO. para NE., com o sopé meridional demasiadamente
vasto em relação á superficie hypsometrica principal. Esta cons-
tituição morphologica facilita a interpretação geographica das suas
redes hydrographicas, das grandes zonas de transito entre Portu-
gal e a Espanha e os caracteres do seu clima».
Partindo doesta synthese, divido o país nas quatro zonas prin-
cipaes, ao deante definidas não só pelos seus caracteres morpho-
logicos, pela vegetação, clima, densidade de população, etc, como
ainda pela canção popular. Para mim, de todas as expressões do
Advertência preliminar IX
folklore de uma nacionalidade qualquer, a canção é a que mais
se prende á terra e ás condições naturaes do meio physico onde
ella apparece e do qual procede immediatamente o seu caracter
estructural e expressivo.
!.• ZONA. — Constituída pela superfície hypsometrica principal do país. —
Comprehende o trapézio irregular limitado a N. pela fronteira espanhola, a L.
pelo rio Douro e ainda pela mesma fronteira, a S. pelo Tejo e, finalmente, a
O. por uma linha quebrada que, partindo de Abrantes, passa a nascente de
Thomar e Coimbra, toca em Águeda e, cortando no Porto a linha da costa ma-
rítima, se funde com esta desde ahi até Caminha. É pois formada pelas provín-
cias do Minho, Trás-os-Montes, Beiras c grande parte do Douro.
Zona de aspectos variadissimos, imprevistos, formada por terrenos primiti-
vos — archaicos e primários (granitos e schistos cristallinos).
Paisagem extremamente movimentada, por vezes atormentada; formas
amphitheatricas, declives pronunciados ; solo áspero, violento. Vegetação va-
riada e muito ríca nas terras medias e baixas, dominando o pinheiro, o car-
valho-roble de folha caduca (zona húmida), o carvalho pardo nas Beiras e a
oliveira ; nas partes altas, o castanheiro, o azinho, e ainda o sobro e a amen-
doeira; arvores diversas. Milho dominante, centeio no planalto; cultura de
médio valor, algumas vezes muito rica.
Clima variadíssimo, pontos extremos; na parte voltada ao mar grande hu-
midade, brumas; chuvas (de i:ooo a i:5oo, attingindo a 2:000 na parte mais
alta) máximas no outomno e inverno.
População a mais densa do país na zona baixa, menos de media na alta
montanha ; a mais pura e primitiva de todo o país nas montanhas beirans.
Luz geralmente metallica, luz de aço, reflectida pela mica dos granitos; por
vezes hilariante.
Lingua a mais antiga e porventura mais incorrecta de todo o país.
Canção popular variadíssima, profunda; danças vivas, alegres e rudes, ge-
ralmente caracterizadas apenas por um rythmo simples c persistente (chulas).
2.« ZONA. — Constituída por terras baixas e comprehendida entre a linha
acima indicada, de Abrantes ao Porto, e uma outra que, partindo do primeiro
doestes pontos e caminhando irregularmente, por leste de Coruche e Alcácer
do Sal, corta a da costa marítima por baixo da bacia do Sado ; e finalmente
toda a linha da costa desde ahi até ao Porto. Abrange portanto toda a Estre-
madura e uma parte do Douro.
X Advertência preliminar
Zona de pequenas ondulações e aspecto calmo, formada por terrenos se-
cundários e terciários, onde portanto abundam os calcareos, e pela maior faixa
de terrenos modernos que possuimos.
Paisagem bastante uniforme, aguas baixas no interior das terras. Vegetação
variada, em que as arvores de madeira branca e molle (choupos, salgueiros,
vimieiros) e o carvalho português de folha mais resistente põem notas caracte-
risticas. A maior cultura do país, aspectos verdejantes.
Clima temperado, suave ; chuvas de 700 a mil, máximas em janeiro.
População acima da media geral, uniformemente distribuida.
Luz quente que, em Lisboa, alegra e doira tudo (Eça de Queiroz) e parece
igualar a da Pérsia (Dieulafoy).
É a região em que a lingua portuguesa toma a feição mais harmoniosa e
correcta.
Canções e danças populares suavemente onduladas, leves de expressão.
3." ZONA. — Toda a região dos districtos alcmtejanos de Portalegre, Évora e
Beja, comprehendida entre o Tejo a N., a fronteira espanhola e o Guadiana a
L., as serras de Monchique e Caldeirão a S., a costa marítima desde a foz do
Seixe até ao limite da zona anterior, entre a foz do Sado e o Cabo de Sines, e
a linha irregular que de Abrantes levamos até este ultimo ponto.
Constituem* na terrenos archaicos e primários ; granitos, schistos cristallinos
e carbónicos. Com excepção de duas pequenas zonas montanhosas a nascente —
Marvão e Portalegre (S. Mamede), Estremoz e Serra de Ossa, e ainda alguns
oásis raros, toda a região é plana, monótona, desolada.
Paisagem extremamente ingrata, sem imprevistos ; planuras com aspecto de
stcppes, exceptuando naturalmente a citada região montanhosa dos districtos
de Portalegre e Évora. Terreno seco. Vegetação pouco importante na maior
parte da zona ; oliveiras, mas principalmente azinhos e sobros. L o país do
trigo.
Clima por vezes extremo, mas idêntico em toda a zona ; annos ha em que,
aos calores prolongados e ardentíssimos do verão, se oppóe a neve no inverno.
(Chuvas medias, entre Soo e 700, hibemaes.
Zona a menos povoada do país, inferíor a um terço da media geral.
Luz que cega, cruel.
Lingua áspera, mas pouco incorrecta.
Canção lenta, profunda, triste ; danças rudes, por vezes vivas e alegres.
4.' ZONA. —A província do Algar^•e. Num pequeno espaço, toda a variedade
de terrenos e vegetação, esta ultima por vezes excessiva.
Advertência preliminar XI
Zona cheia de imprevisto, de movimento na paisagem. Granitos, schistos,
calcareos, grés e terrenos modernos. Solo riquissimo.
Castanheiros, oliveiras, montados, mas principalmente amendoeiras, figuei-
ras, alfarrobeiras, palmeiras do esparto e arvores diversas.
Clima do mediterrâneo ; chuvas minimas, inferiores a Soo.
Luz que ri e canta (J. Barreira).
População um pouco abaixo da media geral.
Lingua incorrectíssima, formas regionaes ; cantada em excesso.
Canção viva, alegre, por vezes erótica, pouco profunda >.
Nestas quatro zonas, a i .* e 4.* de grande variedade e riqueza
de aspectos, a 2.* e 3.* de aspecto uniforme, embora uma doestas
encantadora e delicada, e a outra, a ultima, por vezes desolada
e rude, vive, como diz o Sr. Fonseca Cardoso no seu estudo An-
tropologia portuguesa, inserto no volume i, uma População notável
pela sua simplicidade e homogeneidade ethnica: «Quando olhamos
para o mappa das raças europeias de Ripley ou de Deniker, esta
população ibero-insular salienta-se como a mais dolicocephala e
homogénea da Europa nos seus caracteres somáticos». Sendo,
porem, diversas de zona para zona, por vezes até dentro da
mesma zona, as condições de solo e clima em que se encontra
essa população, diversa também ella nos apparece no caracter,
hábitos externos e costumes quando de uma região passamos para
outra.
Entretanto, até ao presente, está por fazer o estudo completo
d'essas alterações, verdadeiramente dirigido pelo espirito scienti-
fico. Fazem-se affirmações em grande parte gratuitas, paradoxaes
ou, pelo menos, precipitadas. A estatistica comparada da quasi
I O pequeno espaço de que dispomos inhibc-nos neste momento de nos
occuparmos de regiões importantissimas sob todos os aspectos, como são as
nossas ilhas da Madeira e dos Açores. Somos forçados a limitar o nosso estudo
ao continente do reino.
XII Advertência preliminar
totalidade dos factos sociaes não existe; e tudo quanto nella se
precisou, quer dentro, quer fora do país, chega a resultados que
parece carecerem confirmados por trabalhos posteriores. Entre
outros, factos ha, relacionados com o movimento de emigração e
sendo até a sua causa, que permanecem em parte desconhecidos ;
de onde resultam inexplicáveis certos aspectos d'essa questão de-
mographica. Este conjunto de circunstancias, ou enfraquece, ou
condemna muitas das syntheses sugestivas e em extremo definidas
que correm em publico, applícadas a phenomenos de uma com-
plexidade tão difficil de abarcar.
A conclusão a que chega o Dr. Silva Telles, no seu citado
trabalho, é que se me affigura encerrar o segredo de muitos fa-
ctos que essas syntheses pretendem dominar: — «A população
portuguesa é vigorosa, mas faltam-lhe neste momento instituições
sociaes que favoreçam o seu crescimento». Essa falta far-se-ha
sentir portanto em todo o modo de ser da população — menssana
in corpore sano.
O conhecimento directo que formei do povo português define-
m'o como tendo um mesmo fundo de caracter, do norte ao sul do
país, e apenas pequenas differenças em cada habitat, as quaes
desapparecem após os primeiros tempos de convivência, ou com
a mudança de região.
Na própria canção popular, de um ao outro extremo de Por-
tugal, ha um laço de parentesco, um fundo commum de caracter,
que vae desde a mais viva das danças até ao mais calmo e mys-
tico bemdito, e muito confirma o que expus. Esse fundo de
caracter, a que não podemos deixar de chamar nacional, por-
que é absolutamente diverso do da canção espanhola, revela-se
logo a partir de qualquer ponto da fronteira. A nossa canção,
pobre de harmonia, embora muito interessante pelo desenho
melódico e pelo rythmo, corresponderá, em ultima analyse, á
simpleza primitiva que a anthropologia encontra no povo por-
tuguês.
Advertência preliminar Xlll
Semelhantemente ao que dissemos acerca da descrição da pai-
sagem, e talvez até aqui com mais razão, deveria o estudo do ca-
racter do povo português ser acompanhado de gravuras represen-
tativas dos vários typos das nossas populações. Idênticos motivos
aos já expostos nos levam, porem, a limitar a illustração do nosso
artigo, apresentando quasi exclusivamente os typos das gentes
beirans da alta montanha, por pertencerem á parte mais pura da
gente ou raça portuguesa, e accusarem as maiores estaturas até
hoje verificadas entre nós. Fazemo-los acompanhar de alguns typos
da arte plástica popular por excellencia, a cerâmica, lamentando
não poder ainda documentar a evolução das suas tão lindas e va-
riadas formas através do país, com a serie aproximadamente
completa d'essas formas. O nosso trabalho reduz-se apenas a
um esboço parcial da questão tão complexa e eriçada de difi-
culdades, que não pode deixar de ser a do estudo esthetico e
ethnographico do povo português.
As Praias portuguesas fizeram em tempo objecto de uma hu-
morística e interessante publicação do Sr. Ramalho Ortigão. Hoje
todas as condições d'esses sitios se acham alteradas por innumc-
ras influencias, resultantes em geral da abertura successiva das
nossas varias linhas férreas á circulação e do aumento de popula-
ção e riqueza do país. Desde o apparecimento da citada obra,
algumas d'essas praias ganharam enormemente em importância,
outras perderam-na quasi por completo.
Mas a natureza especial doeste assunto é talvez o que mais
sensível torna a falta de uma penna leve, scintillante e espirituosa
que pusesse bem em evidencia a atmosphera encantadora das
nossas praias, a frescura inconfundível dos seus aspectos — caso
para, mais tarde e quando de maior espaço se disponha, ser no-
vamente proposto a quem possua recursos para o tratar.
As nossas Aguas mineraes que, no volume i, apparecem estu-
dadas no campo geológico pelo engenheiro Sr. António Maria da
XIV Advertência preliminar
Silva *, deveriam ser descritas ainda ahi, mas no campo da phy-
siotherapia, pelo Conselheiro Tenreiro Sarzedas, medico-inspector
do respectivo serviço official. Sem duvida, por deveres de uma
outra importante commissão de serviço, náo pôde o illustre func-
cionario enviar-nos o artigo promettido. Recorri, pois, ao seu es-
tudo — Aguas ffiinei^aes, Physiotherapia (Impressões colhidas em
missão especial) 1907, como sendo a mais completa e valiosa pu-
blicação que, sobre esse assunto, existe entre nós, para dar a
característica medica na noticia da respectiva villegiatura ao deante
apresentada e, até certo ponto, preencher a lacuna que a falta do
trabalho do Conselheiro Sarzedas foi abrir no volume i.
O terceiro artigo completa-se por um estudo de Portugal
como estação de inverno. O meu objectivo, ao redigir este capi-
tulo, foi sobretudo o de revelar o nosso pais como excepcional-
mente destinado a todas as formas de villegiatura e ao estabele-
cimento de estações de saúde de todo o género e para todas as
camadas sociaes ; e definir emfim o que se me afigura poder ser
a solução do problema do fomento português.
Já em 1900, ao organizar os quadros analyticos das nossas
aguas mineraes, quando confeccionei o catalogo da secção portu-
guesa na Exposição Universal de Paris, eu havia notado a grande
riqueza e variedade de typos que Portugal possue nesse meio
therapeutico. Hoje então, conjugando-os com os outros elementos
que vêem completar o nosso meio de villegiatura e o de thera-
peutica, mais se impõe, a meu ver, a importância que este adquire
deante das questões económicas que nos assoberbamrEnãocreio
que vá causar estranheza esta juncção do útil ao agradável,
A belleza da terra e do clima é um dos mais valiosos requisitos
a recommendar na escolha das estações de aguas.
i Artigo — Nascentes termo-mineraes de Portugal.
Advertência preliminar XV
Num conjunto de trabalhos da natureza dos que se acham
comprehendidos no presente volume, a illustração tem indubitavel-
mente uma importância capital. Procurou-se, por isso mesmo,
reunir dentro d'elle o maior numero de documentos artisticos
tendentes a esclarecer, tanto quanto possivel, os vários assuntos.
Muitos d^esses documentos estão já conhecidos e até divulgados
pelo bilhete postal. Quando recebiamos a photographia de um
caso qualquer, por vezes succedia já a conhecermos pelo bilhete
postal e, não raro, termos de preferir este á prova photogra-
phica. Entretanto muitas das nossas gravuras são completamente
inéditas e aqui devemos consignar o mais vivo agradecimento ás
pessoas que nos confiaram os originaes ao deante reproduzidos.
Em primeiro logar á Senhora D. Maria da Conceição de Lemos
Magalhães, illustre esposa do nosso amigo o Conselheiro Luis de
Magalhães e notável amadora photographica, a quem pertencem
os originaes do Vidago, Cavado, Quinta do Mosteiro, Ria de
Aveiro, Choupal, Felgueira, e outros ainda que damos em simile-
gravura e denunciam um verdadeiro e superior sentimento ariis-
tico em quem os fez, como por exemplo a onda do mar Ao norte
do Porto que disputa a primasia á celebre Onda de Courbet. Os
nossos agradecimentos ainda ás casas Biel & C" e Guedes de
Oliveira do Porto, ás Papelarias Guedes & Saraiva de Lisboa
e Borges de Coimbra, que muito graciosamente puseram á nossa
disposição as suas valiosas photographias. Ao meu illustre amigo,
o Sr. Joaquim de Vasconcellos, que consentiu em facultar-nos, da
sua enorme collecção de documentos da arte decorativa peninsular,
collecção única e de um valor incomparável, todas as illustrações
dos seus dois artigos; e a Annibal Fernandes Thomás, o biblio-
philo cujo saber iguala a mais inexcedivel modéstia, o qual nos
forneceu as gravuras e liihographias, algumas d'ellas raríssimas,
com que foi possivel illustrar, de uma forma quasi inteiramente
inédita e de excepcional valor artistico, o artigo sobre musica
do Sr. Ernesto Vieira.
XVI Advertência preliminar
Aos artistas, Srs. António Augusto Gonçalves, Roque Gameiro,
Luciano Freire e Ezequiel Pereira, a mais especial gratidão pela
offerta dos encantadores desenhos que para nós quiseram exe-
cutar e que sobremaneira enriquecem o presente volume. E a
mesma dedicamos aos nossos amigos que, das varias provincias
do reino, nos enviaram photographias interessantissimas, muitas
d'ellas também propositadamente tiradas para este volume.
Um tal conjuncto de elementos representa um inapreciável
concerto de sympathias pelo nosso trabalho. E já agora applau-
do-me pela solução achada para o organizar, porque graças a ella
julgo ter conseguido dar, do nosso país e das nossas gentes, talvez
a mais sincera, senão a melhor e mais significativa expressão es-
theiica, embora incompleta, como não pôde deixar de ser.
António Arroyo.
ciwCrSííTí
o PAÍS PORTUGUÊS
o SOLO, O CLIMA E A PAISAGEM
Minho. — A primeira impressão esthetica que eu recebi
em plena natureza foi a de uma festa pagã. No i.® de
Maio, vae já de quarenta para cincoenta annos, todo o
baixo Minho, de Caminha até ao Porto, festejava as
Maias, o Maio moço. A primavera fora naquelle anno excepcio-
nalmente doce. E as searas, ao longo da estrada real que toca
em Barcellos e Vianna, ondulavam como um mar de verdura
sob o carinho da viração e do sol radioso. A vaga era baixa,
largamente rythmada. Um ceu sem mancha e uma alegria indi-
zivel nas cousas, nos animaes e nas gentes. Flores e giestas por
toda a parte, engalanando as casas, as diligencias, as carroças,
os carros de bois, coroando as boieiras e o rapazio, communi-
cando ás cantigas e danças alegres uma harmonia luminosa de
cores ricas ^.
» Chamamos a attenção do leitor para a matéria exposta na Advertência
preliminar do presente volume, concernente á divisão do país em quatro zonas
para o estudo da sua paisagem.
3 A festa das Maias deu umas bellas paginas ao Sr. Rocha Peixoto, no seu
vol. A Terra Portuguesa, 1897.
2 O país português
Esse mesmo aspecto do campo minhoto, mas numa estação
mais avançada, descreve- o D. António da Costa, No Minho,
quando percorre a região do Lima.
Que formosíssimo lanço de terreno por onde vamos nesta margem direita.
Este parallelogrammo extenso e largo, que se interpõe entre nós e o rio, de
searas tão vastas, tão louras e tão ondulantes pela viração, bem se pode dizer
um oceano de ouro.
As searas são agora intermeadas de arvores verdejantissimas, porem dis-
persas, o que lhes dá um aspecto formoso de desalinho. As arvores do nosso
lado direito, recebendo os reflexos do sol, projectam-se para o lado esquerdo
sobre o oceano de ouro que vae entre nós e o Lima, e fícam ali como estam-
padas com todo o phantastico dos seus troncos e ramagens.
Comprehendi então como essa impressão se fixara fundamente
no meu espirito, caracterizando o campo minhoto em toda essa
zona do litoral que com-
prehende as baixas dos rios
Minho, Lima, Cavado, Ave
e Leça, apesar das man-
chas incolores, anodynas
que, sobretudo entre o
Porto e Famalicão, ladeiam
a linha férrea de onde a
onde, e mais se notam nos
pontos em que o schisto
interrompe as terras de
granito.
Esta zona, que é uma das mais visitadas do reino pela proxi-
midade em que está de Braga, de Vizella e Guimarães, fatigando
a vista pelo cruzamento de incidentes de um solo movimentado e
rude, valles acanhados e divisórias de propriedades minúsculas,
indispõe em geral contra o Minho o habitante das terras do Sul^
habituado á propriedade extensa, sem limites apparentes, do Ri-
batejo e do Alemtejo, e não o convida a visitar as encantadoras
paragens do rio Minho, do Lima, do Cavado e do Tâmega.
No campo de Vianna, diz-nos Ramalho Ortigão, a verdura da vegetação
suavisa a luz; e a agua doce do rio, serpentado e lento, poetisa a natureza
como nas regiões dos lagos.
o LEÇA EM ALFEVA
o solo, o clima e a paisagem 3
N'esta quadra do anno principalmente, na occasiâo das colheitas, quando as
ceifeiras, de mangas arregaçaças, atravessam os campos, carregadas de feixes
de cannas maduras ; quando o milho começa a aloirar asneiras, e ao longo das
planicies ou por traz dos outeiros, nos pontos onde alvejam casas ou muros de
quintas, se ouve a cantiga das esfolhadas ; o aspecto do campo ainda virente,
inundado de luz, tem o que quer que seja de uma apotheose bucólica, de um
idyllio rural, por entre cujas estrophes o rio alastra mansamente a pacificação
da agua.
A natureza parece uma larga festa em toda a bacia do Uma, fechada ao
Sul pelo biombo de montanhas que principia de leste em Lindoso, na fron-
teira hispanholn, e termina a oeste em Faro d'Anha, sobre o porto de Vianna < .
Apesar de baixa, essa região do norte tem comtudo um caracter
diverso da zona entre Vouga e Tejo; a luz é ali menos quente,
mas mais hilariante; o aspecto geral menos suave, um pouco
acido, relativamente ao d'est'outra zona, lhe chama alguém. A ditfe-
rença de latitude e de natureza do solo bastarão por certo para
explicar taes diiferenças, ainda quando a vegetação seja a
mesma.
A alegria especial d'essa região, que se mantém por vezes até
em montanhas algo elevadas, como em breve veremos, transfor-
ma-se comtudo em outras serranias minhotas, numa verdadeira
contemplação extática, solemne. E é ainda um homem do sul,
ainda D. António da Costa, que no-lo faz sentir.
Seguindo a estrada que de Vianna leva aos Arcos de Valle de
Vez, parallelamente ao Lima, abandonava o rio chegando á villa :
e tomando á esquerda, subia ao alto da serra do Extremo, fron-
teira da Galliza.
E sempre subimos.
Vae reabrindo o arvoredo da estrada, reabrindo, reabre de todo, e vemos
então, cada vez mais abaixo e cada vez aiargando-se mais, a planície que dei-
xáramos, convertida n*um immenso valle que toma uma infinidade de formas
diversamente accidentadas.
Estamos finalmente no alto da serra do Extremo. Apeamo-nos no piná-
culo.
Nos limites fronteiros, serras altas, um cortinado cinzento separando-nos
do mundo...
Farpas, i vol. Os sublinhados são nossos.
o país português
Em redor de nós as penedias nuas, adornadas da sua mesma aspereza, e
esta nudez e esta aspereza tornando ainda mais solemne a vista que se des-
fructa.
Em baixo planícies, nas planicies taboleiros de esmeralda. Dos dois grandes
lados vão subindo thronos de arvoredo, thronos de degraus sem conto. Pelo
meio de toda aquella extensão, quadros parciaes. No centro de uma planicie
esverdinhadamente amarella, um arvoredo escuro tão compacto que o diríamos
uma ilha. Bosques, searas. Mais ao longe dois montes deixando ver para alem
d'elles um accidentado de verdes claros, por tal forma, que parece uma cidade
phantastica nos recortados da casaria. O sol na força do esplendor abrilhan*
tando tudo aquillo.
Não é a Cruz Alta defrontando com a magestade de sele bispados, nem o
Bom Jesus onde parece que a vida está saltando de contente. Doeste pináculo
do Extremo, como de uma tribuna onde nos achamos extasiados, não se ouve
uma voz, não se vê uma creatura. É, no silencio da solidão, a natureza a con-
templar-se a si mesma.
Mas, como vemos, até no alto do Bom Jesus a alegria da re-
gião minhota se revela na sua plenitude. Entretanto, o viajante
que queira desde logo, e quasi á mesma altitude do pináculo do
Extremo, sentir essa nota característica do Minho, como já deve
ter visitado as encantadoras casas da Renascença que se encon-
tram em Vianna (typos italiano, manuelino e flamengo), toma o
trem descendente de Caminha para o Porto e, passado o tunnel
do Tamel que mede proximamente um kilometro, desce em Ca-
rapeços, aonde mandou estar uma carruagem de Barcellos. E,
através de campos floridos, de uma vegetação luxuriante, faz-se
conduzir ao alto da montanha. D'ahi abraça para norte as aguas
do Neiva, para sul as do Cavado, valles extensissimos em que
a mesma nota jovial e forte se mantém até ás mais distantes
cumiadas. Sob a incidência do mesmo sol radioso, o contraste
com as alturas do Extremo é de uma violência que impressiona,
sobretudo por se produzir a tão curta distancia e em terrenos de
sua natureza idênticos.
Na mesma carruagem, para que mudar? faz-se conduzir a
Braga, desde que o amor pelas ruinas históricas o não leve a ver
as do palácio do Conde de Barcellos, sitas na villa d'esse nome
e na margem direita do Cavado.
Braga, onde com justiça costumam visitar-se, alem da sua
cathedral e outros edifícios menores, os Santuários do Bom Jesus
e do Sameiro e a ponte do Bico, offerece todavia um passeio muito
o solOy O clima e a paisagem 5
mais bello, raro até, se me afigura: o da estrada de Chaves, na
encosta esquerda do Cavado. Ha uma ou duas dúzias de annos
seguia-se por ella quando se ia para o Gcrez. Hoje, com fim de
evitar um pequeno trajecto a cavallo na descida da montanha,
abandonou-se porem essa e toma-se a estrada directa por Terras
de Bouro, assente na encosta fronteira, a da margem direita.
A ditferença esthetica entre estas duas vias de communicação é
capital e deriva da differença de ahura a que cilas passam sobre
o leito do rio.
o CAVADO NA PONTE DO BICO
O Cavado, A estrada por Bouro é linda, sem comtudo se
destacar do caracter dominante na região. De Braga desce ao
Cavado, que atravessa sobre uma bella ponte de pedra e depois,
subindo a pouca altura, lá segue suavemente até ás Caldas do
Gerez, sem nos commover por forma estranha. Diverso é o as-
pecto da estrada ainda não terminada de Braga a Chaves por
Salamonde e Ruivães. Parte da capital do Minho, na direcção do
Bom Jesus ; mas a poucos kilometros toma á esquerda do santuá-
rio e começa a trepar pela montanha acima, convertendo-se numa
verdadeira varanda sobre os extensos valles do Cavado, de um
lado, do Geraz, do outro. O panorama que se goza em todo o
trajecto até ás alturas de Vieira é um deslumbramento ; porque
a estrada passa muitas vezes a mais de Soo metros de altura do
rio, e as encostas da serra são suaves, todas cobertas de vegeta-
5 O pais português
ção e animadas pela nota branca dos casaes e infinitos incidentes
do solo granítico. Passei ahi numa manhã de abril em que, du-
zentos metros abaixo da estrada, um mar de névoa branca como
neve enchia todo o valle até perder de vista. Illuminada de raspão
pelo sol nascente, destacavam-se em grisalha tenuissima as faces
dos rolos de névoa que ficavam na sombra; e esse mar incom-
parável parecia ondular allucinado, em busca de regiões fan-
tásticas.
O Gerei é sem duvida alguma, de todas as serras portugue-
sas, a mais interessante pela flora, pela fauna, pelo pittoresco das
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SUBINDO PARA O GEREZ
suas ribeiras e dos seus panoramas, pela qualidade das suas aguas,
tanto medicinaes como potáveis; e é também a que offerece ao
touriste maiores facilidades de accesso e de habitação. Alem de
que, pela proximidade da estrada da Geira e da povoação do Suajo,
elle offerece ainda assunto valioso e inédito a archeologos, ethno-
logos e linguistas. Entretanto, o espaço faltar-nos-ia se quiséssemos
falar largamente da maravilhosa serra, para dar uma ideia assas
completa do seu valor. Como porem ella seja umas das mais co-
nhecidas do país, e ainda devamos occupar-nos das suas nascen-
tes termo-mineraes, julgamos-nos absolvidos da lacuna que abrimos
neste ponto, não prolongando a sua descrição.
Mas não são estes apenas os aspectos grandiosos que no
Minho se podem recommendar ao viajante. Regressando-se a Braga,
impõe-se o passeio a Guimarães pela Falperra.
o solo, o clima e a paisagem ^
Se porem seguirmos a linha férrea do Minho e a da Trofa a
Guimarães, no intuito de visitar Vizella, não esquecer que, entre
esta, Guimarães e as Taipas, pontos ha de onde se gozam pano-
ramas absolutamente raros, graças á especial ondulação das terras
através de zonas muito extensas. De Batoucos, por exemplo, a
vista estende-se até ao mar da Povoa de Varziíp, na distancia de
uns quarenta kilometros, tangencialmente ás cristas de uma serie
de pequenas ondulações do terreno, que gradualmente descem
EM VIZELLA
até ao Oceano, succedendo-se numa alternação pittorescamente
rythmada de linhas de campos, arvoredos e brumas tenuissimas,
salpicadas de vidraças de casaes infinitamente pequenas, onde
o sol põe manchas de variegadas cores que se attenuam quanto
mais mergulham na atmosphera luminosa e irisada pelas brisas
salgadas do largo.
No Berço da Monarchia, se não temos igrejas como a Sé de
Braga e a encantadora capellinha de S. João do Souto, temos com-
tudo vários templos a visitar, principalmente a Senhora da Oli-
veira e o seu valioso Thesouro. E logo após urge aproveitar o
tempo em passeio até Fermil, nas margens do Tâmega, seguindo
a estrada que passa em Fafe e para o rio desce, tocando na Gan-
darella e atravessando uma zona inexcedivel em vigor de vege-
tação. Ou então, logo após Fafe, bifurcando á esquerda, tomar
8
O pais português
pela estrada que vae atravessar o Tâmega perto do Cavez e passar
a cavalleiro de Ribeira de Pena, numa região de uma belleza des-
lumbrante, para se encontrar em Villa Pouca de Aguiar com uma
outra estrada, a de Villa Real a Chaves.
O Minho, que encantava D. António da Costa e ainda hoje
encanta Ramalho Ortigão, ainda mais profundamente commovia
Eça de Queiroz; tornava-o mystico, contemplativo, penetrava-o de
.^^:í^''l9mÁ
A ENTRADA DA QUINTA DO MOSTEIRO
doce religiosidade. Notável a seguinte descrição de uma vivenda
do baixo Minho, que tenho razões para suppor ser a mesma que
O. Martins visitara e algures descreve com aquelle enfado que ás
vezes o atacava, vivenda que fica distante do Porto uns lo a 12
kilometros.
Aqui, em torno do pateo (onde a agua da fonte todavia corre dos pés da
cruz) são solidas tulhas para o grão, fofos eidos em que o gado medra, capoei-
ras abarrotadas de capões e de perus reverendos. Adeante é a horta viçosa,
cheirosa, succulenta, bastante a fartar as panellas todas de uma aldeia, mais
enfeitada que um jardim, com ruas que as tiras de morangal orlam e per-
fumam, e as latadas ensombram, copadas de parra densa. Depois a eira de gra-
nito, limpa e alisada, rijamente construída para longos séculos de colheitas, com
o seu espigueiro ao lado, bem fendilhado, bem arejado, tão largo que os pardaes
voam dentro como n'um pedaço de céo. E por íim, ondulando ricamente até
o soloy O clima e a paisagem
ás collinas macias, os campos de milho e de centeio, o vinhedo baixo, os olivacs,
os relvados, o linho sobre os regatos, o mato florido para os gados. . . S. Fran-
cisco de Assis e S. Bruno abominariam este retiro de frades e fugiriam d'elle,
escandalisados, como de um peccado vivo.
Não houve necessidade de alterar esta vivenda, quando de religiosa passou
a secular. Estava já sabiamente preparada para a profanidade ; — e a vida que
n'ella então se começou a viver,
não foi differente da do velho
convento, apenas mais bella,
porque, livre das contradições
do Espiritual e do Temporal, a
sua harmonia se tornou perfeita.
E, tal como é, deslisa com in-
comparável doçura. De madru-
gada os gallos cantam, a quinta
acorda, os cães de fila são acor-
rentados, a moça vae mungír as
vaccas, o pegureiro atira o seu
cajado ao hombro, a íiia dos
jornaleiros mette-se ás terras
— e o trabalho principia, esse
trabalho que em Portugal pa-
rece a mais segura das alegrias
e a festa sempre incansável,
porque é todo feito a cantar.
As vozes vêem, altas e desgar-
radas, no íino silencio, d'alem,
d*entre os trigos, ou do campo
em sacha, onde alvejam as ca-
misas de linho crú, e os lenços
de longas franjas vermelhejam
mais que papoulas. E não ha
n*este labor nem dureza, nem
arranque. Todo elle é feito com
a mansidão com que o pão
amadurece ao sol. O arado mais acaricia do que rasga a gleba. O centeio cae
por si, amorosamente, no seio attrahente da foice. A agua sabe onde o torrão
tem sede, e corre para lá gralhando e refulgindo. Ceres n'estes sítios bemditos
permanece verdadeiramente, como no Lacio, a Deusa da Terra, que tudo
propicia e soccorre. Ella reforça o braço do lavrador, toma refrescante o seu
suor, e da alma lhe limpa todo o cuidado escuro. Por isso os que a servem,
manteem uma serenidade risonha na tarefa mais dura. Essa era a ditosa feição
da vida antiga.
Se estes meíos-dias são um pouco materiaes, breve a tarde trará a porção
de poesia de que necessita o Espirito. Em todo o ceu se apagou a refulgencia
NA MATTA DO MOSTEIRO
IO
o país português
d*ouro, o esplendor arrogante que se não deixa fitar e quasi repelle; agora
apaziguado e tratavel, elle derrama uma doçura, uma pacificação que penetra
na alma, a toma também pacifica e doce, e cria esse momento raro em que ceu
e alma fraternisam e se entendem. Os arvoredos repousam n'uma immobilidade
de contemplação, que é intelligente.
No piar velado e curto dos pássaros
ha um recolhimento e consciência do
ninho feliz. Em fila, a boiada volta dos
pastos, cançada e farta, e vae ainda
beberar ao tanque, onde o gotejar da
agua sob a cruz é mais preguiçoso.
Toca o sino a Ave-Marias. Em todos
os casaes se está murmurando o nome
de Nosso Senhor. Um carro retar-
dado, pesado de matto, geme pela
sombra da azinhaga. E tudo é tão
calmo e simples e terno que, em
qualquer banco de pedra em que me
sente, fico enlevado, sentindo a pene-
trante bondade das coisas, e tão em
harmonia com ella, que não ha n*esta
alma, toda encrustada das lamas do
mundo, pensamento que não pudesse
contar a um santo . . .
Verdadeiramente estas tardes
santificam. O mundo recua para
muito longe, para além dos pinhaes
e das collinas, como uma miséria
esquecida : — e estamos então real-
mente na felicidade de um convento,
sem regras e sem abbade^ feito só
da religiosidade natural que nos envolve, tão própria á oração que não tem
palavras, e que é por isso a mais bem comprehendida por Deus i .
E os novos, os impressionistas e realistas, sentem também o
caracter transcendente, esthetico da terra minhota, embora nelles
a commoção se revele diversa da dos primeiros, numa expressão
de jovial religiosidade pagã, presa á região que lhe inspira as
formas plásticas das suas divindades.
Um sopro de pantheismo litterario de uma religiosidade cheia de pureza e
de evocações frementes ás coisas naturaes, levou-nos, como peregrinos da Mãe-
J
1^
•
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9í^'
A COZINHEIRA DA LAVCURA
I Cartas de Fradique Mendes.
o solOf o clima e a paisagem
I I
Fecunda, ventre e tumulo das Formas, a «receber o baptismo da Terra», para
os campos, estirados á beira das searas, sob a umbella pacifica dos grandes
plátanos, rumorosos de petizada aérea, hypnotisando-nos com o murmúrio de
colmeia que vinha do largo, em haustos bafejados de átomos dispersos como
se algum braço de Deus bucólico, de olhos verde-mar e barbas da côr do linho,
andasse a espalhar, n'um gesto rythmíco de semeador, as calmas confidencias dos
caules e das raizes. Sob esse ulular amoroso de caricia bracejante, no hálito do
aroma thuríbular que vinha da sagração ritual dos óleos e do beijo tenuissimo
dos pólens, dizia-me o meu amigo, n'um segredo, como deante do mysterio in-
violável de um sacrário :
— Ouve a Natureza a amamentar os filhos ! . . . >
o TÂMEGA EM AMARANTE
Trà8-08-Monte8. — Pelo Gerez, Serra da Cabreira e Tâmega,
o Minho toca em Trás-os-Montes, região de aspecto algo diffe-
rente da parte baixa minhota, já pela altitude geral, já pela ausên-
cia de brisas marítimas e da grande humidade ali reinante, causas
estas de influencia considerável na vegetação e em todas as formas
da vida.
É a província de Traz-os-Montes uma das mais pittorescas de Portugal,
pelo interessante contraste de cordilheiras altivolas e de valles risonhos. Situada
no extremo norte do país, é limitada a nascente e a sul pelo rio Douro, que
lhe forma doestas duas bandas como que os dois lados de um caixilho ; a norte
contém a raia gallega ; e visinha a poente com a provincía do Minho.
I João Barreira, Gouaches.
12
O pais português
Montanhosa, alpestre, revestida de vegetação de grande fuste na encosta
das serranias, é também cortada em certas regiões do centro e norte por lon-
gos cerros escalvados. Os rios serpeiam quasi sempre apertados no fundo de
desfiladeiros; pelas rampas, até alturas inacessiveis, erguem-se socalcos a prumo,
grandes muralhas graniticas entremeadas de terra arável, onde por vezes se
agrupa um risonho souto, e onde fragas soltas, giganteas, se manieem a meia
encosta em prodigioso equilibrio.
O país vinhateiro, ao sul, é notavelmente accidentado, e desce até ao Douro
em escalões de pedra solta que seguram as fileiras de cepas, e de um tão mo-
vimentado aspecto bucólico na época das vindimas.
VIDAGO — NA MONTANHA
Quando um valle se alarga pelo afastamento das montanhas, e é irrigado
por um ribeiro, a variedade vegetal dos coloridos, a frescura das hortas e a
curiosa quadricula das culturas, fazem um alegre e repousante contraste com
a face severa da montanha, de arborisação escura ou de rocha parda i .
De Montalegre, terra de fundas pastagens e de gados de grande
nomeada, por Chaves, as antigas Aquae Jlaviae, direito a Bra-
gança no extremo norte do país, vae o touriste admirar a antiga
cidadella, a villa gothica edificada no alto do monte em cuja encosta
a cidade desce até á chan onde se alarga.
João Barreira, in Pátria Portuguesa.
o solo, o clima e a paisagem
i3
E lá encontrará ainda quasi intacta a sua cinta de muralhas,
em lanços successivos ligados por bastiões, a românica Casa da
Gamara, a Torre de menagem com as suas lindas janelas gothi-
cas, o Pelourinho, a Porca da villa e varias casas de habitação,
de primitivas formas gothicas. De caminho para Mirandella,
VILLA REAL — LEVADA DO AGUEIRINHO
pisando o solo schistoso e levemente ondulado, quando os altos
e copados castanheiros se projectam nobremente sobre o fundo
luminoso do ceu poente, sente-se uma impressão nova e de facto
impressionante. A natureza adquire ahi uma nobreza e serenidade
que até então não haviamos encontrado; esses aspectos de
paisagem divergem do resto do país.
Para baixar á zona do litoral offerecem-se dois caminhos. O
primeiro, que acabo de indicar, leva-nos a Mirandella, docemente
recostada num espraiamento da margem esquerda do Tua, e
14
O pais português
seguindo a meia encosta, através de uma zona de penedias e
ravinas atormentadamente trágicas, põe-nos lá em baixo, na mar-
gem do Douro. O segundo conduz-nos á região do Marão e a Villa
Real, uma das terras mais estranha e grandemente bellas de todo
o país.
Villa Real está construida a cavalleiro do Corgo, outro affluente
do Douro, num planalto que circunda a funda ravina, de altissi-
mas e abruptas encostas graní-
ticas, em que o rio se despenha,
apertado. O panorama que do
cimo das arribas se apossa de
nós é de facto maravilhoso.
Valles successivos, cerros ele-
vadissimos cobertos da mais lu-
xuriante vegetação, succedem-se
e entrecruzam-se até ao extremo
do horizonte.
Esse planalto em que a villa
assenta é mais propriamente
uma faixa de terreno nivelado,
encostada á montanha e não
muito larga. Num percurso de
uma boa légua, em meio de
arvores de todos os géneros,
I li ÉMl Mi^Bifl 111 c^i*valhos, salgueiros, castanhei-
li*^^^*'^^^^™í^-''^?4 ros, e de um terreno feracis-
EM MONCORVO simo, segue linda a estrada até
Matheus, nobre vivenda do sé-
culo XVII, talvez a mais importante casa portuguesa como
edifício, e sem duvida uma das mais nobilitadas do nosso país.
Todos conhecem a celebre edição dos Lusiadas do Morgado de
Matheus.
Ha ainda um terceiro caminho a seguir. Mas esse é só para
gentes de cavallo, exige bom calção e corpo para sacrifício. E ir
a cavallo de Bragança por Vimioso, o interessante jazigo dos ala-
bastros; d'ahi a Miranda do Douro, onde o especial dialecto não
é o menor attractivo da viagem, e, pela lombada superior do Sabor^
visitar Moncorvo, os ricos jazigos de minério ferroso. Freixo de
Espada-á-Cinta e a sua igreja manuelina, precipitando-se fínal-
o solo, o clima e a paisagem
i5
mente pela rude encosta duriense até á Barca d' Alva, fronteira
do país.
MONCORVO — RIBEDU DA VILLARIÇ
O Douro. — Não parar em Barca de Alva, porventura a cova
de que mais justamente se pode dizer que no anno tem nove
meses de inverno e três de inferno. «Barca de Alva, diz Guerra
Junqueiro, é demasiado trágico para mim. A paisagem é dura,
escalvada, uma paisagem biblica em que o Deus que ali está bem
é Jehová. O rochedo é só osso. Scenario para um profeta ou para
um bandido. Ezequiel ou o Cura de Santa Cruz '».
Por isso o viajante que ahi chega só tem de fazer uma cousa:
tomar o comboio descendente para o Porto que, sempre a meia
encosta, lhe permitte admirar tranquillamente o nosso mais bello
rio e um dos mais bel los do mundo, sendo até para estimar que
o desleixado atraso em que elle permanece nos permitta contem-
plá-lo em perfeito estado de pureza e virgindade.
Rolávamos na vertente de uma serra, sobre penhascos que desabavam até
largos socalcos cultivados de vinhedo. Em baixo, n'uma esplanada, branquejava
uma casa nobre, de opulento repouso, com a capellinha muito caiada entre um
laranjal maduro. Pelo rio, onde a agoa turva e tarda nem se quebrava coptra
as rochas, descia, com a vela cheia, um barco lento carregado de pipas. Para
I Nos Serões.
i6
O pais português
alem, outros socalcos, d 'um verde pallido de rezeda, com oliveiras apoucadas
pela amplidão dos montes, subiam até outras penedias que se embebiam, todas
brancas e assoalhadas, na fina
abundância do azul i.
Tendo descido numa
estação a meio da linha
férrea, o grande artista
que assim dizia, contem-
pla o rio maravilhoso. E
o encantamento persiste,
a natureza anima-se, toma
para elle novos aspectos
ridentes.
O rio defronte descia, pre-
guiçoso e como adormentado
sob a calma já pesada de maio,
abraçando, sem um sussurro,
uma larga ilhota de pedra que
rebrilhava. Para além a serra
crescia em corcovas doces,
cora uma funda prega onde se
aninhava, bem junta e esque-
cida do mundo, uma villasinha
clara. O espaço immenso re-
pousava n'um immenso silen-
cio. N^aquellas solidões de
monte e penedia os pardaes,
revoando no telhado, pareciam
aves consideráveis . . .
Mais tarde, toda a
região envolvente o com-
move e absorve profun-
damente. Subindo das margens do rio, a contemplação do artista
abraça toda a serra, que já não tem a aspereza da Barca de
Alva e mais se confunde até com a zona dos campos de entre
Douro e Minho.
EM MIRANDA DO DOURO
' Eça de Queiroz, A Cidade e as Serras.
o solo, o clima e a paisagem
17
E cm breve os nossos males esqueceram ante a incomparável belleza
d*aquella serra bemdita !
Com que brilho e inspiração copiosa a compozera o divino Artista que faz
as serras, e que tanto as cuidou, e tão ricamente as dotou, n'este seu Portugal
bem-amado ! A grandeza egualava a graça. Para os valles, poderosamente ca-
vados, desciam bandos de arvoredos, tão copados e redondos, de um verde tão
moço que eram como um musgo macio onde appetecia cahir e rolar. Dos pen-
dores, sobranceiros ao carreiro fragoso, largas ramarias estendiam o seu toldo
o DOURO — PERTO DE AR^GOS
amável, a que o esvoaçar leve dos pássaros sacudia a fragrância. Atravez dos
muros seculares, que susteem as terras liados pelas heras, rompiam grossas
raizes colleantes a que mais hera se enroscava. Em todo o torrão, de cada fenda,
brotavam Rores silvestres. Brancas rochas, pelas encostas, alastravam a solida
nudez do seu ventre polido pelo vento e pelo sol ; outras, vestidas de lichen
e de silvados floridos, avançavam como proas de galeras enfeitadas ; e, d'entre
as que se apinhavam nos cimos, algum casebre que para lá galgara, todo ama-
chucado e torto, espreitava pelos postigos negros, sob as desgrenhadas farripas
de verdura, que o vento lhe semeara nas telhas. Por toda a parte a agua sussur-
rante, a agua fecundante... Espertos regatinhos fugiam, rindo com os seixos,
d'entre as patas da égua... ; grossos ribeiros açodados saltavam com fragor
de pedra em pedra; fios direitos e luzidios como cordas de prata vibra-
vam e faiscavam das alturas aos barrancos ; e muita fonte, posta á beira de ve*
i8
O pais português
redas, jorrava por uma bica, beneficamenie, á espera dos homens e dos gados. . .
Todo um cabeço por vezes era uma seara, onde um vasto carvalho ancestral,
solitário, dominava como seu senhor e seu guarda. Em socalcos verdejavam
laranjaes rescendentes. Caminhos de lages soltas circumdavam fartos prados
com carneiros e vacas retouçando : — ou mais estreitos, entalados em muros,
penetravam sob ramadas de parra espessa, n*uma penumbra de repouso e fres-
cura. Trepávamos então alguma ruasinha de aldeia, dez ou doze casebres, su-
midos entre figueiras, onde se esgaçava, fugindo do lar pela telha vã, o fumo
branco e cheiroso das pinhas. Nos cerros remotos, por cima da negrura pensativa
DOURO — EM PORTO MANSO
dos pinheiraes, branquejavam ermidas. O ar fino e puro entrava na alma, e na
alma espalhava alegria e força. Um esparso tilintar de chocalhos de guizos
morria pelas quebradas. . .
Frescos ramos roçavam os nossos hombros com familiaridade e carinho.
Por traz das sebes, carregadas d*amoras, as macieiras estendidas offereciam
as suas maçãs verdes, porque as não tinham maduras. Todos os vidros de uma
casa velha, com a sua cruz no topo, refulgiram hospitaleiramente quando nós
passamos. Muito tempo um melro nos seguiu, de azinheiro a olmo, assobiando
os nossos louvores. Obrigado, irmão melro ! Ramos de macieira, obrigado ! Aqui
vimos, aqui vimos ! E sempre comtigo fiquemos, serra tão acolhedora, serra de
fartura e de paz, serra bemdita entre as serras !
Assim, vagarosamente e maravilhados, chegamos áquella avenida de faias,
que sempre me encantara pela sua fidalga gravidade.
o solOy O clima e a paisagem
19
Sob a janella vicejava fartamente uma horta, com repolho, feijoal, talhões
de alface, gordas folhas de abóbora rastejando. Uma eira, velha e mal alisada
dominava o valle, d'onde já subia tenuemente a névoa d'algum fundo ribeira
Toda a esquina do casarão d'esse lado se encravava em laranjal. E d'uma
fontinha rústica, meio afogada em rosas tremedeiras, corria um longo e ruti-
lante fio de agua.
Tormes dormia no esplendor da manhã santa ».
Não vá imaginar, quem ler estas paginas tão larga e nobre
mente sentidas, que só o artista raro e raramente consciente é que
assim attinge a suprema espiritualização na formula symbolica
em que nos transmitte a sua commoção esthetica, suggerida por
uma região tão afastada dos convencionalismos mundanos em
matéria de viagens de recreio. O próprio habitante indígena de
pé descalço e consciência nuUa, vi-o eu manifestar-se identicamente
perante essa natureza de um encanto tão penetrante e elevado.
Era ao cair da tarde, um pouco a montante do sitio excepcio-
nalmente bello de Entre-os-Rios, esse alargamento produzido pelo
encontro dos dois valles, o do Tâmega com o do Douro, e pela
fusão de quanto de mais pittoresco e suave poderia encontrar-se em
ambos elles. Baixava docemente o dia e a calma do ar e das en-
costas banhadas no pualho dourado do poente era solemne, extática.
E da encosta fronteira á minha levantou-se uma voz dourada
também, lenta e muito aguda, que assim cantava:
^ndéiníCno '
Hmr-:iJ'J )\T^
uySUIU-vi yy^ôu. Stm\ SkòieA. ^ u^^iamHilA, d^di^ &^ l
A ultima nota afastara-se docemente, num decrescendo lento,
percorrendo o valle longo e calmo até ás ultimas quebradas. De
I Todos estes extractos provêem de A Cidade e as Serras.
20
O pais português
longe, de muito longe, respondeu-lhe então uma outra voz mais
viva e travessa, em movimento também mais sacudido :
jffl/efrc
til nimim ijnjLiiJ-jf4
i/miím». 0le-.
1 Â
^^"^ -^ ^^*lr^ 'TTt'
o MONDEGO NA REGIÃO GRANÍTICA
Apesar de nascido na serra rude e inhospita, e até quando
atravessa a região alpestre do seu curso superior, o Mondego con-
serva em grande parte o caracter idyllico tão conhecido no seu
curso inferior, mercê da abertura do valle que não tem a estrei-
teza de outros valles das regiões graníticas. E é por isto sem
duvida que, para muitos, o verdadeiro rio da serra é o Zêzere,
que desce de escantilhão por penedias bravias, desde a origem
até á foz.
O Ze\ere é o verdadeiro rio da serra da Estrella, como terei occasião de
mostrar quando lhe descrever as nascentes, guardadas, como sentinellas gígan-
teas de um mundo de monstros mysteriosos, pelos dois cântaros. Nascentes
dignas de um rio como o Danúbio, e como o Zêzere o seria infallivelmente, se
Augusto Gil, in Serões.
3o
O pais português
o Tejo, com perfídia castelhana, o não cortasse de meio a meio, em princípios
da carreira !
A Serra da Estrella. — Assim diz Emygdio Navarro no livro
atrás citado. Para elle remettemos o leitor que queira informar-se
acerca do melhor ponto de accesso á Serra da Estrella, porque
ESTRELLA — A CASA DO FRAGAO
uma excursão por taes sitios exige estudo e preparação especial,
que não apenas a informação de um guia de viagens ordinárias.
E, entretanto, suppomo-nos no cimo da sua esplanada, em com-
panhia do guia Navarro e de Oliveira Martins. Este explicará
primeiramente :
Por essas eminências, tapetadas de relva no esiio e de neves no inverno,
nem as villas, nem as arvores se atrevem a subir : só o pastor nómada as ha-
bita. Do alto do seu throno de rochas vè gradualmente ir nascendo a vida pelas
encostas : primeiro o zimbro, rasteiro e roido pelo gado, circumda os altos nús;
logo apparecem os piornos, as urzes brancas, os carvalhos ; depois, já a meia
altura da encosta, os castanheiros, as lavouras, e os enxames das villas; afínal,
na extrema baixa, o lançol de lagunas, tapete de esmeraldas engastadas em fios
de brilhantes, que o sol faceia ao espelhar-se no labyrintho dos canaes ».
I O. Martins, Historia de Portugal, vol. i.
o solo, o clima e a paisagem
3i
Synthese de artista e de economista com saúde delicada e
hábitos da capital, a que se contrapõe a truculência trasmontana
de Emygdío Navarro, nascida em região de frio e serras, e não
de planuras e clima temperado.
Navarro visita a Serra por suggestão e na companhia do Dr.
Sousa Martins, que a conhecia a palmos e que, como se sabe, foi
o fundador do Sanatório ali exis-
tente. A alegria e enthusiasmo ^ '
transparece nas suas chronicas
com uma exuberância que faz
perdoar algumas imperfeições e
faltas de gosto.
Acolá, ali em baixo, a curta distan-
cia, está a cidade da Covilhã , mais alem
está a villa do Fundão ; a nordeste está
a cidade da Guarda, a cidade mais alta
da Europa, a irooo metros; ao norte,
inclinando accentuadamente para o occi-
dente, estão Gouveia, Moimenta, Ceia,
S. Romão e todas as povoações do valle
do Mondego. Com poucas passadas,
abrange-se n*um relance a posição d'estas
differentes povoações, aliás tão distan-
ciadas umas áss outras. Mas nenhuma
d'ellas se divisa ; os contrafortes da serra
escondem essas povoações, e o terreno,
que se vê, é alem d'ellas. Ainda assim,
a perspectiva é magnifica. O nascer e o
pôr do sol são ali de uma inexcedivcl
magnificência.
PASTOR DO F0LG08INH0
E principalmente o nascer do sol é de aspectos phantasticos, e motivo de
impressões extraordinárias. A luz doura as cumiadas da serra quando nos po-
voados mal se esfumam as trevas da noite. Sente-se despertar a vida da natu-
reza em meio do somno do homem. As mais das vezes, a luz côa-se por brumas
tenuíssimas que rapidamente se adelgaçam até de todo se evaporarem, ou que
descaem e se concentram sobre os logares inferiores, formando uma superfíce
alvacenta, que se prolonga até onde alcança a vista. Parece então que temos
debaixo dos pés um mar, de largas e suaves ondulações e reflexos iriados, em
que sobresaem os picos e cabeços mais salientes, como navios baloiçados em
preguiçosa calmaria, ou cetáceos adormecidos á flor da agua, que ali tivessem
ido aquecer o dorso escuro e viscoso !
Algumas vezes, quasi sempre a horas adiantadas do dia, esse mar tranquillo
transforma-se enfi oceano revolto. As brumas esbranquiçadas ennegrecem com
32
o país português
a electricidade, que n'ellas se accumula. Em cima, um ceu puríssimo, uma atmos-
phera plácida. Em baixo, uma trovoada medonha. Os trovões estoiram com
fúria brava, que faz estremecer os flancos da serrania, e as chispas rasirejam
em zig-zags de serpentes, como se os quizessem queimar com o seu hálito de
fogo. Espectáculo soberbo!
As corcovas e depressões da serra, com os seus covões profundos, os seus
poios encastellados, as suas penedias capríchosas, as suas ravinas escarpadas,
A LAGOA DO PAXAO
as suas geleiras frigidas, e as suas pradarias de esmeralda, abrangem -se d'ali,
simultaneamente, em breves relances. Ao fundo, muito ao fundo, verdejam uns
pequeninos valles, dourados pelos reflexos do sol, e que são as veigas largas e
fertilissimas que abastecem o povoado. As gargantas medonhas da serra abrem
sobre morros, que se amaciam na 3irecção d*esses campos, golfando abundan-
tissimas aguas, que os fertilisam, e que também alimentam numerosas fabrícas;
e a grande esplanada ergue-se como um ubere, enorme, monstruoso, em posi-
ção invertida, com a sua coroa quasi permanente de brancos nimbos, como o
ubere de uma boa vacca leiteira se mostra coroado de brancos pêlos ! O terra,
alma mater !
Na esplanada da serra o silencio é muito pronunciado. O ambiente parece
ter uma solemnidade esmagadora; e, apesar da maior rarefacção do ar tor-
nar menos transmissíveis as ondas sonoras, ouve se muito distinctamente
o ruido de passos e de vozes a larga distancia, como se fora próximo. Re-
gistada esta ultima observação, eis-nos o caminho, na breve descida para os
cântaros.
i
o solo, o clima e a paisaf^em
33
o CÂNTARO MAGRO
Depois de descrever a
nascente do Zêzere, as ge-
leiras e as lagoas, e as duas
«sentinelas», que lhes vi-
giam os primeiros passos,
o Cântaro magico e o Cân-
taro gordo y sob a impressão
agitante do grandioso dra-
ma que se desenrola nas
encostas atormentadas da
Serra, Navarro conta-nos
como a torrente jMesce e se
precipita contra o Tejo, ini-
migo vindo de terras de Espanha, pesadelo de fronteiriço habi-
tuado a espreitar, do alto da torre de menagem da cidadella bri-
gantina, a invasão das hostes contrarias.
Os primeiros filetes de agua
que para norte e leste escorrem do
rebordo da grande esplanada da
torre são também as primeiras nas-
centes do Zêzere. Este é o verda-
deiro rio da serra da Estrella e o
mais favorecido de aguas. O Tejo
sae-lhe ao encontro em Constança,
e só o vence porque a natureza do
terreno o obriga a misturar-se com
cUe. Na arremettida, a braveza her-
minia leva de baixo a pujança cas-
telhana. Braveza herminia é uma
redundância, porque o adjectivo
herminio ou hermenho já de si quer
dizer bravo, áspero, selvagem ; e
d*ahi vem chamar-se á cordilheira
da serra da Estrella os montes her-
minioSf como quem diz os montes
bravios por excellencia. Passe a re-
dundância com este salvo-condu-
cto. O Zêzere, quando se entumece
impetuoso, escorre com raivoso
fragor por cima de penedias e cas-
catas, corta o Tejo de lado a lado
com fúria invencivel, e este só
pode passar adeante galgando por
3
A GARGANTA DOS CÂNTAROS
34
O pais português
cima do seu inimigo, como se fora sobre um açude ! O rio esbarra contra os
terrenos alemtejanos, que lhe fazem frente, e é então, e só então, que se dá
por subjugado, não sem protestar por um largo espaço, com a côr mais
azulada das suas aguas, contra a perfídia, que o assalta em começo da sua
carreira, e a oppressao, que o esmaga na sua patriótica autonomia.
As geleiras, que raro desapparecem da região dos cântaros^ são o principal
elemento das suas nascentes.
A LAGOA COMPRIDA
Das alturas do Sabugal, de onde para norte desce o Côa
a ajuntar-se ao Douro, desce também para SO. o Zêzere a con-
fundir-se com o Tejo, atravessando a região alpestre e pittoresca
do valle que separa a Estrella da Gardunha. Abrigada dos ventos
do mar por essas duas linhas de serra, existe ahi uma das mais
férteis e interessantes regiões do pais — o districto de Castello
Branco. Descendo da Estrella, encontra-se a estação de Unhaes
da Serra, a i:32o metros de altitude; logo em seguida, a cidade
da Covilhã, a 770, e atravessando o Zêzere, com a linha férrea da
Beira Baixa, passa-se no Fundão, que lhe fica fronteiro na aba
norte da Gardunha. Do lado de alem, a linha férrea vae sempre
descendo na vertente da Serra, toca na sede do districto, já em
região mais baixa, e acompanha o Tejo na margem direita, a
partir de Villa Velha de Rodam.
A variedade dos terrenos que se atravessam, granitos ao
norte, calcareos a sul, e de permeio zonas enormes de terrenos
archaicos; a vegetação formada por oliveiras, azinhos, sobros,
castanheiros, carvalhos e pinheiros; a forte quantidade de chuva
o solo, o clima e a paisagem
35
que envolve toda a região; e a accidentação frequentíssima e
por vezes violenta do terreno convertem esta parte extrema da
nossa primeira zona num rico manancial de assuntos de paisagem.
E uma região brilhantissima mas que participa um pouco dos
caracteres da segunda zona, a dos calcareos.
Toda esta primeira zona se caracteriza, como vimos, por uma
extraordinária variedade de aspectos, procedentes da natureza do
o TEJO NAS PORTAS DE RODAM
solo, da sua excepcional e imprevista accidentação, da diversi-
dade de ventos reinantes e resultante diversidade climática, da
riqueza de vegetação arbórea e do aspecto generoso que os
granitos communicam aos terrenos. Mas, chegados á foz do Zê-
zere, é que vemos que nos ficou para trás a zona dos terrenos
baixos das bacias do Vouga e do Mondego, que, juntas ás do
Tejo e Sado, completam a segunda zona principal do nosso sys-
tema de exposição. Agora desapparece a paisagem grandiosa e
trágica, os terrenos graniticos com as suas enormes escarpas a
pique, o denticulado das suas serranias, os seus valles apertados,
os rios torrenciaes; entramos na região idyllica do calcareo, das
ondulações suaves, das aguas lentas, valles dilatados e terras
baixas. A vida suaviza-se.
Voltemos portanto um pouco para trás.
36
O pais português
Aveiro. — Galgado o Douro por sobre a ponte de ferro, numa
altura superior a 6o metros da superfície do rio, e contemplado
por ultima vez o panorama da bacia que se estende de Campanhã
ao Areinho e a serie dos contrafortes que, em escalão ascen-
dente, se perdem ao longe, para NE., o comboio enfia pelo tunnel
da Serra do Pilar, mas deixa-nos ainda ver de relance o amphi-
theatro imponente e pittoresco do velho Porto em quasi toda a
OVAR — o PAUL DO CARREGAL
extensão. Toma agua em Gaia e desce vertiginosamente até a
borda do mar, atravessando campos, vinhedos, moitas e pinhaes.
Após Espinho, interna-se um pouco para as terras e voa, que o
chão é plano; corta a baixa de Esgueira, de lés-a-lés, passa alem
do Vouga, e pára na estação de Aveiro. Quem não viu a cidade
e a zona que a rodeia, e quer experimentar uma sensação de pro-
funda belleza e de vida intensa e diversa da que vira até ahi,
e de que ninguém poderá suppor a existência num país como o
nosso, faz bem em não continuar a viagem.
A região de Aveiro é uma pequena Hollanda em pleno clima
e luz occidentaes. E eu creio que a maioria dos portugueses
ignoram o que essa zona baixa, conquistada lentamente ao mar,
encerra em si de riquezas valiosas e de aspectos estheticos inten-
o solo, o clima e a paisagem
3?
sãmente differenciados. Essa zona é producto do trabalho do
mar, que forma as dunas, e do trabalho do homem, que as apro-
veita. A ria é um polypo collossal que se divide em infinitos
braços e penetra pelo interior das terras, desde Ovar até aos
Palheiros de Mira, em 40 kilometros da costa, e transversalmente
numa largueza máxima de 10 kilometros.
As dunas transformaram-se a sul nos campos da Gafanha,
dignos de estudo como exemplo methodico da posse das terras
baixas pelo homem da montanha, e formação de um typo espe-
cial de propriedade. A ria é o laboratório chimico dos adubos das
EU ÍLHAVO, NA POKTA 8E. DA RIA
respectivas lavouras, o molliço, e é ao mesmo tempo uma admi-
rável via de communicação e transportes. Como aspecto, pro-
vavelmente pela extensa superfície de evaporação de centos de
hectares de agua salgada, toda esta região se distingue do norte
do país pela luz irisada que a banha e de momento a momento
muda de tom.
Da ria, essa atmosphera caminha para o interior das terras,
communicando á paisagem aspectos absolutamente differenciados.
Essa paizagem deliciosa e original, indecisa entre o mar e a terra, e que
nos enche de vivo prazer^ quando a dominamos desde os altos de Angeja á
raiz das montanhas, attrae-nos como a sombra da manzanilla, cheia de fres-
cura e veneno. Os elementos, confundidos, vingam-se da temeridade dos ho-
mens I.
I Oliveira Martins, loc, cit.
38
O pais português
Martins, falando de Angeja, deveria citar-nos ainda o sitio da
Ponte da Rata, porque aqui mais ainda se nota a fusão dos ele-
mentos que elle aponta, pelo incremento que a maior distancia
á costa necessariamente lhes communica.
A atmosphera da ria, alem de tudo o mais, parece commu-
nicar, como nenhuma outra, a todos os seres e objectos que nella
mergulham uma tal graça e distincção de aspectos e movimentos
que, por vezes, julgamo-nos ahi transportados a uma região ideal.
NA MA DE AVEIRO
E quero crer que o seja. Sentimo-lo quando por deante de nós
desliza um dos muitos barcos molliceiros, com a proa erguida em
curva e pittorescamente ornamentada a cores vivas. Ou quando
graciosamente envolta no seu chalé, como uma estatueta de Ta-
nagra, passa saudando-nos delicadamente uma tricana de Aveiro,
irmã das de Coimbra e ainda das de Vianna, que Ramalho Or-
tigão considera as mulheres mais lindas de Portugal por serem,
diz elle, as mais bem educadas, e talvez por não as ter compa-
rado ás da ria aveirense. Ha ahi o quer que é de grego, nos
rythmos por que se rege e nobilita a vida; e d'ahi virá porventura
a illusão, que muitos teem, de uma colónia helénica origem da
actual povoação e das suas gentes.
Mas furtemo-nos ao encantamento e avancemos até Coimbra,
onde teremos de fazer novo esforço, maior talvez, para continuar
o solo, o clima e a paisagem 3 o
nesta peregrinação esthetica, tão esgotante para quem profunda-
mente sente a belleza da terra.
Eis-nos em cheio na segunda zona principal, caracterizada,
como apontamos na nossa Advertência preliminar por : — terras
baixas, rochas calcareas, choupos e salgueiros, luz dourada e jo-
vial, clima temperado, calma ondulação do solo, aspectos que
se succedem sem contrastes nem imprevistos violentos, vegetação
variada e intensa, solo feracissimo.
o HOKDBC.O EM PENACOVA
Coimbra. — Estamos em plena região do baixo Mondego, que,
lindamente posto em socego, ahi repousa da corrida através dos
granitos beirões. O valle alarga-se voluptuosamente e as aguas
preguiçosas, desapparecendo muitas vezes da vista das lindas tri-
canas, escoam-se de mansinho através dos areaes que assoreiam
o rio. O panorama é d'aquelles que nunca esquecem. Desde
Camões, que todos os poetas portugueses o teem cantado, fasci-
nados pela doçura incomparável dos seus aspectos, pela ondula-
ção graciosa e senhoril das terras e montanhas marginaes. Até
Fialho de Almeida, tão violento por vezes nos rythmos e côr da sua
forte prosa, se deixou vencer pelas seducções do valle encantado.
Em torno á mole Universitária, a cavalleiro na corôa da montanha, a cidade
corre por todas as quebradas e vertentes, vendo-se, de cima, ruas, quintaes,
jardins e torres. Desigual, cheio de bossas, o Mondego, como uma cobra na
areia, espreguiça a sua trança d 'agua morta, desde a Portella até ás franças
do Choupal, e por toda a margem os choupos afusam-se, os casarões das
quintas amadornam, e vêem -se os salgueiros chorando os tradícionaes amores
40
O pais português
de Pedro e Ignez. Para alem do talweg, na outra margem, ergue-se gradual-
mente um amphitheatro de colinas, onde no primeiro plano as vinhas e pinhaes
servem de fundo ás manchas claras dos casaes e dos conventos ; depois, tre-
pando sempre, mais sobre o longe, serras azuladas esfumam-se em vagos ténues
d'aguarella, de uma côr incorpórea que faz contraste com os planos nitidos
verdes, bem postos, dos pomares e jardins rentes do rio. Por toda essa grande
vista circular, os episoc^ios são tantos, tão decorativamente lançados no sentido
duma cegueira das linhas principaes, que os deslumbramentos da vista ape-
nas logram fixar, por qui, por lem, manchas avulso — lá para a direita, perdi-
das num céo cruel de calma, as massas do Choupal, da Caudelaria e escola
o MONDEGO EM COIMBRA
regional de S. Martinho; apóz, os picos do cemitério, na abrupta escarpa,
e casarias dum bairro entre cyprestes e terras cultivadas; apóz, circumior-
nando sempre o olhar sobre a direita, campos de vinha, olivaes, pinhaes, zonas
de sueco — e depois as massas verdes do Jardim Botânico, e o Seminário, as
Ursulinas e o Paço do Bispo — e cada vez mais altos e distantes, planos de
serrania, cabellugens de mattas, o céo côr de aço, os infinitamente longes, mal
tocados, — grandeza, largueza, ares de Portugal, sorrindo paternalmente á vida
rústica !
Todos os sítios consagrados pela emoção dos milhares de adolescentes
que ahi passaram, de cabellos ao vento, de noite ou de dia, com a guitarra ou
com livros, sosinhos ou em bandos, nalguma dessas divinas horas em que
a alma, afinada pela dor, communga o religiosismo amargo da natura : todos
os sitios clássicos de Coimbra, a Lapa dos Esteios, o Penedo da Saudade,
Santo António dos Olivaes, Santa Cruz, a Estrada da Beira, a Ponte, o Chou-
pal — ai ! todos elles, verdade, são calorosamente dignos da reputação que
lhes fizeram, reputação que o tempo nobilifica, e de que não é possível evitar
o solo, o clima e a paisagem
41
jamais o encanto absorvente. Esse encanto por certo vem da harmonia
das formas, das harmonias da côr, da candidez esparsa, do repouso e dos
vem também de feitiçaria das sensi-
accidentes idylicos naturaes, mas
bilidades poéticas, ideaes, que ali
pulsaram, da quantidade de belleza
physica, de generosidade d'alma,
de crença ingénua, d'imberbe ca-
valheirismo, que durante séculos
ondearam por ali as plumas dos
seus gorros e os sons da sua voz —
murmúrios que as payzagens reti-
veram, corrigindo-se por estas re-
miniscências nobres ou formozas,
e reenviando ao tourisíe, de memo-
ria, as impressões do seu deslum-
bramento. Por que não é já myste-
rio que uma payzagem seja, como
nós, sensivel á lisonja. Quantas ve-
zes, sol posto, já a serra da Louzã
mal curvejava no céo baço, no Pe-
nedo da Saudade, sosinho não vim
eu, simples estranho, já cynico, á
quintessência de todas essas ances-
traes fascinações. A natureza e a
vida animal téem ali uma quebreira
languida que se presta ao rythmo
das falas, á molleza das ideias e
á desinvolução do sonhar senti-
mental.
No Choupal, que é uma floresta
nova de folhas muito verdes, ru-
mores de noras, braços de rio pas-
sando pontes, lavadeiras, rouxinoes
e alagadios tufados de herva tenra ;
no Choupal a esbelteza gracil de
certos macissos de ailantos, chou-
pos, freixos, plátanos, eucaliptos,
zebrados de sol, pelas clareiras, es-
guios e ondulosos como ephebos,
com verdes raros, frigerantes nebli-
nas, vagas formas poéticas, a suggestão recebida assemelha-se muito á que nos
toca, vendo sair das aulas, em chusmas, á Porta Férrea, todo esse doirado enxa-
me de rapaziada buliçosa. A mesma descuidosa complacência, a mesma prima-
veril fínura nos meneios, o mesmo grito de corações rindo ao viver. De sorte que,
indissoluto o laço de harmonia, a mocidade escolar é para assim dizer, no seu bu-
licio, como que a projecção da natureza idylica que a circunda : uma penetra a
outra, solidarias, a pensante e a sonhante ; donde não é paradoxo dizer que as
NO CHOUPAL
42
o pais português
suggestões artísticas são nesta terra como que uma florescência do solo e um
oxigénio do ar, e colhel-as não custa, bastará quando muito olhar em tomo >.
o MONDEGO E A ESTRADA DA BEIRA
Numa tal atmosphera, a canção torna-se doce e carinhosa, per-
dendo comtudo a profundeza que a caracteriza nas vertentes do gra-
nito: a Dor desappareceu com as asperezas da região anterior; a
saudade é até expressa com galantaria e graça, entre sorrisos e boas
maneiras.
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b' id-àf&.yu^tf vtíi úm-ic^i^^Q' U-dfiÃí uSitSC^ ^^
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■1 -"-^ i Tj , j "^ij f-rJiij^^ a
» Fialho de Almeida, A Esquina.
o solo, o clima e a paisagem ^3
As danças populares apparecem rythmadas de uma forma
absolutamente diversa da primeira zona. Deixaram de ouvir-se
as chulas, passamos a ouvir as danças de roda. E estas são
balanceadas e de movimento moderado, em contraposição com
a viveza e persistência rythmica elementar das primeiras. Pare-
cem todas geradas em estilo rocaille, curvas arredondadas e gra-
ciosas, arte de bom tom, jovialidade comedida e amável.
'j:;j-?n uj.^iu»j^hijrJ i ij
Tudo isto se contém na natureza envolvente, independente da
poesia a que a musica nos apparece ligada. Ahi, o que domina,
o que traduz a commoção difFerenciada é a melodia, como expres-
são immediata que é dos estados de alma.
A estada em Coimbra comprehende necessariamente a visita
á importante serie dos seus monumentos, museus e sitios celebres,
aos conventos de Santa Clara, Cellas e São Marcos. Mas ahi ha
o precioso Roteiro Illustrado do Viajante em Coimbra^ muito
bem illustrado, e para lá remetto o leitor, com a obrigação
de o adquirir e estudar.
Estremadura. — Eu não sei porque, em logar de começar logo
após Coimbra para abranger todo o resto da nossa segunda zona
de paizagem, quasi a sua totalidade, a provincia da Estremadura,
centro do país, não ha de comprehender o triangulozinho que nos
occupou até agora e onde Aveiro e a cidade universitária ficaram
separadas das outras terras d'essa zona e ligadas ao Douro apenas
na carta chorographica. Cousas antigas que provavelmente já nin-
guém sabe explicar, nem talvez valha a pena saber. Mas é um
facto que nos encontramos dentro de outra provincia, embora
não notássemos na paisagem diflferença a motivá-la.
Thomar está situado nas margens do Nabão, a 7 kilometros
da estação de Payalvo, linha do Porto a Lisboa, e do lado opposto
44
O pais português
ao mar. Esse pequeno trajecto faz-se por estrada ordinária,
aliás pouco interessante. As margens do Nabão, conservando
o RIO NABÃO
inteiramente o caracter da região do Vouga e Mondego, são porem
encantadoras. Mas o que em Thomar se antepõe a tudo é a serie
o RIO ALMONDA
dos seus monumentos religiosos, das épocas românica, gothica
e renascença (diversos periodos), que pertenceram á ordem dos
o solo, o clima e a paisagem
45
Templários e mais tarde á dos Freires de Christo. Essa serie,
excepcional e bastante bem conservada, comprehende exemplares
notáveis, alguns d'elles únicos na arte de Portugal.
Continuando na linha para os lados de Lisboa, deixamos á
nossa direita uma zona extremamente pittoresca. Em primeiro
logar toda a região de Torres Novas e do Rio Almonda, con-
1
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o ALVIELLA EM PERNES
fluente do Tejo; e, logo abaixo, a do Rio Alviella, o confluente
que fornece a agua á capital e cujas quedas de Pernes são inte-
ressantissimas. Comprehendidos entre as ultimas vertentes do Zê-
zere a N.E. e a Serra dos Candieiros a poente, todos esses ter-
renos, embora se encontrem já no valle do Tejo e sejam em
parte de recente formação, sentem ainda a proximidade do solo
movimentado dos seus limites extremos. Estabelecem por isso
mesmo a transição entre as nossas i.* e 2.* zona de paisagem,
tendo comtudo a caracteristica vegetação d'esta ultima.
a() o pais português
Na mesma linha férrea, e um pouco antes de Payalvo, encon-
tra-sc o ramal de Alfarellos, que nos leva á linha da Figueira a
Lisboa, por Leiria, S. Martinho do Porto, Caldas da Rainha^
Torres Vedras e Mafra. Ksta região, pouco afastada do litoral,
c digna de uma prolongada visita.
Km I^iria, edificada á beira do Liz, que por vezes a inunda,
existem as ruinas do castello gothico de El-Rei D. Dinis, mais
tarde aumentado por D. João I, e que foi o monumento civil mais
importante d'essas épocas em Portugal. Do alto do castello, a
vista abrange um panorama extensíssimo e cuja belleza mereceu
a \\\;'x\ de Queiroz uma pagina encantadora, simples Estudo de
capnpo, rapidamente esboçado, mas que apesar d'isso tem o valor
de um quadro de mestre :
Km rovlrt da Ponte, a paizagem é larga e tranquilla. Para o lado d'onde
o rio vem silo collinas baixas, de formas arredondadas, cobertas da rama
verde Miegru dos pinheiros novos; em baixo, na espessura dos arvoredos, estão
o$ cusaes, que dâo ilquelles locares melancólicos uma feição mais viva e hu-
mana — com as suas ule^res paredes caiadas que luzem ao sol, com os fumos
das lareiras que pela tarde se azulam nos ares sempre claros e lavados. Para
O lado do niar« para onde o rio se arrasta nas terras baixas entre dois renques
de $ali;ueiivs pallidos, estende-se até os primeiros areaes o campo de Leiríoi
larjívx ftícundo, com o aspecto de aguas abundantes, cheio de luz.
Ao po da l\>nte^ uma rampa desce para a alameda (macadamisada), que se
estende um pouco a beira do rio centre dois renques de velhos choupos). É um
lo^ar rxNX^lhivUx coberto de ar\*ores antÍ4;as. Chamam-lhe a Alameda Velha.
A tarvie descahia muito límpida ; o alto cêo tinha uma pallida côr azul ;
o Ar estAVA immo\ eU Naquelle tempo, o rio ia muito vazio ; pedaços de areia
reluzi A ai em sècco ; e a A):ua baixa arrasta va-se com um marulho brando, toda
cnm^.uiA vio n\ar dos seixos,
DxUis x-íivCAS* ^Kirdâdas por uma raparica, appareceram então pelo caminho
KvkNÀ> q«;e vio outrx> IavÍo vio rto^ defronte da alameda^ corre junto de um sil-
XAdv^: Cí*»trArAm nv> riv^ vieMíij^ir, e estendendo o pescoço pelado da canga,
Nrb A;'ii de '.cxe^ scn> nnviv>: a esrNAÇos erj:uiam a cabeça bondosa, olhavam em
re\w ovv^.i A |v*ss:v,\ tran^^vU.IuiAde dos senes tartos — c tios de agua, babados,
K;í:o„v>s a U.^ ;vnx::,*n^ '.hes dos C3inios do focinho.
Ovv:^\ A inv>.;'iACÍv^ do SvX a acua perdiA a sua claridade espelhada» esten-
x^A^"^^ sí AS N.^íV^^^AS vív« Arcv-^s du TVM^te. Do lado das colI:aas ia subindo um
c^c;v«>^^;.Io cvr\:r:':.Xv*v\ < as r.uxens cv^r de sancu::>eji c còr de larania que
A;*;;"., 'ic;* v, v* CA.cc t^ií.Ar.x so^rc v>s ^.adc^ do rrar* ur::a decoração muito rica >.
^:x:V ,l*»:,r*,v
o solo, o clima e a paisagem aj
De Leiria, para se verem os mosteiros de Alcobaça e da
Batalha, as Caldas da Rainha e a lagoa de Óbidos, segue-se
a estrada ordinária, que, sobranceira á faixa da linha férrea, per-
mitte em certos pontos abranger com a vista as extensas terras
que, em suave declive, descem até ao mar. Essa estrada, como
todas as que atravessam a região, é uma paisagem continua e
dificilmente se encontrarão outras que se lhe comparem. Ramalho
Ortigão, referindo-se a uma d^ellas, confessa-o também :
A estrada a S. Martinho e a Alcobaça é simplesmente maravilhosa de pai-
zagem ; e nada vi jamais para lhe antepor como tranquilla, risonha e pacifica
expressão da natureza rústica e da vida rural. Na grande planicie, em tomo
dos pingues campos de Alfazeirao, a pequena bahia de S. Martinho do Porto
parece embeber-se e penetrar na poética doçura do solo, com a voluptuosi-
dade de um beijo aquático dado á campina pelo oceano. Para o lado opposto
do caminho até á cordilheira que vem de Cintra, e cujo perfil violáceo se
esbate ao longe nas transparências do céo, é o largo e majestoso valle, sal-
picado de casaes alvejantes, entre as vastas searas ondulosas e os densos
bosques de pinheiros sobre consecutivos e suaves cômoros virentes de vege-
tação brava, cobertos de fetos, de giestas e d*urze, desabrochando á beira da
estrada em flores que se não vêem ao longe bebidas pela grande massa verde-
negra, e são as estrellas douradas do tojo, os turbantes azues das alcachofras,
e as pontas prateadas das moitas de trovisco, sobre que caem em regaçadas
do vallado os cachos das madre silvas >.
Cintra. — Para quem parte de Leiria, duas estações de verão
se lhe offerecem proximamente a igual distancia: Caldas da Rai-
nha e Cintra. Deixemos porem a primeira para quando nos occu-
parmos das praias e estancias d'aguas ; tomemos a linha de Lisboa
e, mudando de comboio no Cacem, sigamos para Cintra, onde
iremos encontrar a temperatura mais idealmente fresca e conso-
ladora. Assente num massiço de granito que, em época relativa-
mente moderna, irrompeu do terreno cretacio envolvente, a villa
deve á natureza especial do seu solo a vegetação maravilhosa
que veste toda a montanha e as aguas preciosas que surgem por
toda a parte.
Alem do paço real, que é um dos mais interessantes e sugges-
tivos edifícios do país, Cintra conta nas suas encostas uma longa
serie de magnifícas quintas, muitas das quaes dignas de serem
Farpas, vol. i.
48
O pais português
visitadas. O facto que porem a torna mais notável é a grande
diversidade dos seus panoramas e pequenas paisagens. De qual-
quer elevação a que se suba, avista-se sempre a vasta campina,
que se estende no sopé da montanha, limitada a poente pelo mar
e a nascente por uma cadeia de cerros pouco elevados. Para
norte o horizonte é illimitado. E nesse chão extensissimo que fica
OLHANDO DO CASTELLO DOS MOUROS
Mafra, lá ao longe ; mais perto, Collares ; á esquerda, as Azenhas
do Mar; e depois um rosário de outras povoações menores. Mas
esse panorama, pela sua enorme extensão, nem dá paisagem nem
geralmente chega a ter cor; á distancia que fica, e afora certa
época do anno, o aspecto d'essas terras é pardacento. O encanto
para o pintor reside propriamente nos mil incidentes que nos sur-
prehendem a qualquer volta do caminho dentro da povoação e nos
terrenos montanhosos que a envolvem, a pequena paisagem local
emfim.
Assim o sente também Eça de Queiroz, quando nos des-
creve Cintra num dos seus romances. A descrição apparece
o solo, o clima e a paisagem
49
entrecortada pelo dialogo travado durante um passeio através
da villa ' .
Primeiro, um aspecto assaz frequente das encostas :
Parara diante da grade d*onde se domina o valle. E d*ali olhava, enleva-
damente, a rica vastidão de arvoredo cerrado, a que só se vêem os cimos re-
dondos, vestindo um declive da serra como o musgo veste um muro, e tendo
áquella distancia, no brilho da luz, a suavidade macia de um grande musgo
escuro. E n'esta espessura verde-negra havia uma frontaria de casa que o inte-
ressava, branquejando, afogada entre a folhagem, com um ar de nobre repouso,
debaixo de sombras seculares. . .
Depois, um pequeno lanço de estrada que fica de memoria
desde a primeira vez que se visita Cintra, porque nos serviu de
refugio ás horas de calor e também porque, na transição rápida
da luz viva para a luz coada através da folhagem, elle se nos
desenhou rapidamente á vista com harmoniosa distribuição de um
quadro pictural:
Era apenas um bocadito d'estrada, apertada entre dois velhos muros co-
bertos d*hera, assombreada por grandes arvores entrelaçadas, que lhe faziam
um toldo de folhagem aberto á luz como uma renda : no chão tremiam man-
chas de sol : e na frescura e no silencio, uma agua que se não via ia fugindo e
cantando.
Eça sente vivamente todos estes aspectos successivos, tem
a visão aguda do impressionista que rapidamente fixa, na man-
cha, os movimentos mais subtis, pela opposição e gradação dos
valores.
Chegados aos Sitiaes, só então é que o panorama da baixa
campina, agora toda verdejante, no começo da primavera, im-
pressiona um dos excursionistas, que é artista. Ainda assim é so-
bretudo o eflfeito da luz na amplitude do ceu puríssimo que fere
a sensibilidade hyperesthetica do observador. Mais tarde, em
plena e desolada charneca alemtejana, iremos encontrar a mesma
nota idealizante e pantheista, fixada por Fialho de Almeida.
Cruges, no entanto, encostado ao parapeito, olhava a grande planicie de
lavoura que se estendia em baixo, rica e bem trabalhada, repartida em quadra-
Os Maias, vol. i.
5o
O pais português
dos verdes-claros e verde-escuros.. . . Tiras brancas de estradas serpeavam pelo
meio: aqui e além, n'uma massa de arvoredo, branquejava um casal : e a cada
passo, n'aquelle solo onde as aguas abundam, uma fila de pequenos olmos reve-
lava algum fresco ribeiro, correndo e reluzindo entre as hervas. O mar ficava
ao fundo, n'uma linha unida, esbatida na tenuidade diííusa da bruma azulada :
e por cima arredondava-se um grande azul lustroso como um bello esmalte^
tendo apenas, lá no alto, um farraposinho de névoa, que ficara alli esquecido,
e que dormia enovellado e suspenso na luz. . .
O passeio termina quando, erguendo os olhos, se lhes de-
para a chapada da Serra, que, desde os Sitiaes, sobe até á
cumiada em que assenta a Pena,
A impressão é de profundo
assombro.
'••■«.V'
..-#'-*'
No vão do arco, como dentro de
uma pesada moldura de pedra, brilhava,
á luz rica da tarde, um quadro maravi-
lhoso, de uma composição quasi phan-
tastica, como a illustração de uma bella
lenda de cavallaria e de amor. Era no
primeiro plano o terreiro, deserto e ver-
dejando, todo salpicado de botões ama-
rellos; ao fundo, o renque cerrado de
antigas arvores, com hera nos troncos,
fazendo ao longo da grade uma mura-
lha de folhagem reluzente; e emergindo
abruptamente d'essa copada linha de
bosque assoalhado, subia no pleno res-
plendor do dia, destacando vigorosa-
mente num relevo nitido sobre o fundo
de céu azul claro, o cume airoso da
A PENA serra, toda côr de violeta escura, co-
roada pelo Castello da Pena, romântico
e solitário no alto, com o seu parque sombrio aos pés, a torre esbelta perdida
no ar, e as cúpulas brilhando ao sol como se fossem feitas de ouro. . .
A commoção mais extraordinária que, acerca de Cintra, se
encontra expressa em todas as literaturas é porventura a que
Byron eternizou na Peregrinação de Child Harold. Ella attinge
até uma excepcional acuidade, graças ao contraste violento em
que nos apparece, relativamente aos versos anteriores onde o as-
pecto de Lisboa e o caracter dos seus habitantes são apresenta-
o solo, o clima e a paisagem 5 I
dos com cores pouco amáveis para nós. O genial poeta confes-
sa-se ofFuscado pelas maravilhas que o cercam de todos os lados^
desde o sopé da montanha ás cumiadas e, num impeto do amargo
enthusiasmo, exclama: O' natureza, para que desperdiças os teus
thesouros com tal gente ? . . .
Os artistas não são, porem, os únicos que ahi experimentam
tão superiores impressões estheticas. Os homens de sciencia affir-
mam-se igualmente commovidos perante a superior belleza do
sitio. Em i88ò, por occasião do Congresso de Anthropologia e
Archeologia prehistorica, os seus membros fizeram a excursão de
Lisboa a Cintra, por Cascaes, e eis como um d'elles refere as
impressões ahi recebidas » :
Ao meio dia. . . partimos de Cascaes para Cintra. Durante muito tempo a
estrada sobe sempre, ladeada de tabaibos e piteiras gigantes, através de uma
região árida, seca, quasi nada cultivada. Mas, ao chegar a Cintra, o aspecto do
solo muda de todo; reapparece a verdura e, de repente, ergue-se na nossa
frente uma elevada montanha, coberta de vegetação deslumbrante, da qual
emergem de onde a onde enormes rochedos de granito acinzentado, que o
palácio real da Pena domina lá do alto.
Percorremos de carruagem os primeiros contrafortes da serra. De cami-
nho, fui eu examinando os blocos de granito que cobrem o solo por toda a
parte, tanto mais dignos de estudo quanto é certo serem de origem relativa-
mente recente e pertencerem á época terciária. A primeira vista dir-se-hia que
esta accumulação desordenada de penedos procede de um violento cataclismo ;
mas não é assim : as formas extravagantes, as varias posições que elles tomam
explicam-se simplesmente pela acção dos agentes athmosphericos.
Chegados a meio da encosta, deixamos a carruagem e percorremos a pé
uma serie de jardins onde os arbustos e as flores attingem dimensões que eu
nunca vira em parle alguma : as hortênsias azues e côr de rosa formam verda-
deiras moitas ; os héliotropos, as fuchslas são do tamanho de arvores. Entra-
mos em seguida no parque real e, durante cerca de duas horas, e sempre
subindo, envolve-nos uma esplendida vegetação. As arvores mais raras cres-
cem com extraordinário vigor. Aqui surgem grupos de Araucária imbricata,
excelsa e brasiliensis de porte gigantesco, Eucalyptus enormes, pinheiros de
todas as espécies ; alem os Leucodendrons, cujas folhas brilham ao sol como
se fossem de metal ; logo adiante uma verdadeira mata de japoneiras de alguns
metros de altura ; e, por toda a parte, aguas correndo ou despenhando -se de
muito alto, que atravessamos em pontes do mais pittoresco aspecto. As encos-
tas tomam-se Íngremes e, antes de chegarmos á Pena, montamos nos burros...
para mais commodamente terminarmos a nossa excursão.
I Cotteau, Le préhistorique en Europe, 1889.
52
o pais português
Ha pouco tempo ainda, tive occasião de realizar a excursão
de Lisboa a Cintra na companhia do illustre musico e dramaturgo
allemão Dr. Richard Strauss, durante a serie de concertos de or-
chestra que dirigiu em Lisboa. E julgo interessante aproximar, da
impressão esthetica que encontrei nos Maias de Queiroz, a do
artista germânico que habita uma grande parte do anno na região
dos Alpes bavaros.
Havia chovido no dia anterior e, em Cintra, a vegetação tinha
um aspecto viçoso que eu nunca lhe conhecera; para mais,
uma absoluta serenidade na
atmosphera. Subimos á Pena
pelas duas horas da tarde.
E, como o Dr. Strauss desde
Lisboa não se cansara de ver
«um jardim» em cada ponto
do trajecto, eu prevenira-o de
que ia achar-se mergulhado
na mais luxuriante vegetação ;
que até ahi nada lhe podia
dar ideia do que fosse a ve-
getação da Pena. E, já agora,
trancreverei para aqui a des-
crição que então publiquei
acerca d'esse passeio.
Fomos pela estrada do syndi-
cato. O automóvel trepava as ver-
tentes da serra como que possuído
de sentimentos heróicos; parecia
que nos arrebatava da terra aos al-
tos cimos. E a j)Ouco e pouco ia-nos
envolvendo a mais densa e variada
floresta: todas as espécies dos cli-
mas temperados e da zona tórrida,
todas as flores., todas as cambiantes
de luz na mais rica das polychro-
mias. E a mais inefável serenidade
penetrava a alma maravilhada do
artista, que, de encantamento em encantamento, parecia dobrar ao peso da
suprema ventura.
Dêmos a volia inteira ao parque, contemplámos a extensa planura e o
mar, do alto castello, e descemos pelo caminho dos lagos. Quando ahi chega-
A PENA VISTA DOS LAGOS
o solo, o clima e a paisagem
53
mos, e chegámos já bastante tarde (porque não havia arrancar o grande artista
do sitio em que parava para mais uma vez se extasiar), voltou-se elle para nós
e disse-nos :
— Hoje é o dia mais feliz de toda a minha vida. Conheço a Itália, a Sicília,
a Grécia, o Egypto, e nunca vi nada, nada que valha a Pena. É a cousa mais
bella que tenho visto e só me acompanha um pesar, não ter aqui, ao pé de
mim, minha mulher, a minha companheira.
E logo adeante, erguendo a estranha cabeça para o castello :
— Este é o verdadeiro jardim de Klingsor; e lá no alto está o Castello
do Santo Graal.
A CAMINHO DO TEJO
Nesta evocação do Parsifal de Wagner, Richard Strauss
achava-se de facto em perfeita communidade esthetica com esse
outro grande artista que foi Eça de Queiroz. O que mais uma vez
banalmente demonstra que — les beaux esprits se rencontrent.
O Tejo e Lisboa. — Ha indubitavelmente tres rios notáveis em
Portugal : o Douro, o Mondego e o Tejo. O primeiro reune em si
uma longa serie de variados e, por vezes, tremendos panoramas
num percurso relativamente curto; desde a sua entrada em Por-
tugal, pela alcantilada garganta que vimos em Miranda, até ao
espraiamento idylico do Freixo, Campanhã e Areinho, os aspec-
tos sempre intensos da paisagem succedem-se como no desenro-
5^ O pais português
lar de uma viagem de sonho. O segundo, em contraste absoluto
com esse, desde que entra nas terras do calcareo, só ahi também
adquire igual, se não maior intensidade na nota que o caracteriza —
a de inexcedivel doçura, alliada á graça mais carinhosa. Estes dois
rios, pela natureza e dimensões dos seus valles, prestam-se pois
admiravelmente á paisagem de arte ; ao passo que o Tejo, na parte
mais importante do percurso, desde a barra até Santarém, ou tal-
vez ainda mais para cima, parece escapar-lhe pela sua vastidão.
O curso pittoresco do Tejo, que tem o seu ponto culminante
nas Portas de Rodam, termina com a região montanhosa, ex-
tremo S. da nossa primeira zona da paisagem. Quem lançar os
olhos para a carta geológica do i volume, encontra esse facto justi-
ficado no espraiamento formado por terrenos de sedimento mais
ou menos antigo, em redor de Thomar e Abrantes. Até ahi, ser-
vindo-nos da expressão de um ironista de Lisboa que se ignorava
e descrevia o Douro, é o Tejo um rio de provinda, e é ahi que
passa a ser um i^io de capital e a dar-nos, quando muito, impres-
sões rápidas, em massa. No Tejo inferior tudo é luz e mancha —
o traço não basta para fixar a sua majestade e grandeza.
Vejamos porem as paginas descritivas que d'elle nos tem dado
os nossos escritores em vários momentos do dia, desde o romper
da aurora até ao pôr do sol:
Um dia, ao amanhecer partiu para Santa Apolónia A madru-
gada rompia. A cidade estava silenciosa, os candieíros apagavam-se. As vezes
uma carroça passava rolando, abalando a calçada ; as ruas pareciam-lhe inter-
mináveis; saloios começavam a chegar montados nos seus burros, com as
pernas balouçadas, cobertas de altas botas enlameadas ; n*uma ou n'outra rua
uma voz aguda já apregoava os jornaes ; e os moços dos theatros corriam com
o pote da massa, pregando nas esquinas os cartazes.
Quando chegou a Santa Apolónia a claridade do sol alaranjava o ar por detraz
dos montes da Outra-Banda ; o rio estendia-se, immovel, riscado de correntes
de còr de aço sem lustre; e já alguma vela de falua passava, vagarosa e branca >.
Esta notável grisalha, cuja lingtta nova já impressionou um
subtil espirito *, dá-nos a impressão, a mancha luminosa de uma
madrugada fria no Tejo. Duas pinceladas, duas faixas de um cin-
1 Eça de Queiroz, O Crime do Padre Amaro.
2 Bruno, Á geração nova.
o solOy O clima e a paisagem
55
zento pallido, horizontaes, e eis o quadro — o rio na sua vastidão
completa. E os que empregam outras formas de arte, quando
começam pelo pormenor da linha, rapidamente o abandonam, por
insuíficiencia ou incapacidade expressiva.
o TEJO E3C TANCOS
No clarear de uma manha de setembro que paizagem aquella, vista do alto
da montanha !
A barra, o cabo, o oceano ; a Arrábida ao sul ; ao norte Cintra. O sol
rompendo na orla do nascente, em braza, sem vibração de luz a principio, agora
jogando as primeiras frechas ás cumiadas de Palmella, ferindo as ondinhas
verde-claras do Tejo. A sul, escuro o céo ; no remoto occidente, ainda mal
desvanecidas as estrellas ; na aragem, apenas sentida, o sopro indizível e virgi-
nal da madrugada ; os gallos da aurora soltando a voz crystallina pelos casaes
perdidos entre as hortas e pomares. O Jamor, nas voltas sinuosas, denun-
ciando-se no trepido murmúrio, atravez da névoa opalina condensada sobre o
valle. Ao altear do sol, refrescando o norte limpido, dezenas e dezenas de
moinhos agrupados ou disseminados pelas cristas da serra, girando as suas
aspas brancas e produzindo-nos a visão de que se movia toda aquella gran-
diosa e deslumbrante paizagem. Agora foram-se os moinhos, que tocavam de
sabor alpino e agreste o ondulado e maravilhoso quadro. As fabricas deram
cabo d*elles e deram-nos peor pão e mais caro ' !
I Bulhão Pato, Memorias iii.
56
O pais português
Tanta vida, tamanha vastidão deslumbram e só se sentem
movimentos, manchas, cores, luz e sons. Os objectos apontam-se
apenas para nos orientarem, mas sem grande valor funccional ou
expressivo. Para se abranger o Tejo, o afastamento necessário
annulla o pormenor pittoresco.
E se assim é do lado de Lisboa, também não deixa de o ser
da margem esquerda, e tanto com relação ao rio, como ao quadro
que lhe forma a margem.
A ondulação suave das
linhas, attenuada pela gran-
de distancia focal necessária
para se abranger integral-
mente o panorama de Lis-
boa, faz com que, da outra
banda, a cidade se estenda,
valha sobretudo horizontal-
mente e como massa, que
não pelo pittoresco do por-
menor em altura. E será
talvez por isso que Eça de
Queiroz no-la faz ver «aque-
cendo a sua velhice ao soa-
lheiro, cansada de proesas
e mares» >.
Da ondulosa colina (a Ata-
laia, em frente de Lisboa) em que
se alevanta o santuário, o olhar,
correndo sobre os campos, hor-
tejos, vinhas, matto e pinhaes de
rama curta, íluctua, embriagado
da côr, vindo topar a norte a expansão que o Tejo faz, chamada mar de palha ^
em cujo fundo, além, num recorte de montes, Lisboa desenrola o seu panorama
esfumaçado. É uma coisa de sonho romanesco, essa admirável grisalha da ca-
saria polyedríca, comprimindo-se, tamanha, nos valles e gargantas, trepando ás
cavalitas dos outeiros, molhando os pés nos cães, cantando pelas bôccas dos
sinos, ou nos meios cansaços da faina, ennovelando a tumultuosa respiração
pela guela das empanachadas chaminés !
Eli PLENO TEJO
> Contos,
o solo, o clima e a paisagem
As primeiras obliquidades do sol, pendendo em cataractas d*oiro para a
barra, magia não sei qual toca de apotheose o panorama da cidade e seus con-
tornos, que a própria gente rústica a cada passo lança os olhos, mordida dessa
melancólica seducçao.
Na agua do rio, azul lavado, com barcos de aza vermelha, e uma facha
de espelho reflectindo a casaria dos cães de ponta a ponta, claridades de verão
plaqueam lagos, onde gaivotas singram, entre as arripiadas tranças da corrente ;
limpido o ceu, mui alto, com absurdos d'ideia artezoando a cúpula infínita,
deixa o espírito oífegar á coca de problemas — uma poeira paira, rolando pó-
lens, espectralisando a luz, idealizando, recuando, revelando planos, valores,
puindo na foz do rio a fornalha solar que incende a barra, e escorre n'agua
listrões de oiro sangrento.
Apezar da distancia e das três léguas de mar que nos separa, a cidade inda
assim campeia enorme, e a intumescência da maré parece que a traz a nós,
crescendo da agua, como um panno de fundo no reverso do qual alguém se
agita para alem d'agua, um silencio magnifico, e como que a espectação
hypnotica dum grande sonho de fumista. È esse silencio que, com a luz phan-
tastica do poente, relevando e socovando faces na casaria acavalada pelos
montes, parece tomar a cidade maior, a sombra delia mais diaphana, e mais
estranha a sua poesia evocativa. Com a inclinação do sol, arde em ala o poente,
e o corredor da barra é como um grande foco de labaredas escarlates, fulvas,
brancas, acharoadas de cereja e rosa e madre-perola, donde se côa, em feixe
divergente, um turbilhão de poeira luminosa, que trespassa as formas, e apaga
as linhas rigidas, fazendo de tudo quanto doira, silhuetas.
A noite vem, serena, forte e limpida, dos cerros, que os corvos enchem dos
seus gritos viris, curvando voos De roda o matto cheira á rezina das
plantas veraniças ; ondas de mosquitos zumbem de raspão ; e o immenso fundo
da cidade, do Tejo e das montanhas, passa de vagar por mil cambiantes,
emmurchece de cor, sínistrisa-se de fumaradas, laivos, onde fios de vidraças
chamejam de sangue e fogo ainda, como feridas i
Dir-se-hia um quadro de Turner, como o Por do sol no gran
canale de Vene:{a, ou The Fighting temeraire, qualquer d'elles ca-
racterizado por uma agua tranquilla e vasta sobre que pousa e se
reflecte um ceu de fogo, uma fornalha ardente com toda a serie
de tons que as chammas possam tomar, em que o quadro envol-
vente não tem palor^ ou não existe.
Da outra banda do Tejo prolonga-se ainda por algum tempo
a segunda zona esthetica do nosso systema. E, logo em frente de
Lisboa, temos o sitio que, para muitos, é o mais pittoresco de
> Fialho de Almeida, A Esquina.
58
O pais português
Portugal — a região de que a Serra da Arrábida é o centro e está
comprehendida entre as bacias do Tejo e Sado. Subamos ao ponto
mais alto de Almada e olhemos de lá,
de onde os olhos se desafogam correndo desde o Castello de Pal-
mella até Nossa Senhora do Cabo. Quadro enorme que abraça todo o cimo
ondulado da serra da Arrábida : pomares, vinhedos, vastíssimos tratos de pin-
heiral, que se perdem nos longes das planuras que vão morrer nas faldas da
OLHANDO PARA A OUTRA BANDA
montanha divisória do Sado e Tejo. O esmalte dos casaes, aldeolas, logarejos,
moinhos de vento, campeando de entre massiços de verdura ; a ampla bahia do
Alfeite, tudo ou no referver ao dia ou no descair da tarde, com as frechas ho-
rizontaes do sol ponente, tem variedade, expressão e viveza como em poucas
partes se encontram.
A tarde era de verão, serena e calmosa ; mas arejada por um mareiro do
oceano salgadio e fresco. As copas frias do espadeiro, da talia, do boal, vinhos
d'este torrão celebrados já por Gil Vicente e Camões, accendiam até a alma
de um velho que lá estava »
Ou então, subamos ao topo da própria serrania, com Oli-
veira Martins, que nos leva lá e se compraz em ter ahi uma
I Bulhão Pato, artigos dispersos.
o soloy O clima e a paisagem
59
visão semelhante á que nos descreveu na esplanada da Es-
trella:
A nossos pés descem as anfracluosidades da serra vestidas de espessas
mattas, as giestas douradas, as bagas carmineas dos medronhos, o rosmaninho,
a alfazema, misturando todos os seus aromas inebriantes. Sobranceiros a Pal-
mella, vemos-lhe os muros ameiados; Setúbal desenha-se no valle aberto n'um
jardim de laranjaes ; no fundo qaebram-se as ondas contra as rochas do Cabo ;
e para o lado opposto as collinas
da fidalga Azeitão ondulam por so-
bre o espesso tapete de pinhaes que
vae morrer no Tejo. Erguendo a
vista, divisamos além do mar a pon-
ta de S. Vicente ao sul; para leste,
Évora de um lado, as campinas do
Riba-Tejo do outro; para norte
Lisboa em amphitheatro sobre a
sua bahia; alem d*ella Cintra e
os montes da Estremadura cista-
gana, — a qual até ao Mondego
forma a primeira zona estreme-
nha «...
E, com Martins ainda,
atravessemos o Tejo um pou-
co mais acima, em frente de
Santarém, e teremos uma
ideia completa d'essa formo-
sa zona portuguesa que co-
, NO RIBATEJO
meçou um pouco para lá
de Aveiro. Elle mesmo se encarrega de no-la fazer ver:
O litoral do centro, entre o Mondego e o Tejo, é a parte mais benigna do
país. O ar temperado pelas brisas do mar a flora é variada, reunindo o
pinheiro bravo e o manso, a vinha, a oliveira e o carvalho, o trigo, o milho e
o centeio. Desde os campos que o Mondego todos os annos fertiliza, por Leiria
e Alcobaça vestidas de florestas, pelas veigas do Nabão, chegamos ao Tejo ; e,
iranspondo-o, entramos no seu valle, que é para nós como o Nilo é para o
Egypto. N'elle com effeito o campino nos traz á ideia o typo d'essas raças du
Africa setentrional, lybios ou mouros A cavallo, de pampilho ao hombro,
Historia de Portugal, i.
6o
O pais português
grossos sapatos ferrados, gorro vermelho na cabeça, o ribatejctno, pastoreando
os rebanhos de touros nas campinas húmidas e vicejantes, é como um beduíno
do Nilo. A vasta planicie matizada de povoações e bosques de choupos, de
salgueiros e de álamos, contornada ao longe pelas cumiadas das serras, tem o
caracter das paizagens do Egypto, ou de Tunis, dominadas pelo esqueleto
giganteo do Atlas i.
A paisagem doesta região impressiona os estrangeiros em vir-
tude da vegetação que lhe fixa o caracter. «Uma bella e larga
NO RIBATEJO
estrada, ladeada de choupos altos», assim é designada a que
seguiram até Mugem os excursionistas do Congresso de Archeo-
logia em 1880 '.
E sempre o choupo a arvore que mais caracter imprime na
paisagem da região.
Alemtejo. — Entre a zona mais suave e graciosa e a zona mais
alegre e mexida do país, estende-sc por uma enorme planicie a
mais triste e menos bemfadada de todas, o Alemtejo. Não falo
das cidades, nem de algumas villas, poucas na realidade, em que
a vida é farta e larga. Falo do geral da província e sobretudo
das enormes extensões em que só se encontram azinhos, sobros
e algumas oliveiras, as estevas de flores tristes e timidas, trigo e
> Loc. cit. Nesta transcrição tenho em vista apenas a nota da paisagem
portuguesa ahi contida, independentemente da analogia de caracter achado
por Martins com a paisagem do Nilo, que para mim é absolutamente incom-
prehensivel. Os que lá foram é que poderão julgar e dizer de sua justiça.
2 Cotteau, loc, cit.
o soloy O clima e a paisagem
6i
calor africano no verão, enormes enxurradas e, por vezes, neve
no inverno, e uma população dispersa, rala. Toda a parte baixa
do Alemtejo, emfim. E, como insignificante seja a parte monta-
nhosa da provincia', apenas um pequeno canto no seu extremo
norte junto da fronteira espanhola e a linha meridional de serras
que, de nascente a poente, a separam do Algarve, pode dizer-se
ARREDORES DE SANTARÉM — ESTRADA DE ALMEIRIM
que a monotonia da planura álemtejana domina em toda a nossa
terceira zona esthetica.
Évora e Beja são cidades dignas da visita dos que se occupam
de cousas de arte e archeologia, a primeira principalmente.
A grande cultura vae invadindo a provincia, de norte a sul;
a população cresce, lentamente; os meios de transporte e as
condições de vida vão melhorando. Mas, em virtude da sua grande
extensão e da natureza do seu solo, por vezes apparentemente árido,
essa provincia, que necessariamente se ha de converter num celleiro
collossal, está por emquanto muito longe da situação a que deve
aspirar.
E comtudo o Alemtejo tem um aspecto, uma feição esthetica
muito sua e muito interessante que, por uma extrema simplicidade
de linhas, escapa á grande maioria. Artistas notáveis demons-
traram a sua existência, indo ahi buscar o thema de commoção
62
o pais português
para as suas obras: D. João da Gamara e Fialho de Almeida,
entre outros. D'essa terra, apparentemente ingrata c cruel, nasce
como em qualquer outra o symbolo artístico; ella tem o seu
folklore regional, não raras vezes penetrado de sentimento doce,
posto que melancólico.
Mas, até agora, só sei de almas habituadas á dor que se sin-
tam bem dentro da suggestão esthetica ahi possível. As almas ale-
gres nada teem que ver em taes
sítios. Faltam-lhes as cores, a
gente, o bulício, sons, vivaci-
dade, alegria emfim.
D. João da Gamara conhe-
ceu muito profundamente a
terra alemtejana e a sua vida
própria. São exemplo d'isso a
sua comedia Os Velhos e o dra-
ma, ou melhor a estranha tra-
gedia A Triste Viuvinha, Elle
até na charneca deserta se sen-
tia muito bem:
NO ALTO DA SERRA DE S. PAULO
Sahi de manhã, e o dia todo deixei-me andar perdido por montes e valles,
a beber o sol, a ouvir as abelhas, a ver o vôo das pegas entre as urzes e o ros-
maninho, o alecrim e as murtas, e toda aquella verdura, ainda mais alegrada,
de espaço a espaço, pelos medronheiros em moita.
Mas a Semana Santa fora cedo n'aquelle anno, e rainhas da charneca eram
então as estevas, todas em flor ainda. As herdades pareciam um grande mar
branco e verde, que um sopro perfumado fazia mover docemente.
Nos sobreiros cantavam os irigueirões, repelindo sempre a mesma can-
tiga, e uma poupa trinava nas suas duas notas, que se ouvem de tão longe.
Ás vezes as pegas cortavam-me adeante o caminho, e dois corvos, lá
muito alto, passavam crocitando, de viagem.
E nem uma voz humana, nem um signal de homem n'aquella charneca
immensa !
Já vinha anoitecendo e eu era longe de casa. Demorei-me a ver desappa-
recer o sol detraz da serra que divide as aguas do Mira e do Sado.
Aquietavam -se os rumores da charneca. Passaram uns sopros mais frios e
as folhas das arvores estremeceram.
Um algarvão passou cantando, e dois noitibós puzeram-se na minha frente
a saltitar pelo caminho, dando voos curtos quando eu me approximava.
o solo, o clima e a paisagem 53
N'uma clareira do azinhal o rosmaninho crescia mais denso. Já sobre elle
as abelhas haviam deixado de zumbir e, á bocca da noite, com o sereno que o
humedecia, embalsamava o ar mais intensamente.
Fugira o sol. As papoulas das estevas começaram a enrolar-se.
Já luziam muito brancas, muito frias, no céo, as primeiras estrellas.
Um rouxinol poz-se a cantar para os lados do rio.
Mas o rouxinol da charneca não canta como o dos salgueiraes do Tejo c
do Mondego; é mais triste, menos variado o seu canto '.
NO ALEMTEJO
Nessas duas peças que citei encontram-se por vezes trechos
de um symbolismo profundo. Assim, passando-se ambas ellas em
terras de trigo, o moinho converte-se no leitmoiiv de que todos
os outros themas são como que mero desenvolvimento. Nas situa-
ções alegres — aque cousas bonitas dizem as camarinhas!» Na
situação tragicamente dolorosa da Triste Viuvinha, ella ouve —
«Aquelle moinho a uivar, que tristeza!»
Fialho de Almeida, nas paginas que conheço, dá-nos do Alem-
tejo aspectos de grande aspereza, trágicos. Quer no Idfllio
triste ^ de que transcrevo em seguida a descrição da região mon-
tanhosa da provincia, mas sobretudo nos Ceifeiros ^, pagina notá-
vel pela nota de ansiedade crescente que se apossa dos pobres
trabalhadores do campo, no tempo da ceifa dos trigos, sob um
> Estes excerptos pertencem todos á Pátria Portuguesa, 1906.
2 In O Pais das Uvas.
3 In i4 Esquina.
^A O pais português
calor de enlouquecer, torturante, asphyxiante, sente-se a alma do
artista revoltada contra um espectáculo cruel, que communica
á sua commoção esthetica uma acuidade e vibração excepcionaes.
Descortinado das cristas, o panorama era grave, concentrado, aus-
tero de rythmo. Uma natureza carnuda, pouco fecunda, brutal de perfil, mos-
trava as mamellas viris, n'este vasto socego de virgindade dormente que nenhum
desejo espicaçava ainda. De roda, valles cobertos de tojo, piorneiras, scillas
e troviscos, sem caminhos, sem pássaros, sem florações : collinas ásperas fazendo
uma espécie de galope d'ondas, por quarenta léguas de raio, té aos limites do
céO; e lá longe, marcando os quartéis generaes das herdades, cazalitos brancos
com medas de palha á bocca das arribanas grandes e agudas como obeliscos —
lá longe, entre azinheiras nodosas, que tinham o ar de monumentos fúnebres,
contemporâneos dos dolmens.
Grandes sobreiras estacavam por toda a banda, com physionomias lúgubres,
contorcendo as pernadas n'uma musculatura furiosa e vermelha. A baixo d'es-
tes sinistros colossos, não tinha exuberancias nem mimos a primavera. Húmidas
penumbras estagnavam á flor da terra : reles camilhas de musgos, fulvas, verde -
negras, côr de sangue pisado, cobriam o chão tortuoso, por cujos rasgões rom-
pia a ossatura das rochas, com esqualidezes de hombros furando os andrajos
d' um pedinte. Em face, nenhuma nesga de horisonte sequer adivinhada por
entre dois cabeços mais brancos. Estevaes por toda a parte, urze pouca. . . só
os medronheiros protestavam cem o seu verde vivo, contra as sombrias gam-
mas do matagal. E um silencio 1 Por ali não voavam cotovias. Algum passarito
do matto, d 'estes trepadores cinzentos, ágeis, pequeninos, que esvoaçam em
espiral nos troncos dos carrascos, receosos da própria palpitação das suas azas,
ou o cacarejar traiçoeiro das viboras, cujos sobresaltos guardam o frenesi ma-
cabro de pequenos espíritos malfazejos da charneca.
Entretanto o conto termina por uma verdadeira paisagem de
alta e calma belleza:
Era em começos de junho. No céo nem a mais leve sombra : profundezas
de anil palpitavam n'uma suavidade bonançosa : o sol ia subindo, e apenas o
griffo, d'azas abertas, quazi immovel no azul, dir-se-hia uma grande traça
roendo o manto de Nossa Senhora. Ainda alguns bois colhiam a dente, com
mimo, as herbagens razas do solo.
Eu vivi muito tempo na parte mais inclemente e inhospita
do baixo Alemtejo. Mas ainda ahi vi que o homem tem sempre
meio de lutar contra a má sorte. Quem canta, seus males espanta.
O povo tem razão quando assim diz. Num dos meus passeios
pela charneca tive, uma vez, ensejo de ouvir a deliciosa canção
o solo, o clima e a paisagem 55
que abaixo transcrevo e que parecia erguer-se das entranhas
d'aquella terra infeliz, na mais intima identificação com a natu-
reza, e como que fazendo corpo commum com ella. Julgando
que essa era a nota mais sinceramente reveladora da tristeza da
região e dos seus habitantes, procurei defini-la no modesto conto,
que sou forçado a citar para exemplificação da minha theoria, e
pode intitular-se — A alma da charneca.
O calor era atroz. Partimos por volta da uma hora da tarde ; assim o exigia
o serviço. Os cavallos caminhavam resignadamente, meio entorpecidos ou con-
gestionados pelo sol implacável. Ao longo do caminho uma immobilidade e
silencio profundos, só quebrados de onde a onde pelo crepitar dos ramos de
esteva^ como de lenha mettida ao forno. Aves, cães, homens, todos evitam o sol
áquella hora ; os próprios insectos parecem reservá-la para a sua sesta diurna.
Sempre a passo e através de uma região monótona, onde não ha fontes, nem
pedras, nem cal, nem gente ; onde o solo rijo, argiloso, deixa passar as aguas
das chuvas sem as reter, em enxurradas collossaes que devastam c não fecun-
dam ; onde faltam portanto as alegrias descuidadas e communicativas das ter-
ras minhotas, de onde eu ia, e o imprevisto constante do generoso solo granítico.
Apenas de quando em quando algumas azinheiras fundindo-se na monotonia
envolvente.
E eu ia pensando que nem sempre aquella terra assim fora, erma, pobre e
melancólica. Contam que em tempos passados havia sido rica e alegre ; que a
agricultura prosperava ahi, graças aos trabalhos da mourama. Vieram depois
as guerras ; e os mouros abalaram com o seu saber e os seus segredos de fazer
cousas. Hoje^ a charneca parece absorta^ ou esquecida das alegrias festivas d 'es-
ses tempos. Como corpo sem alma.
De repente, muito ao longe, por trás de um casal, de um monte, como lá
dizem, ergueu-se uma melopeia lenta e suave, verdadeira canção de steppe, de
um desenho levem ante ondulado e de uma harmonia como que horizontal.
í
fj'nii:?rv,., , , ij j 1
túc^^ia, — ^^-^eact.^ Í0UUMA. -^^ ^CU.^4Ío l
As ultimas notas, num esbatimento prolongado e doce, perderam se quando
descíamos para o leito seco da ribeira. Do lado fronteiro prolongava-se o este-
val. Mas esse canto gerado em sítios de desolação acompanhou-nos ainda por
5
66
O pais português
largo tempo. A alma da charneca, alma de moura encantada, infiltrava-nos, em
seducções de arte^ toda a sua tristeza e saudade das alegrias perdidas.
Algarve. — A viagem ao Algarve, que consiitue a 4.* zona do
nosso sysiema, eftectua-se hoje de duas formas: a marítima,
pelos vapores da carreira de cabotagem entre Lisboa e os portos
d'essa provincia extrema; a terrestre, pelo caminho de ferro.
o GUADIANA EM MERTOLA
O Guadiana. — Antes de construido o caminho de ferro pro-
priamente do Algarve, o viajante ia só até Beja, no troço alemte-
jano; ahi tomava a estrada ordinária até Mertola, assente em
amphitheatro, na margem direita do Guadiana, e descia o rio em
pequenos vapores, de Pomarão até á Foz. Oliveira Martins, no
livro que tenho citado, fala d'essa viagem em termos de quem
ainda conserva vivo o horror da impressão recebida. Para elle, na
chegada a Villa Real, experimentava-se a sensação «de quem
entra de um sertão em um jardim ; de quem deixa uma escura
gruta por uma luminosa planicie». Ao silencio e impassibilidade
o solo, o d ima e a paisagem g/-^
alemtejana, succede o constante movimento, a fala, o cantar de
uma população como os gregos das ilhas (sic).
Para Bulhão Pato, caçador romântico que nunca teve medo
nem a chuvas, nem a sol, nem a terreno de cabras, a viagem no
pino do verão foi uma delicia que terminou por uma caçada e
por uma pescaria no Pulo do lobo^ queda de agua e limite extremo
da navegação do Guadiana. Elle descreve-nos todos esses sitios
sob a persistente e enthusiastica commoção de uma alma de
artista num corpo tão habituado a bons como a maus tratos ', e
que não pensa em assustar-se com elles.
A viagem por caminho de ferro, ainda que se passasse de dia,
nada teria de interessante. Planuras sem incidentes desde Pinhal
Novo até Beja, o mesmo de Beja até Garvão. O mesmo solo in-
caracterrsco na subida da montanha divisória das aguas do Sado
e do Mira até ao Valdisca, que se atravessa em tunnel. E a des-
cida até Santa Clara de Sabóia, na vertente sul, nem por isso é
mais pittoresca. São os cerros que nos descreveu Fialho de Al-
meida.
A partir do valle do Mira nova subida, a da Serra do Caldei-
rão por S. Marcos até á Portella dos Termos, de onde definiti-
vamente se desce para o mar. Em Tunes bifurcação : para poente,
por Silves até Portimão e, brevemente, até Lagos; para sul até
Faro e, logo para nascente, por Faro, Olhão e Tavira, até Villa
Real de Santo António, na raia fronteiriça e foz do Guadiana.
Nesta ultima forma, o tourisie raro poderá experimentar a
sensação de contraste que tanto commoveu Oliveira Martins á
passagem de uma provincia para outra, no extremo leste do país.
Monchique. — Mas tem-na, e muito maior até, se quiser lançar
mão dos velhos processos de viajar por montes e valles. Quem
de Odemira, encantador oásis á beira do rio Mira e a meio cami-
nho entre o mar e Santa Clara de Sabóia, ou ainda doesta ultima
povoação, se metter á terrível serra da Mesquita e, a cavallo,
bem entendido, que não ha outra forma de o fazer, subir em di-
recção á Foya, cujo solo é o mais português que existe, chega ao
alto da serra e experimenta uma das mais extraordinárias e com-
plexas sensações estheticas que podem imaginar-se. Da cumiada
I Paisagens, 1871.
68
O pais português
granítica de Foya, e de Monchique, que lhe fica logo por baixo,
á sombra de um extenso bosque de castanheiros, olhando para
sul, lá do alto de quasi mil metros, abraçará toda a região, cor-
tada de infinitos pormenores de paisagem, que em leque se inclina
docemente para o mar num raio de vinte kilometros, e compre-
hende Portimão, Lagos e outras terras ainda. O panorama mara-
vilhoso apparece-lhe delineado com a nitidez dos climas africanos.
E elle dirá, com Martins e outros, que toda a natureza canta, mer-
gulhada numa luz de apotheose, que parece cantar, também ella.
MONCHIQUE
Toda a região da serra se presta ao estudo do paisagista, sendo
que, ás vezes, o faz desanimar pelos excessos da vegetação, como
no valle dos Pisões succede. Esses excessos dão-se tanto na quan-
tidade das plantas como na dureza dos tons, provenientes de um
solo fecundissffno e de um clima muito ardente.
Além d'isso, após os granitos encravados em carbónicos do
alto da Serra de Monchique, de um e de outro lado da baixa onde
assenta a linha férrea, valle que separa aquella serra da do Cal-
deirão, diversas faixas de calcareo vêem tornar ainda mais rica
e variada a vegetação da provincia. E, finalmente, como graças
ao seu clima, as arvores das zonas quentes ali possam viver ao
ar livre, ao castanheiro, oliveira e amendoeira, ás varias espécies
das zonas temperadas, aos massiços de figueiras e alfarrobeiras
dominantes na região de menor altitude, vem ajuntar-se a pal-
meira do esparto, para mais característico tornar ainda o fácies
especialíssimo da paisagem local.
o solo, o clima e a paisagem
69
Conheço poucas can-
ções algarvias e nenhuma
d'essas é notável pelo de-
senho melódico e muito
menos pela profundeza da
commoção que encerra.
São canções alegres, viva-
mente rythmadas, por ve-
zes irónicas ou de um
impudor brutalmente rea-
lista. Tudo porem me
EM LOULÉ leva a crer que esse país,
de gente muito mexida e
cantadeira, onde tudo canta e ri espontaneamente, não precisa
de canções mais dramáticas do que
TrAnnica, ti'Annica,
Ti'Annica de Loulé,
A quem deixaria ella
A barra do cachiné ?
Gente feliz, não ha duvida.
É para notar que o Al-
garve não seja para nós um
centro de attracção, que não
o visitemos como deviamos,
não o aproveitemos no sentido
do clima excepcionalmente re-
gular e seco do seus invernos
encantadores, das excellentes
condições de alguns dos seus
portos — Lagos, por exemplo;
fínalmente, da sua paisagem,
que só agora começa a ser
explorada pelos artistas pin-
tores. Nas duas serras que
a limitam a norte, essa pro-
víncia oíferece largo campo
de estudo e observação pic-
tural.
A LUZ NO ALGARVE
70
O pais português
Mas consignando o facto e em virtude d'elle mesmo, é que
também lamento o pouco conhecimento que os nossos escritores
tiveram d'essa terra, para nos poderem dizer o que ella lhes fez
sentir. Sobretudo o que eu desejo obter é a impressão do escritor
que não nasceu ahi e que, vindo de fora da provincia, está por
isso mesmo disposto para
receber impressões muito
mais intensas do que as
gentes da terra, indifferen-
tes ao que vêem todos os
dias. Conta-se que Flau-
bert, esse grande artista
tão sensivel á forma, ten-
do nascido e vivido em
Rouen, a maravilhosa ci-
dade gothica, só muito
tarde, e por a isso o leva-
rem, é que começou a per-
ceber o valor dos excepcio-
naes thesouros de arte ahi
accumulados.
Para os da terra, as
obras de arte passam des-
percebidas, a commoção
esthetica não chega a pro-
duzir-se. Por isso recor-
ro novamente a Bulhão
Pato, que assim nos descreve Uma alvorada no Algarve:
As estrellas no Algarve parecem maiores do que nas outras províncias de
Portugal. O azul do firmamento é, como o do mar Mediterrâneo e do ceo da
Itália, quasi azul ferrete.
Fim de agosto. Aragem branda e tépida. As figueiras nodosas, de folhas
verde-negras, avergam os ramos para o chão aplanado pela mão solicita do la-
vrador, ramos carregados de figo pincre, quer dizer, propicio para se apanhar
e dispol-o nos almanchares — esteiras onde se passam os frutos.
A abundância e variedade dos figos é enorme; todos deliciosos no aroma
e no sabor.
As felosas, verde-oiro, atravessaram o mar acudindo ás agudes — formigas
grandes com azas — e aos figos. Assim que assomam os primeiros alvores no
horisonte, revoam aos milhares pelos braços do figueiral.
MONCHIQUE — o PARAÍSO
o soloy O clima e a paisagem n j
A gula sae-lhes cara, que os rapazitos já lhes teem armado as esparrellas
onde caem aos centos.
Quando o sol descobre, os pequenos lá vão n*um vozear triumphal, devo-
rando figos e celebrando a victoria.
E a vida descuidada e alegre, em plena natureza, sem a me-
nor preoccupação dolorosa, na absoluta confiança paradisiaca !
E terminando aqui a minha longa jornada, embora mais tarde
deva referir-me ás especiaes condições climatéricas da provincia,
principalmente das suas praias, e olhando para trás, para o
caminho percorrido que me apparece docemente illuminado neste
entardecer em que escrevo, lembro-me das palavras com que
Eça de Queiroz fecha A Illustre Casa de Ramires:
«E Padre Sueiro... recolheu á Torre vagarosamente, no si-
lencio e doçura da tarde, rezando as suas Ave-Marias, e pedindo
a paz de Deus para todos os homens, para campos e casaes ador-
mecidos, e para a terra formosa de Portugal, tão cheia de graça
amoravel, que sempre bemdita fosse entre as terras».
António Arroyo.
o POVO PORTUGUÊS
ESDE O velho chronista, para quem o povo português
era, «de seu natural, terno e amavioso», até Eça de Quei-
roz, que na Ulustre Casa de Ramires formulou, quanto
a mim, a expressão perfeita da mais elevada porção
da gens portuguesa, muitos escritores teem procurado definir-lhe
a Índole e todos os portugueses teem, a tal respeito, emittido
opiniões decisivas.
Como, porem, nenhum homem illustre resista á critica do seu
criado de quarto e como, vistos de perto, todos os seres humanos
nos surprehendam mais pelos defeitos que teem e nos incommo-
dam, do que pelas suas qualidades superiores, muitas vezes inca-
pazes de nos impressionarem immediatamente, certo é que, na
maioria dos casos, essas apreciações reflectem apenas a resultante
do sentimento pessoal do escritor e das acções sobre elle exerci-
das pelo meio, e raro a impressão de um juizo critico assente em
dados scientificamente determinados.
Ferraz de Macedo (1845-1907) ', procurando definir o ///?o
normal português que pudesse servir de base á remodelação da
nossa legislação criminal, produziu um trabalho de synthese so-
> Bosquejos de Anthropologia criminal , 1900.
HA O povo português
bremaneira precipitado, generalizou sobre bases que não compor-
tavam uma tal extensão e deixou de ver factos que, em parte,
inutilizavam a sua obra. Elle julga demonstrável a opinião de
estar o português em período regressivo. E assenta esta affirma-
tiva na alteração que, em virtude de cruzamentos effectuados em
cinco séculos de communicações maritimas, sofFreu a physiologia
correcta do povo que combatia e vencia os romanos e que
levava a cabo as viagens e gloriosas façanhas do século xv.
Em seu entender, a valentia, sobriedade e energia dos primitivos
portugueses achar-se-hiam hoje enfra-
quecidas pela mistura com outras
raças.
Para Ferraz de Macedo o portu-
guês é dotado de uma genesia vio-
lenta e proliferante, acompanhada de
solicitações alcoólicas accidentaes (síc),
que lhe esgotam os órgãos visceraes,
thoracicos, medullares e encephalicos;
o português gosta pronunciadamente
de anecdotas de fundo erótico; é muito
intelligente, mas tem pouca iniciativa
individual, tenacidade e persistên-
cia; instável na observação e pesquisa como na opinião for-
mulada, mas imitador primoroso; é um impulsivo bom,
fatalista e resignado com a pobreza, incauto e imprevi-
dente, aggressivo na controvérsia (por ignorante), brioso, franco
e leal, poucas vezes poltrão ou traiçoeiro; amante das suas
tradições gloriosas, dotado de patriotismo vibrante, que muitos
confundem com a jactância dos soberbos e dos altaneiros desva-
necidos.
Esta synthese, em parte applicavel a todo o povo português,
afigura-se-me também em parte influenciada pelo modo de ser de
certas camadas inferiores da agglomeração lisbonense, aliás pouco
numerosas. Devemos lembrar-nos que Ferraz de Macedo foi um
perseguido, que a imprensa o contrariou nos seus trabalhos anthro-
pometricos, que até quis impedi-los, factos estes que o predis-
poriam contra o meio em que viveu. D'ahi viria o exagero na
generalização de certos modos de ser inferiores, lançando-os á
conta do país inteiro.
o CANJIRÃO DE CHAVES
o povo português n 5
Eu vejo o povo português como tendo estacionado e não como
tendo regressado; elle apparece-me hoje como o fora nas duas
épocas gloriosas citadas por Ferraz de Macedo.
Após as ultimas campanhas de Africa, quando perguntava aos
officiaes como se conduzira o nosso soldado, elles respondiam-me
sem discordância: caqui na mão, sempre fiel, dócil e caminhando
para a frente». Devo dizer comtudo que a confiança nos chefes,
que taes factos denunciam no soldado português, tem a sua razão
de existência na forma por que o nosso official, contrariamente ao
que noutras nações acontece, se conduz em campanha. Desde que
se entra no sertão, a vida das tropas é uma só para chefes e
praças de pret; um só o rancho e, quando se chega a uma nas-
cente de agua, máxima consolação nos climas tropicaes, bebe-se
por ordem hierarchica, mas de baixo para cima.
Factos idênticos se deram com a Légion portugaise que, de
1807 a 181 3, fez parte dos exércitos de Napoleão e se bateu na
Allemanha e na Rússia. Mr. P. Boppe ', lançando mão apenas
de documentos autênticos e officiaes existentes em França,
demonstra que os nossos se houveram como verdadeiras tropas
rfV/i/e, com valentia e coragem brilhantes. Assim succedeu em
Wagram e Smolensko, onde os batalhões portugueses se cobriram
de gloria. Na funesta e inevitável retirada da Rússia, os nossos
soldados e officiaes souberam morrer como as melhores tropas
francesas. E a indisciplina que então se obser\'ara entre os solda-
dos portugueses, em tempo de guarnição que nunca em campanha,
só deve ser attribuida á bondade e fraqueza de certos chefes ; quando
estes se chamavam Gomes Freire, Sarmento e Cândido Xavier, e
ainda Pacheco, o alferes assassinado por um miserável que todavia
soube morrer com coragem, a disciplina era completa. Alem de
que nunca o bom humor desamparou os nossos conterrâneos,
nunca a guitarra e a canção portuguesa deixaram de se ouvir nos
intervallos tranquillos d'esses agitados seis annos.
Na IntroducçSo geographica^ ao volume i doeste livro, o Dr.
Silva Telles, quando trata dos Movimentos da população portu-
guesa, affirma o seguinte : «É importante a nossa natalidade media.
Encontramo-nos porem a meia escala no ponto de vista da mor-
Légion portugaise (1807-181 3), par le commandant P. Boppe, 1897.
76
O povo português
talidade e a nossa emigração masculina é considerável. Pois,
apesar doestas razões, a percentagem de crescimento é superior
á das principaes nações latinas. Se analysassemos a mortalidade
por idades, a conclusão a que
chegaríamos sería a confirmação
do que temos dito. A população
portuguesa é vigorosa, mas fal-
tam-lhe neste momento institui-
ções sociaes que favoreçam o seu
a^escimentoit .
O próprio gosto pelas anec-
dotas eróticas que aponta Ferraz
^ ^^^C^^^ .^ÊÊÊ ^^ Macedo não denuncia o esta-
^r^ ^P^^^l^ ^^^B <^ionamento da vida portuguesa
■ ^L^^ ^tj^ ^B^ ^^ pleno século xvi, quando
B^^Bpl ^iH^Hfit ainda em França eram moda na
l^^^B ^^^^^K^^ corte da rainha de Navarra, como
^^^^H ^^^^^^^Kí^ na Florença do século xv e de
y- ^^A .^k^^^^^^&^A Boccacio o haviam sido tam-
bém ? . . .
E este estacionamento parece
concordar ainda com uma outra
face do caracter português, que
se encontra em Ferraz de Macedo
e que causas históricas expli-
carão.
O povo português, segundo o
nosso anthropologista, não tem
typo physionomico, nem dyna-
mico determinado; cada indivi-
duo é uma singularidade; costu-
mes, hábitos, aspirações, Índoles, vicios, virtudes, são variadíssi-
mas nas coUectividades e teem múltiplas origens ethnicas (sic).
Não deverá comtudo entre nós attribuir-se esse estado, que de
resto é commum a todos os povos civilizados como o próprio
Macedo reconhece, de preferencia á crise de 1 580-1640, ao
dominio absorvente durante três séculos da inquisição, do jesui-
tismo e de todas as outras milicias catholicas, que nos impe-
diram de progredir, e finalmente á anarchia romântica que,
DA SERRA DA ESTRELLA
o povo português
77
desde i834, nos invadiu e não se preoccupou com a educação
civica do nosso povo ? . . .
A falta de imaginativa constructiva, usando da formula de
José Sampaio (Bruno) num dos seus livros, não se resumirá em
grande parte na falta de educação, a originalidade correspondendo
a um novo ou maior agrupamento de factos ou elementos? Ou
terá de ser attribuida a simplicidade e pureza ethnologica, que,
contra a opinião de Macedo, parece
hoje acceite por todos sem discre-
pância, á elevada percentagem de
dolicocephalia na nação portuguesa,
gente poética e musical, mas não
criadora de organismos e symbolos
plásticos, como alguns querem?
Facto é que a nossa simpleza in-
lellectual vae desde o criado de ser-
vir que executa bem uma primeira
ordem e mal uma segunda, quando
ambas lhe forem dadas ao mesmo
tempo, até ás pessoas que se teem
por cultas, mas a quem repugnam
os aspectos complexos e só pedem
narrações curtas, em poucas pala-
vras, feitas de uma maneira suc-
cinta, schematica, com prejuizo dos
factos e da sua relacionação com outros, a que muitas vezes os
prendem as mais intimas affinidades.
Para explicar os factos de ordem criminal Ferraz de Macedo
recorre a influencias mesologicas — excesso de tolerância, invoca-
das pelos tratadistas especiaes, neste momento também.
POTE Dl VILLAR DE NANTES (CHAVES)
O Sr. Dr. Alfredo Luis Lopes, no seu Estudo estatístico da
criminalidade em Portugal nos annos de i8gi a i8g5 ', nota que,
parallelamente ao que succede em quasi todos os outros paises,
se deu entre nós no referido periodo uma notável diminuição
dos grandes crimes, e um também notável aumento de crimes
> Lisboa, 1897
n^ O povo português
menores, com um abaixamento sensível da idade dos criminosos.
Evidentemente estes resultados carecem de ser verificados e con-
firmados para grupos de annos posteriores e isso tanto mais
quanto devemos reflectir em que esse periodo de 1891 a iSgS cor-
responde a uma época agitadíssima entre nós, a uma dupla crise
económica e social. Entretanto d'ahi devemos também concluir
pelo aggravamento, tornado mais sensível numa tal época, da
nossa falta de instituições educativas destinadas propriamente ao
povo.
A estatística comparada dá a Portugal a seguinte situação na
escala do crime de homicídio, considerado dentro do periodo de
um anno e em relação a cada 100:000 habitantes ':
Segundo uns, o homicídio nos Estados Unidos da America,
está para a Espanha, Itália, Áustria e França, nas relações de
2, 4, 5 e 9 respectivamente, e de 20 para a Inglaterra, Escócia e
Allemanha. Neste caso, a Portugal corresponderia a relação de 7,
entre a Áustria e a França ; isto é, nós teríamos uma percentagem
sete vezes menor do que os Estados Unidos.
Segundo outros, por anno e por cada 100:000 habitantes, cor-
respondiam : 8,o5 crimes de homicídio na Itália ; 4,5 em Espanha ;
2,16 na Áustria; 1,9 na Bélgica; 1,46 na França; 0,9 na Irlanda;
o,85 na Allemanha; 0,61 na Escócia; 0,4 na Inglaterra. Neste
caso Portugal estaria entre a Espanha e a Áustria.
É para notar a opinião que, acerca do nosso povo, formula
um diplomata allemão que, em 1843, isto é, numa das épocas
mais agitadas da Europa central no século passado, visitou Por-
tugal em missão de estudo artístico; refiro-me ao conhecido Conde
de Raczynski ^. «Geralmente falando, eu não receio dizer que
o país é pouco conhecido. . . Byron, no seu Childe Harold, chama
aos portugueses «os últimos dos últimos». Os próprios homens
de Estado em Portugal deploram com lagrimas nos olhos a des-
moralização do povo. . . Quanto a mim, direi que, tendo estudado
os portugueses, os considero um povo intellígente, laborioso, mo-
derado, de caracter bom, doce e alegre. São fáceis de governar;
1 Estes dados encontram-se no referido Estudo do Dr. Lopes e no relatório
que precede as propostas de fazenda do Conselheiro Ressano Garcia, em 1897.
2 Les Arts en Portugal, 28e lettre.
o povo português ^q
amantes da religião apesar dos muitos padres que teem; amantes
do throno apesar de tantos ministros que se succederam em tão
pouco tempo, etc».
Esta opinião e os dados estatisticos que a precedem confir-
mam, na sua summula, as affirmações que anteriormente temos
exposto e que nos levam á conclusão final de que ás classes diri-
gentes, ás que deviam dar o exemplo que o povo, sempre imi-
tador, seria levado a imitar, é que deve ser attribuido o estado
de atraso das nossas massas populares. Com bons chefes, dirigido
pelos grandes caracteres da nossa historia, o
povo português foi sempre grande.
De mais, nos movimentos de maior effer-
vescencia politica, o nosso povo apparece-nos
penetrado de um sentimento de justiça e de uma
moderação dignos de serem admirados. Basta
recordar como se effectuou a transição da d\ -
nastia afonsina para a joanina e o movimento de
1640; como decorreu a época das guerras libe-
raes e das suas consequências mais próximas. a bilha de thomar
O civismo do povo português tem-se ultima-
mente affirmado com mais intensidade, por exemplo, na recepção
dos vários congressos, já no de archeologia em 1880 e recente-
mente no de medicina e no telegrapho-postal ; por toda a parte
os sábios estrangeiros são acolhidos com singular deferência e
attenções de todo o género. Mas acima de todas essas, devemos
citar a recepção feita em igoS a Mr. Loubet, presidente da
Republica Francesa. «Toda Lisboa estava na rua, diz um visi-
tante estrangeiro, e não exagero avaliando a multidão em mais
de 400:000 pessoas, das quaes 100:000 das provincias. Todos
manifestaram o seu enthusiasmo, mas em attitude digna, sem
atropelamentos, sem grosseria» '.
Note-se que esta impressão contrasta de um modo notável com
a que o mesmo autor havia recebido em Madrid, dias antes.
E, apesar d'isso, já muito poucos em Portugal a conservam na
memoria.
í Jean Bernard, La vie de Paris, igoS.
8o
O povo português
Os aspectos geraes do povo, como succede em todas
as nações, apresentam-se evidentemente alterados em pro-
porções ao longo do país, conforme as condições naturaes
das diversas regiões. Entretanto pouco é o que, nesta ordem
de ideias, se pode affirmar hoje
' ] de uma forma categórica e docu-
mentada.
Oliveira Martins, na sua His-
toria de Portugal, vol. i, quis
dar-nos um quadro distributivo
do caracter do povo português,
definindo com precisão as suas
alterações sob a influencia do solo,
altitude, clima, vegetação e den-
sidade da população. Fê-lo porem
de uma maneira incompleta, dei-
xando-se ainda influenciar pelos
regionalismos, conforme lhe eram
ou não sympathicos.
O minhoto, para elle, é pa-
ciente, laborioso, tenaz, persis-
tente e ingénuo, mas obtuso, des-
tituido de elevação de espirito; é
um ser preso á terra, como um
enxame de formigas que a sugam.
O clima húmido, variável, a ve-
getação rasteira, a fertilidade da
terra e o vinho acido que ella pro-
duz, explicam o seu caracter, iden-
tificado finalmente ao dos bretões e flamengos !
O trasmontano, vivo, ágil e robusto ; espirito elevado, concor-
dante com a fixidez e nobreza da paisagem local.
O beirão occidental, menos vivo que o trasmontano, mas ro-
busto, hercúleo, de face animal. E o representante dos antigos
bandidos da região, «anachronico representante de uma indepen-
dência de outra idade».
O alemtejano do norte, vivendo num solo e vegetação seme-
lhante ao trasmontano, tem o olhar vivo, gesto livre, porte nobre
e seguro; é brioso, folgazão, hospitaleiro e communicativo.
DA SKRRA DA E8TRELLA
o povo português g j
O alemtisjano do sul deixa-se influenciar pela paisagem so-
lemne, o occidental pelas emanações pantanosas que o convertem
numa população enfermiça, miserável.
O algarvio, sol africano, primavera constante, é um
andaluz, ou um grego do Archipelago. Vivo, falador, can-
tador, um agitado constante, de uma agitação infantil, encanta-
dora.
Martins, que nesta classificação adoptou em parte as sentenças
populares, formuladas nos apodos reveladores das hostilidades
provinciaes, esqueceu-se comtudo de caracterizar outras regiões
do país; não se refere a alguns t}^pos acerca dos quaes o povo
formulou de ha muito a expressão synthetica, e que porventura
lhe deveriam merecer especial attenção.
Refiro-me em primeiro logar aos dois typos populares que
mais influencia tiveram e teem na nossa vida nacional : o lisboeta,
a quem o homem do Porto chama alfacinha, e o tripeiro; nem
tão pouco se occupa do saloio, que é porventura o que o povo
melhor caracteriza, ao brague:^, etc, etc.
Ramalho Ortigão faz-nos um interessante parallelo do minhoto
e do transmontano :
A gente é aífavel, hospitaleira, carinhosa, e a mais pacifica do mundo.
Um bacharel meu amigo, que exerceu aqui (em Vianna do Castello), durante
um anno, o logar dè substituto do delegado do Ministério Publico, contou-me
que no anno em que elle serviu se não fizeram audiências, porque não houve
crimes na comarca.
«É o povo de Vianna — diz Frei Luis de Sousa na Vida do Arcebispo —
dotado de um particular zelo do bem da sua republica : e no que toca ao com-
mum, ainda que uns com outros andem desavindos, logo são unidos e confor-
mes : e onde sentem ser necessário sabem não perdoar diligencia^ nem traba-
lho, nem despesa». A seguir, por meio de uma frase bem feita, o biographo
do arcebispo dá a entender que os de Vianna são desconfiados : Acautelam-sey
diz elle, sem o darem a entender,
Emquanto a desconfiados, devem sel-o os viannenses, como todos os mi-
nhotos. É esse o defeito característico que mais os distingue dos seus vizinhos
trasmontanos. Quem bate a uma porta no Minho tem a certeza de ouvir,
noventa vezes sobre cem, as seguintes perguntas : — Quem está ahif, . . quem
é o senhor? quem procura ?. . . que lhe quer?, . . Quem bate a uma porta em
Traz os Montes tem iguaes probabilidades de ouvir uma única resposta : —
Entre quem é, O minhoto é humilde, resignado, soffredor ; por isso, timorato
e precavido. O transmontano é resistente e arrebatado; por isso, é aberto
6
82
o povo português
e decisivo. Cada um tem os defeitos das suas virtudes e as boas qualidades dos
seus defeitos i.
D. António da Costa merece também citar-se quando se refere
ás povoações do Minho, e especialmente á mulher minhota.
Depois de no-la descrever nas suas festas, nas feiras, nas
esfolhadas, cantando ao desafio, ataviada com todas as riquezas
MULHERES DB TIANKA DO CASTELLO
de OS setés ouros e todo o pittoresco dos seus trajes % passa a
estudá-la como utilidade. Porque, diz, «n'esta província, ao con-
trario do que em toda a parte succede, a mulher é que toma
verdadeiramente o logar do homem e o homem não passa de
accessorioB.
1 As Farpas, vol. i. Igualmente a citação de pag. 84.
2 No ultimo fasciculo da Portugália (tomo n, fase. 4) vem publicado um
largo estudo sobre As FiligrannaSy pelo Sr. Rocha Peixoto, do qual nos foi ce-
dido graciosamente o croquis aqui inserto.
o povo português
83
No Minho, poderá ainda o trabalho das artes e officios pertencer ao
homem. Os campos pertencem á mulher.
Os homens lá emigram para o Brasil, Alemtej o, Lisboa, Porto, Hespanha i ;
á minhota, quasi exclusivamente, é que está incumbido o trabalho da provin-
cia. . . As próprias crianças são já criadas desde a mais tenra idade para a lida
que as espera... Assim é que se vae educando aquella incomparável mulher
do nosso Minho.
Alem de commover o espectáculo de a vermos nos campos, não commove
menos o encontrarmo-la pelas estradas, duplicando a sua actividade e o seu
ganho, pois que sendo já um trabalho a conducção dos carros, a transportação
de instrumentos agrários, a carregação á cabeça de fardos pesadissimos, vae
conjuntamente fiando ou cosendo para não perder o tempo. . .
Não menos impressiona o vê-las nos mercados, todas senhoras da sua
missão, activas, conversando com seriedade e acerto, como quem possue
o conhecimento da vida e a experiência dos negócios. . .
M^~^^\
Notemos como é que, sendo Oliveira Martins mais economista
do que historiador e artista, este aspecto da vida minhota lhe
pôde escapar, e sobretudo que elle não se
refira ao facto da mulher minhota ser geral-
mente mais robusta do que o homem da
região. Quanto a mim, o exemplo que cita
D. António da Costa impõe-se ao estudo de
todos os que se interessam pelo futuro de
Portugal. De facto, dentro da nossa socie-
dade, a minhota é por emquanto a única mu-
lher que conseguiu igualar-se ao homem.
Num delicioso paradoxo, que em seguida
transcrevo. Ramalho Ortigão symboliza-nos
o estremenho das Caldas da Rainha, o habitante da nossa se-
gunda zona de paisagem, em que a doçura da atmosphera e da
terra parecem effectivamente influenciar a formação do caracter
regional de uma maneira inilludivel, como de resto succede na
região do litoral minhoto. Adeante veremos a confirmação pela
estatistica.
POTE DAS CALDAS DA RAINHA
I É nos districtos de Braga e Vianna do Castello que a relação do numero
de mulheres para o dos homens é maior, 121,1 no primeiro, 128,4 1^0 segundo
distrícto.
84
O povo português
Detalhe que seria iníquo omittír: na cadeia das Caldas ha apenas dois
presos. Aí!irmam-me que são sempre os mesmos: dois honestos e assíduos
funccionarios, devidamente gratificados para fingir de criminosos e se conser-
varem ás grades do cárcere, com o fim de fazer ver aos povos que os ferros
de El-Rei se não fizeram para as moscas, e que — ainda ha juizes. . . nas Cal-
das. Quando algum doestes cavalheiros pede licença para se ausentar por alguns
dias da masmorra, deixa um amigo incumbido de o substituir no seu cargo.
Se não se tomassem tão serias e rigorosas medidas, a cadeia passaria, segundo
todas as probabilidades, pelo desgosto de ficar deshabitada, tal é a pertinaz
velhacaria com que os scelerados aqui se recusam á obsequiosa perpetração
de qualquer espécie de crime !
CAMPINOS DO RIBATEJO
Esta região de paisagem baixa e doce prolonga-se ainda
para alem do Tejo. A população ribatejana impressiona comtudo
de uma maneira sui generis o observador-artista.
O fallecido archeologo de Gand, Adolf de Ceuleneer, que es-
teve em Portugal por occasião da sessão lisbonense do Congresso
Internacional de Anthropologia e Archeologia Prehistoricas (1880),
a propósito da excursão a Mugem, refere-se * ao cortejo que
I Bulletin de PAcadémie d*Archéologie de Belgique, 2èm« pariíe, xiii, An-
vcrs 1882.
o povo português g 5
acompanhou os excursionistas desde a ponte de Santarém até ao
logar das escavações, e acerca dos cavalleiros ribatejanos com
seus pampilhos na mão, á laia de lança, acrescenta:
Examinando esta população robusta e tão seductoramente original de
aspecto, reconhecemos que todos quantos haviam tratado o povo português
de raça degenerada e abastardada o conheciam apenas por um exame superfi-
cial de qualquer cidade importante, e que jamais haviam percorrido o campo
português. Julgaram Portugal de leve, da mesma maneira que em tempos idos
Edmond About falou da Grécia, num pamphleto tristemente celebre.
Fialho de Almeida descreve-nos, numa soberba pagina, a vida
d'essa bella região do Tejo em Vallada, onde o homem é, a um
tempo, lavrador, pastor de grandes rebanhos e marinheiro ' :
Emíim, a barca. Oh Deus, como é bonito ! e como eu gostaria de ser um
barqueiro sardento, hercúleo, ruivo-oiro-poente assim descalço, espécie de
girasol lacustre de alguma heróica flora acorrentada ás mythologias da infância
doeste rio ! Ter uma barca assim em pão de bico, nos poios revirada como as
gôndolas, chata de fundo, o almagre da vela á luz morrente, e toda a vida
cantando, rio abaixo, a bailada de Ophelia, com o pampilho ribatejano, que na
terra guia o touro — na a(;ua servindo de remo, haste da vida, movida sob
a stria de aço do meu musculo I Leziria plena e rio pleno, agua e verdura, sal-
gueiros por toda a parte — bemaventurados os que choram I — mergulhando
os cabellos verdes na corrente.
Lentamente, a barca vem acostando a margem do portinho. . .
Toda a campina que atravessamos é na realidade uma positiva maravilha,
e tem-se a turgente sensação d'um vale do Nilo, d'uma terra da promissão
vascular, pondo á bocca do homem a teta da abundância, como a dizer-lhe,
bebe ! De todas as partes folhas de ceara vão té aos engastes do ceu, n'um
raio extensíssimo, e em marés incessantes de verdura, tendo por espuma espi-
gas bemfazejas. Nas pastagens tufantes, cuja erva gorda impa chorume, mana-
das de cavallos e bois correm á solta, sob as pedradas e a lança do gaúcho
local, de calção azul e sapato d'espora, matacões e barrete verde ou rubro,
plantado esculturalmente n'uma sella mourisca, com seu xairel de pelle de ca-
bra. Tocam chocalhos, os grandes cães rabões ladram ás rezes, e o grito em
ói ! dos maioraes, muito alongado, põe na charneca o quer que seja de um
queixume guttural, sem pátria, monossyllabado da primeira lingua do universo.
I In Gatos, n.** 27, de 4 de julho de 1891. Aproximar doesta apreciação a
que transcrevemos, de O. Martins, no anterior estudo, concernente a esta
mesma região ribatejana.
86
O povo português
Onde a onde, casas^ raro arvoredo, a não ser na margem dos rios e das riguei-
ras, e doçuras de ceu, climas benignos, monotonias de luz á flor do trigo-verde,
verde. — De sorte que o verdadeiro habitante e suzerano doesta zona, não é tal-
vez o homem, mas o cavallo e o boi selvagem, elle quem manda e decreta
a civilização das populações que lhe interrompem o deserto, quem faz o carac-
ter do homem . . .
Até hoje, os únicos factos da vida social portuguesa que as
estatísticas definem de uma maneira assaz precisa são os refe-
rentes á distribuição do crime
e da expansão migratória das
varias zonas. Depois que o
Banco de Portugal reuniu em si
o movimento económico e finan-
ceiro do país, deve elle ter esta-
tísticas que nos elucidem sobre
as respectivas questões. Mas
essas não são do domínio pu-
blico, não são conhecidas.
Conforme nos ensina o citado
Estudo do Dr. Alfredo Lopes, os
peores dístrictos, quanto á nata-
lidade dos criminosos, são nos
homens: Bragança, Évora, Beja,
Braga e Lisboa; nas mulheres:
Bragança, Aveiro, Vílla Real,
Braga e Porto. Os melhores, nos
homens: Vianna, Leiria, Coimbra
e Vílla Real; nas mulheres: San-
tarém, Leiria, Faro e Portalegre.
A distribuição do homicídio
faz-se em ordem descendente na
seguinte serie: Bragança, Beja,
Évora, Viseu, Villa Real, Guarda.
De uma maneira geral, pode dízer-se que, aparte as grandes
agglomerações de Lisboa e Porto, onde naturalmente o terreno
a isso se presta mais do que qualquer outro ponto do país, é nas
zonas altas e ásperas que o crime violento apparece mais fre-
quentemente. Nas zonas baixas e doces é elle muito mais raro.
Correlativamente, nas zonas altas habita o português de raça mais
DA SERRA DA ESTRELLA
o povo português g^
pura e forte; nas zonas baixas o português influenciado pelas
migrações de via marítima.
Um dos factos estatísticos que, ha annos ainda, diziam cor-
roborar a affirmação de Martins acerca do minhoto, provinha
das nossas emigrações e suas proveniências provinciaes. Passava
em julgado que só o minhoto é que devia emigrar, e que de
facto mais emigrava, porque lhe faltavam as qualidades moraes
de nobreza e distincção de caracter que tomam o homem incom-
patível com certos mesteres inferiores. Que o minhoto a tudo se
sujeita. E assim se explicava também o desprestigio que sobre
o nome de português pesa em alguns paises estrangeiros.
Entretanto, a estatística revela que, desde 1866, a emigração
se foi estendendo aos distríctos de Villa Real, Aveiro, Viseu, Lis-
boa, e mais recentemente aos de Coimbra, Bragança e Guarda,
sem falar nos das ilhas dos Açores, onde a emigração é um facto
constante desde muito tempo. Note-se que distríctos ha em que
a emigração é insignificante: Castello Branco, Santarém, Porta-
legre, Évora, Beja e Faro ^
O que, a meu ver, estas opiniões demonstram, entre outras
cousas, e apesar da gloria que Portugal não pode deixar de íer
como colonizadora do Brasil, é que as condições em que se
faz essa colonização ou emigração não satisfazem ás necessidades
sociaes hodiernas. Os nossos Governos teem, fatalmente, de pre-
parar o colono para um estado superior das regiões aonde elle
se dirige; as escolas de colonização, as de expansão commercial
e mercantil devem ser organizadas neste sentido. O português
é de seu natural aventureiro e confiante; emigra de qualquer
forma: só, com mulher e filhos, para onde lhe indiquem as pes-
soas que elle respeita. Da parte doestas está também o dever de
o esclarecer e preparar para o seu novo destino.
Á caracterização differencial tão definida, embora incompleta,
que Oliveira Martins algo fantasiosamente via nas nossas varias
províncias, devo eu ainda oppor a minha experiência de annos,
em contacto com as populações de quasi todo o país, tendo de
aproveitar a sua actividade productora no sentido de obter o
« Ver o quadro xxxiy do relatório do Conselheiro Ressano Garcia, atrás
citado.
88 o povo português
maior trabalho possível, em agrupamentos que exigiam a impo-
sição de uma forte disciplina, num género de producção por
assim dizer sempre a mesma por toda a parte, e portanto nas
melhores condições para apreciar as differenças que pudesse
haver de terra para terra.
Exerci a minha profissão de engenheiro civil fazendo estudos
de campo e construcções em varias provincias do país: — no
alto Minho e na sua região mais baixa, no Douro, na Beira Alta
e na Beira Baixa, nos campos do Mondego, no baixo Alem-
tejo, etc. Em todas essas terras encontrei o mesmo fundo de
caracter no povo português: a docilidade, a bondade, grande
poder de trabalho, alegria, resignação, lealdade e sobriedade.
As diíFerenças de uma para outra região não me parece que
affectassem esse fundo: eram superficiaes, ou affectavam apenas
um certo numero de sentimentos muito geraes, revelando-se ainda
nas maneiras exteriores. Alem d'isso, achei sempre uma grande
malleabilidade de adaptação em todo o homem português, com
excepção do habitante do baixo Alemtejo; o que attribuo ao ex-
cessivo e prolongado isolamento em que este vive do resto do
país, á minima densidade da população local, menos de dezaseis
habitantes por kilometro quadrado, excepção de facto muito no-
tável em toda a parte ; e finalmente á excepcional dureza da vida
regional e á inferior capacidade do solo na adaptação ás varias
culturas, que o torna, por isso mesmo, menos apto á colonização
por gentes vindas das outras provincias.
Nessas construcções e estudos em que andei, ouvi muitas ve-
zes a opinião de estrangeiros, acerca do nosso trabalhador, con-
firmar o que deixo dito.
Elle revela porem uma inferioridade a que não vejo alludir
entre nós e que carece de ser seriamente estudada e corrigida.
Porque se o nosso operário é um imitador precioso, como affirma
com razão Ferraz de Macedo, não devemos comtudo deixar de
lhe notar uma lentidão inconsciente da qual, apesar do grande
poder de trabalho que acima apontei, resulta necessariamente uma
producção muito limitada em quantidade e um preço de mão de
obra muito elevado.
Será isto, porem, um facto incorrigível ?
Penso que não, e que nos encontramos aqui em frente de um
caso que rudemente exige a criação de instituições educativas,
o povo português 8 O
a que, em parte, allude o Dr. Silva Telles. Essa lentidão é o que
mais impressiona o estrangeiro que nos visita e observa a nossa
vida nacional; e é também o que mais confirma a ideia que
teem do nosso atraso os que investigam as causas dos factos
sociaes.
Os irmãos Goncourt, tendo visitado a Itália em 1867, escre-
vem no seu Diário, vol. 111, o seguinte :
«A inferioridade da raça italiana que, durante tanto tempo,
eu havia procurado definir, achei-a hoje : é que ella não tem ner-
vos. Denuncia-se isso numa cousa bem pequena: em não ter
a menor sombra de impaciência pela lentidão com que tudo aqui
se faz».
Tomando d'esta nota apenas o que ahi ha de aproveitável,
vemos que a situação actual do nosso país relativamente aos
grandes centros de producção se assemelha bastante ao que, na
Itália de ha quarenta annos, se passava relativamente á França
de então.
Ao passo que a Itália dormia num estado de semi-inconscien-
cia, a França era então a segunda nação industrial, ainda mar-
chava muito á frente da civilização mundial. Era o país das
grandes empresas e das grandes construcções, dos Lesseps e dos
Haussman. Em Paris, dizem-me as pessoas d'esse tempo, sentia-se
um movimento, um poder e exuberância de vida, uma riqueza
e uma alegria incomparáveis, de que nada hoje pode dar ideia.
A febre d^essas grandes empresas, o moderno espirito dos gran-
des negócios e da grande industria ahi fora gerado e prosperara.
Era, emfim, o aspecto inteiro da vida moderna que os Goncourt
contrapunham ao antigo modo de ser persistente em Itália e que
os leva a affirmar, com ingénua pedantaria, ca inferioridade da
raça italiana».
E, entretanto, a Itália da Renascença é hoje uma grande nação
moderna. Transformou se, porque quis educar-se. E, perdendo
a lentidão que tanto lhe censuraram, passou a affirmar novamente
a antiga superioridade da sua raça.
Porque não succederá outro tanto entre nós, que demos o
o melhor do nosso sangue e do nosso esforço para essa mesma
obra da Renascença ?
Até nesse Alemtejo, a mais lenta das nossas províncias, não
se vê desde já que a colonização trazida pela cultura extensiva
90
O povo português
acarretará finalmente comsigo a riqueza, o aumento de população,
as alegrias da vida e a febre na producção — a vida moderna,
emfim?
Nessas syntheses, que citei, das características differenciaes
da alma popular portuguesa, nada se encontra relativo á sua
capacidade esthetica, tanto
receptiva como productora.
E comtudo, quer-me parecer
que se pode dividir o país em
duas zonas quanto aos diver-
timentos de que o povo gosta,
sendo o Vouga a linha divisó-
ria*, linha que, se attentamos
bem, pôde Já encontrar-se,
posto que algo indecisa, em
manifestações de outras or-
dens.
Facto é que, do Vouga
para o norte, o país prefere
as romarias, as illuminações
á maneira do Minho, de que,
durante um certo tempo.
Santo Thyrso foi o logar
mais notável; as procissões,
a meu ver, são ahi muito
mais importantes do que os cyrios do sul, bastando para isso
lembrar, por exemplo, os enormes andores da Trofa, cons-
trucções de grande altura, todos de papeis dourados, creio,
com aspecto do quer que é de oriental; e, finalmente, a repre-
sentação dos autos religiosos, o do Menino Deus e outros, a que
ainda hoje se assiste nas aldeias do norte, estabelece um desta-
que profundo com os espectáculos habituaes da parte meridional
do país.
Do Vouga para o sul o primeiro divertimento popular é incon-
testavelmente a corrida de touros, a qual nunca pôde aclimar-se
no Porto e em Lisboa chama á praça multidões enormes ; e ainda,
muito mais do que no norte, a feira popular com toda a serie de
espectáculos que lhes andam annexos.
UMA QUARTA DO RIBATEJO
(Estylizaçáo erudita da casa Leitão & Irmáo)
o povo português
91
o CANJIRÃO DE U8B0A
Já procurei definir a Canção em algumas provincias do país,
estabelecendo-a com caracter diíFerencial nas quatro zonas fixadas
na Advertência preliminar. O nosso cancioneiro musical, não
menos rico do que o poético, como irmãos
gémeos que são um do outro, está, salvo casos
excepcionaes, por colligir scientificamente, isto
é, segundo um methodo e systema que garan-
tam a autenticidade da melodia, do seu r) thmo,
da sua escala e até da sua harmonia. Geral-
mente a colheita é influenciada por mil causas
diversas que, difficultando a audição justa, im-
pedem a notação perfeita. Não devemos, com-
tudo, admirar-nos de que tal succeda entre
nós quando é certo que em França, não ha muito tempo ainda,
o cancioneiro estava por colleccionar K Esta é a razão por que as
nossas mais bellas canções são geralmente desconhecidas do publico
culto e do estrangeiro. E pode dizer-se que até agora só logrou
ser conhecido o romântico Fado^ de proveniência e caracter tão infe-
rior, pendant meridional do talvez ainda mais romântico Noivado
do Sepulcro, essa espécie de fado do norte, acompanhado a violão
e não a guitarra como o do sul. O
Noivado e a Canção do Marujo afigu-
ram-se-me as mais dramáticas das
nossas cantigas populares.
A nossa canção é quasi exclusi-
vamente amorosa. A canção satyrica,
não muito abundante, é por vezes
mais pittoresca do que profunda. A
canção politica e patriótica quasi não
existe na memoria do povo; entre nós,
ella foi producto de um dado momento
histórico e passou sem deixar vestí-
gios. Não podia tão pouco ter apparecido em Portugal o canto
coral ou orpheonico que suppõe um estado social homogéneo %
PRATO DO SÉCULO XVII
> Ed. Schuré, Histoire du lied, ou la Chanson populaire en AUemagne,
Nouvelle édition, 1903.
2 Combaríeu, La musique y ses lois, son évolution, 1907.
92
o povo português
e não a anarchia doce em que vivemos, numa ignorância muito
accentuada da vida civica das nações mais avançadas.
E agora é que principalmente nos apparece o português temo
e amavioso de que mais acima falei, o português que, na frase
popular, tem sempre quartos para alugar no coração, e contra
cujos excessos Ferraz de Macedo clamava no deserto. Eu não
conheço mais profundas expressões de amor do que as da poesia
popular portuguesa. Dante inventou :
Tanto gentile e tanto onesta pare
La donna mia quando ella altrui saiu ta,
Ch' ogni língua divien tremando muta
E glí occhi non ardíscon di guardare.
Mas esta ideia do temor que impede de levantar os olhos para
a mulher amada, definiu-a com a máxima intensidade o nosso
povo:
Quando te encontro na rua,
Baixo os olhos num momento :
Olho pr'á terra que pisas,
E com isso me contento ».
Alongaria extraordinariamente este trabalho se quisesse citar
casos admiráveis de fantasia popular portuguesa, como estes por
exemplo :
Aqui tens meu coração,
Se o quiseres matar podes.
Olha que estás dentro d*elle
E, se o matas, também morres.
Quando eu era pequenino
E que minha mãe me embalava,
PVa me calar me dizia
Que para ti me criava.
Mandei fazer um relógio
Das pernas de um caranguejo,
Para contar os minutos
Do tempo que te não vejo.
PRATO DO 8FCUL0 XVII
i Pedro Fernandes Thomás, Canções Populares da Beira, com uma intro-
ducção por J. Leite de Vasconcellos, Figueira 1896.
o povo português
93
De um extremo ao outro do país, a poesia amorosa parece
brotar da terra, como o seu producto mais geral e mais variado
em expressão.
As canções religiosas, bemditos, ladainhas, etc, são por vezes
interessantes, de um sentimento ingénuo e festivo, de uma luz
muito pura, em nada parecido com o do povo nosso irmão, em
que a musica chega a attingir
expressões quasi tremendas.
A poesia eleva-se, em alguns
casos, ao mais profundo sym-
bolismo:
No ventre da Virgem Santa
Encarnou divina graça ;
Entrou e saiu por ella
Como o sol pela vidraça.
A imaginação poética do
nosso povo tem uma vitali-
dade rara que se estende a
todos os nossos poetas cultos ;
todos elles produzem bellas
series de versos, absoluta-
mente com o mesmo sabor
e poder da nobre fantasia
do nosso folklore, faculdade
esta que, sem ter a importân-
cia que attingiria no dominio
musical, é todavia digna de citar-se como feição nacionalista de
ordem superior.
Tinta vermelha e doirada
Com que Deus fez dMmproviso
Ha séculos a alvorada
E ha meses o teu sorriso.
Guerra Junqueiro, Caria á minha Ji lha.
o POTE DE COIMBRA
Quem dá ais, ó rouxinol,
Lá para as bandas do mar? .
É o meu amor que na cova
Leva as noites a chorar ! . . .
Ó meu amor, dorme, dorme
Na areia fina do mar
Que em antes da estrella d*alva
Comtigo me irei deitar ! . . .
Guerra Junqueiro, nos Simples.
94
O povo português
Ouvi atrás de um vallado
Uma grila a rir, a rir ;
Andava um grilo enxofrado
Com outro grilo a discutir.
D. João da Gamara.
Ha bons dez annos uns estudantes em Coimbra, hoje todos
elles poetas consagrados, achavam-se reunidos, e resolveram im-
provizar quadras. Eis algumas d'ellas:
Amas a Nosso Senhor
Que morreu por toda a gente,
E a mim não me tens amor
Que morro por ti somente.
Com amores m^amofino,
Tenho um amor cada mês :
É este o triste destino
De um coração português.
Marias da minha aldeia,
Todas vós sabeis urdir
De um certo linho uma teia
Onde todos vão cair 1
Raparigas tomae tento
Cachopas não vos fieis,
Cantigas leva-as o vento
Cartas de amor, são papeis.
Augusto Gil.
Por ti perdi o socego,
E dizes pVa te deixar !
Dize ás aguas do Mondego
Que não corram para o mar.
Lopes Vieira,
Cantae-me as vossas cantigas
Junto ao rio a murmurar. . .
Mas baixinho, raparigas. ••
Deixae-o também cantar.
Teixeira de Paschoaes
Seja-me ainda permittido citar de Augusto Gil quatro dísticos
da maior e mais rara belleza em que o amor é symbolizado de
uma forma absolutamente inédita:
Boca talhada em milagrosas linhas
A luz augmenta com o seu falar.
Esta manhã um bando d'andorinhas
la-se embora, atravessava o mar.
Chegou-lhes ás alturas, pela aragem.
Um adeus claro que ella lhes dissera,
— E suspenderam todas a viagem.
Julgando que voltara a primavera. . .
o povo português
95
As formas do namoro em Portugal
são variadas, mas hoje já menos nume-
rosas do que em outros tempos. Eu
creio ter conhecido o uhimo homem que,
no Porto, ainda namorou de lenço na
mão.
Camillo fala d'esta forma nos Mfs-
terios de Fafe. Era uma espécie de
systema telegraphico para grandes dis-
tancias, com uma asa só, o braço direito
descrevendo vários meneios e tocando
nas varias visceras e órgãos do corpo
que podiam ter voto na Tnateria: os
olhos, a boca, raras vezes a cabeça, o
coração sempre, etc.
Hoje, nas cidades e num certo nu-
mero de camadas sociaes, domina o
namoro da janela para a rua, que os
espanhoes também teem e a que dão o
nome de pelar la papa.
A gamma percorrida pela alma terna e amaviosa do portu-
guês é infinita e nenhum povo o excede em variedades de aspec-
tos, profundeza de commoção e belleza dos symbolos de arte.
Também se pode dizer que Portugal é um dos paises
onde persiste com mais intensidade o flagello do seductor,
elevado quasi á categoria de um heroe nacional. O portu-
guês julga de seu dever trazer dentro do peito, até aos
setenta annos pelo menos, um vulcão ! . . .
Assim dizia Eça de Queiroz que eram os
extinctos e terriveis românticos. Mas o beau
ténebreux da França de i83o ainda vive em
Portugal. E eu encontrei a prova d'isso nos
nossos recolhimentos de regeneração de mu-
lheres. Dizia-me uma senhora allemã, directora
de um d'esses institutos, ao norte do Mondego,
que aqui não succedia como no seu país. Cá,
as mulheres entram com uma inscrição provi-
sória; e ao cabo de uns tantos dias, reconhe-
cem-se as que podem aproveitar com o regime
q6 o povo português
educativo da casa e as que serão rebeldes a esse regime. Estas
ultimas são afastadas, despedidas. Ficam apenas as outras que,
ao cabo de pouco tempo, se convertem em creaturas obedientes
e de caracter agradável e brando. Na Allemanha não succede
assim; as internadas chegam por vezes a espancar as madres
directoras dos estabelecimentos.
Está-se a ver que as despedidas em Portugal são as que se
prostituiram por temperamento próprio, as vesanicas, as desti-
nadas, não á maison de reforme^ mas sim ao manicomio; ao
passo que as outras, as internadas, são as victimas da allucinação
momentânea dos sentidos e da seducção, que não perde um mo-
mento, que está quasi erigida em dever nacional. Eça de Queiroz
encarnou esta feição do erotismo indigena no typo do portuguesi-
nho valente.
E evidente que uma tal aberração não pode existir, não existe
na Allemanha. E por isso também as casas de regeneração de lá
tão differentes são das de cá.
Já atrás falei das nossas danças no que respeita ao rythmo.
Devo porem ainda dizer que, como forma, ellas se reduzem a
poucos casos, dos quaes o principal e mais abundante é o da dança
da roda, geral em todo o país. Ainda assim esta forma verifica-se
mais em plano; são cruzamentos de linhas que se effectuam sem
attitudes especiaes. Das danças portuguesas, aquella em que as
attitudes começam a ser esculturaes é o Vira^ sem duvida a mais
graciosa de todas e já hoje muito introduzida na sociedade ele-
gante.
Entretanto estamos ainda longe das attitudes e graças da Ta-
rantella^ bem como do drama, ou melhor da tragedia que tradu-
zem os meneios das Danças espanholas.
Não vem para aqui falar das artes decorativas do nosso folk-
lore, porque alguém mais autorizado do que eu o faz, noutro
estudo especialmente destinado a essa face do génio popular por-
tuguês.
Julguei porem necessário illustrar o presente artigo com alguns
vasos de louça popular, colhidos em pontos afastados entre si,
formas de uma elegância inexcedivel. E ajunto-lhes dois pratos da
nossa cerâmica do século xvii, com assuntos amorosos, sendo um
d'elles o coração alado, que voa e entra por toda a parte e
o povo português g j
parece pairar nos ares. De entre as expressões do nosso folklore,
desejaria ainda inserir aquellas que logo após as da cerâmica,
formas solidas, perfeitas, absolutas, mais impressão nos dão da
fantasia estructural : os nossos barcos de navegação fluvial, alguns
d'elles notáveis até pela decoração ornamental, como seja o que
apparece na nossa gravura da ria de Aveiro (estudo anterior), e
cujos perfis tão bem se casam, cada um d'elles, com a physiono-
mia do seu rio. Até mais parecem um elemento necessário á pai-
sagem. Tudo isto serviria para completar o conjunto de expressões
estheticas que, até hoje, o povo português encontrou para as ne-
cessidades da sua vida social. Falta-nos porem o espaço para tão
extenso programma.
Por isso mesmo, na presente publicação, se procurou definir
em estudos especiaes, dedicados a regiões varias da ethnographia,
os differentes aspectos da obra artistica do nosso povo. E por
isso também foi eliminado do presente estudo tudo quanto, nas
nossas superstições populares, se pode relacionar com certas pra-
ticas e factos criminosos.
Este povo português, que tão mal apreciado tem sido por
nacionaes e estrangeiros a ponto de o darem por moribundo,
revela todavia hoje energias latentes que, como vimos, se prendem
ás épocas mais gloriosas da sua historia, que são da mesma na-
tureza das que então geraram as grandes figuras da nossa civili-
zação anterior ao século xvii e da sua expansão.
É certo que a plêiade de homens notáveis que apareceram
em Portugal desde a fundação da monarchia até i58o nem sem-
pre teve successores da mesma estatura. Toda a dynastia afon-
sina e parte da joanina, essas almas mysticas e sublimes de Santo
António e do Condestavel Santo, os cérebros organizadores de
D. Henrique, João II, Afonso de Albuquerque e Pedro Alvares
Cabral, a coragem, ousadia e tenacidade consciente, capazes da
€ maior façanha da humanidade», de Fernão de Magalhães, não se
repetiram, não podiam repetir-se em épocas posteriores. Entre-
tanto, á obra económica e politica que vae de D. Dinis a D. Fer-
nando, contrapõem-se as de Ericeira, Castello Melhor e Pombal
e a dos economistas do primeiro quartel do século xix, que só em
O. Martins, após sessenta annos de rhetorica dissolvente, encon-
tram um ponto de contacto; a Fernão Lopes succede Alexandre
q8 o povo portug^uês
Herculano, como aos pintores e architectos do século xvi succede
um grupo de artistas notáveis do século passado e do actual ; e é
também desde o começo do século xix que a nossa litteratura e
a nossa arte offerecem um movimento digno de succeder ao dos
quinhentistas — com Herculano, Garrett, Camillo, João de Deus,
Anthero do Quental, Guilherme Braga, Eça de Queiroz e Soares
dos Reis, não falando já nos artistas vivos.
A estupenda expansão que a nossa actividade manifestou até
i58o havia-nos esgotado e preparado para cair nos braços da In-
quisição, dos jesuitas e de todas as ordens monásticas, e sermos
uma das suas victimas mais sugadas. E, quando se deu o advento
do regime liberal, parece que a violência da transição, atordoando-
nos e encontrando-nos sem preparação para esse novo estado, nos
entregou sem defesa possivel nas mãos de novos tutores não
menos egoistas do que os anteriores. E bem certo que todas as
aristocracias são idênticas na sua evolução e historia; inventadas
para proteger, guiar e defender, rapidamente se convertem em
exploradoras e perseguidoras.
Entre nós, diz o Sr. Dr. Adolpho Coelho » , ha um facto que convém estu-
dar : a existência de um povo, por cuja educação os governos que se teem suc-
cedido desde a revolução chamada liberal quasi nada fizeram até hoje, e que
todavia tem boas qualidades, que contrastam por vezes singularmente com as
dos chamados dirigentes. O nosso povo encontra-se a um nivel em geral rela-
tivamente elevado, se o compararmos com as condições dos povos chamados
incultos ; é isso o resultado de um trabalho de educação da parte da geração
que precede sobre a que segue r*
Raczynski, que nos veio encontrar em principios de uma
nova vida politica, como vimos, define nitidamente a situação
social do país É digno de observação, no nosso movimento lite-
rário e artístico do século xix, o facto de um só d'esses homens
I A pedagogia do povo português, in Portugália, tomo i, fase. i. Neste ponto
do seu estudo, de que appareceram três artigos na citada revista, propóe-se o
sábio professor mostrar «a existência, no povo, de uma pedagogia digna de
attenção, ainda que de accordo com os traços fundamentaes da característica
psychica» por elle, autor, apresentados. A Índole do nosso artigo é que nos
não permitte acompanhá-lo na sua exposição tão nova como profunda; para
ella pois remettemos o leitor.
o povo português
99
notáveis que citei, Garrett, haver sido politico e grande orador!
Nenhum dos outros o foi. E esse mesmo bem maior nos appare-
ceria hoje, se a politica e outras seducções mundanas o não ti-
vessem attrahido e absorvido. De facto ellas diminuiram-no muito,
fazendo-o igual, por vezes, a outros literatos que, muito altamente
coUocados na vida parlamentar, pertencem todavia a uma litera-
tura que mais convém ignorar ou esquecer.
Dado o caracter e a índole do nosso povo, as suas incontestá-
veis virtudes e energias latentes, somos pois levados a explicar-lhe
o estacionamento actual unicamente pela acção das classes diri-
gentes. Acresce ainda que as classes superiores da nossa sociedade,
quando se não retraem, absteem-se comtudo de exercer uma acção
benéfica sobre o meio social; acompanham essas classes diri-
gentes, apparecendo então caracterizadas por uma accentuada
anarchia mental.
A imagem da parte mais sã da nossa aristocracia hereditária,
dá-no-la Eça de Queiroz de uma forma completa e com uma pro-
fundeza inigualável na Illustre Casa de Ramires, quando descreve
o caracter do protagonista do livro, Gonçalo, descendente de uma
illustre casa do norte do país. A summula é perfeita :
Aqueile todo do Gonçalo, a franqueza, a doçura, a bondade, a immensa
bondade, que notou o Sr. Padre Sueiro... Os fogachos e enthusiasmos, que
acabam logo em fumo, e juntamente muita persistência, muito aferro quando
se tila á sua ideia... A generosidade, o desleixo, a constante trapalhada nos
negócios, e sentimentos de muita honra, esses escrúpulos, quasi pueris, não
é verdade ?. . . A imaginação, que o leva sempre a exaggerar até á mentira, e
ao mesmo tempo um espirito pratico, sempre attento á realidade útil. A viveza,
a facilidade em comprehender, em apanhar. . . A esperança constante n 'algum
milagre, no velho milagre d'Ourique, que sanará todas as diíTiculdades .
A vaidade, o gosto de se arrebicar, de luzir, e uma simplicidade tão grande,
que dá na rua o braço a um mendigo. . . Um fundo de melancolia, apesar de
tão palrador, tão sociável. A desconfiança terrivel de si mesmo, que o acobarda,
o encolhe, até que um dia se decide e apparece um heroe, que tudo an-asa. . .
Até aquella antiguidade de raça, aqui pegada á sua velha torre, ha mil annos. . .
Até agora aqueile arranque para a Africa. . . Assim todo completo com o bem,
com o mal, sabem vocês quem elle me lembra ?
— Quem?. . .
— Portugal.
Portugal, sim; mas o Portugal romântico e bohemio como
ainda existe no seio da aristocracia do nosso país.
984156A
j QQ O povo português
O typo criado por Eça tem, a um tempo, as virtudes do
norte, as virtudes e os hábitos do sul. Por isso elle encerra, no
seu symbolismo, a summula mais completa do fidalgo português,
tomando esta palavra na sua melhor e mais alta accepção.
O nosso país, para em tudo ser conforme ao retrato que da
sua éliie nos faz Eça de Queiroz, supersticioso e fatalista como
um mouro, joga constantemente em todas as lotarias possíveis,
apregoadas em altos brados a todos os cantos de Lisboa, o que
lhe dá um caracter deprimentíssimo aos olhos do estrangeiro.
Espera pela sorte gf^ande. Mas também está esperando todos os
dias por esse outro milagre no género do velho milagre de Ouri-
que, em que um grande politico, um Messias ha de vir «pôr isto
a direito». E não se convence de que toda a obra útil pessoal tem
de resultar da accumullação de pequenos esforços methodicamente
dirigidos; e que toda a obra nacional tem de ser coUectiva; que
hoje é a massa penetrada de ideias superiores de civismo e
altruísmo que substitue o grande politico dos tempos passados.
As classes dirigentes também teem de convencer-se de que é
preciso amar o país para poder dirigi-lo no sentido mais útil para
todos.
A grandeza da Allemanha moderna partiu do movimento ini-
ciado no tempo das guerras napoleónicas. Então nasceu a ideia
da pátria allemã que, evolucionando gradualmente, produziu
em 1870, o actual Império Germânico.
A Itália e a Allemanha modernas serão os dois modelos que
teremos de seguir para alcançar o nosso levantamento nacional.
António Arroyo.
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PRAIAS E ESTAÇÕES THERMAES
PORTUGAL, ESTAÇÃO DE INVERNO
UEM quiser utilizar-se das praias portuguesas, das esta-
ções thermaes e outras quaesquer estações de hygiene
do nosso país, não deve aspirar a ver realizado aqui
o que pôde encontrar no estranjeiro. O cosmopolitismo
ainda por emquanto não nos invadiu para nos impor os há-
bitos e installações grandiosas que, de ha quarenta annos para
cá, a França, a Bélgica, a Allemanha, a Suissa e a Inglaterra
vão offerecendo ao touriste e ao doente millionario. O contraste
entre esses paises e o nosso, neste assunto villegiatura e cura
de aguas, é por isso mesmo muito profundo. Mas também elle
denuncia-se logo á entrada em Portugal, ás vezes até na gare
fronteiriça. Eis como Eça de Queiroz, em A Cidade e as Serras,
nos descreve, á entrada pelo Douro, uma estação de caminho des
ferro bem nossa. Acabava de atravessar a sonora e eloquente
Espanha, como sempre de capa aos hombros e de espada a flanco,
e, de repente, sem dar por isso:
Acordei envolto n*um largo e doce silencio. Era uma estação muito soce
gada, muito varrida, com rosinhas brancas trepando pelas paredes — e outras
rosas em moitas, num jardim, onde um tanquesinho abafado de limos dormia
sob duas mimosas em flor que rescendiam. Um moço pallido, de paletot côr
de mel, vergando a bengalinha contra o chão, contemplava pensativamente o
j Q2 Praias e estações iherwaes
comboio. Agachada rente á grade da horta, uma velha, deante da sua cesta de
ovos, contava moedas de cobre no regaço. Sobre o telhado seccavam abóboras.
Por cima, rebrilhava o profundo, rico e macio azul de que os meus olhos anda-
vam agoados.
Este aspecto, que se encontra em qualquer das nossas linhas
de penetração — Minho, Douro, Beira Aha e Baixa, Cáceres,
EIvas-Badajoz, Villa Real de Santo António e Faro, é bem o de
um pais que ainda vive gozando a natureza sem muito a explorar
industrialmente. E a vida das nossas praias, e outras estações a
que me venho referindo, é também assim geralmente pacata e
nada febril. O próprio jogo de azar que, nos sítios do estran-
geiro onde se joga, toma proporções de assustar, exige installa-
ções deslumbrantes e leva muita gente ao suicidio, esse mesmo,
apesar de ser factor indispensável para a manutenção de certos
divertimentos obrigatórios em taes estações, não passa entre nós
de uma perversidade amena e pouca perturbadora da paz das
famílias.
A maioria das nossas estações ganha com isso, porque ainda
conserva o aspecto dos centros de reunião em que pessoas que
se conhecem combinam encontrar-se em tal época do anno. Não
quer isto dizer que, como também succede no estrangeiro, algumas
d'ellas não se tenham transformado e convertido em grandes
centros de villegíatura. Assim succedeu, por exemplo, com a
praia da Figueira da Foz após a abertura do caminho de ferro da
Beira Alta. Até então ella era apenas uma praia frequentada por
famílias de Coimbra e campos do Mondego, poucas de Lisboa e
Beira. Mas desde 1882 não é só uma grande parte do país, mas
também uma certa porção de terras de Espanha que ahi leva os
seus habitantes, por camadas que se succedem em agosto, setem-
bro e outubro; três camadas sociaes diversas.
Temos porem de começar a nossa enumeração por um dos
extremos do país. Seguiremos, para este caso, a ordem já ante-
riormente adoptada, começando pela província do Minho.
De facto Portugal, como país de extensa costa marítima, conta
uma grande quantidade de praias, de um extremo ao outro d'essa
linha de costa ; graças ao movimento e natureza do seu solo, pos-
sue ínnumeras nascentes de aguas míneraes de todos os géneros,
e altitudes, exposições e climas, que lhe tornam possíveis estabe-
lecimentos de cura de doenças variadíssimas. E assim é também
Praias e estações thermaes 1 o3
que as suas praias podem ser habitadas durante longos meses do
anno, geralmente de junho a novembro; que tem estações ther-
maes em todos os pontos do seu território; e que pode estabele-
cer desde o Sanatório para a cura da tuberculose, nas grandes
altitudes, até as estações de verão e de inverno, accessiveis a
todas as camadas sociaes e não somente a classes privilegiadas.
AS PRAIAS PORTUGUESAS
Desde a foz do Minho até á foz do Douro, as praias do mar
teem um caracter differente de todo o resto do pais. Está-se na
zona dos granitos, terrenos extremamente recortados, onde as
pequenas praias se succedem com intervallos muito curtos. En-
contram-se neste caso, a partir de Caminha, as praias de Moledo
do Minho, Ancora e Vianna do Casiello, ligadas todas entre si
pela estrada marginal que da fronteira chega até á sede do dis-
tricto e que, para muitos, é a mais bella do alto Minho.
Durante muito tempo» — conta-nos D. António da Costa — , vae seguindo
por entre verdura, n*uma linha recta e alva ; o mar acompanha-a á direita com
a regularidade de que, em vez de ser marginado de areaes, o é ao contrario de
vegetação, de maneira que reúne a grandeza e severidade de um mar ao en-
canto e doçura de um rio. Entre a estrada e o oceano, em linha parallela,
a extensão de veigas, ora verdes, ora louras, e á nossa esquerda uma variedade
de quadros successivos ».
Na foz do Cavado temos Esposende e não muito longe a Apú-
lia. Nas proximidades do Porto, Leça da Palmeira e algumas
praiasitas que ficam entre Matozinhos e S. João da Foz.
Todas estas teem o caracter familiar a que atrás me refiro, e
foi numa d'ellas, Mindello, a sul de Vilia do Conde, que desem-
barcaram os 7:5oo Bravos, os companheiros de D. Pedro IV. Devo
ainda citar novamente Leça da Palmeira, na foz do Leça, já pelo
seu caracter campestre, já por ser a praia preferida pela colónia
inglesa do Porto.
Mas entre ellas algumas outras se encontram que teem pro-
porções consideráveis. Logo a seguir á Apúlia, a Povoa de Var-
» No Minho,
I04
Praias e estações thermaes
^im que, sem contestação, é a mais frequentada das praias ao
norte do Douro, embora exclusivamente pelas provincias conti-
guas — Minho e Trás-os-Montes. Já ahi por iSyS ou 1874, nos
seus inicios, D. António da Costa assim no-la descreve :
Povoação extensa, está atulhada de banhistas. É, de pouco tempo, uma
completa invasão : a moda, na província. De manha, praia ; de tarde, passeio
no paredão, ou ver as pescarias ; depois
o delírio do jogo. No coração da villa,
onde se acham os hotéis, os três bote-
quins, e as três casas publicas de jogo,
difficil é o transito á tardinha e á noite.
De agosto a outubro concorrem aqui
22:000 pessoas. A praia fica num dos ex-
tremos, praia larga, aberta, excellente K
Em contraste com a Povoa,
como mais tarde encontraremos
as praias da Granja e Espinho,
apparece agora, á foz do Ave, a
vetusta e aristocrática Villa do
Conde, anterior á fundação da
monarchia e hoje muito procu-
rada pelas familias das cidades
do norte. A citar ainda Matosi-
nhos, a mais frequentada das
praias vizinhas do Porto, e final-
mente S. João da Fo:{.
Em todas estas praias e arre-
dores ha mais ou menos curiosi-
dades astisticas a visitar, e a
algumas d'ellas já me referi quando tratei do país em gerai. Alem
dos edificios de Caminha e Vianna do Castello, devo porem aqui
lembrar os que se encontram nas proximidades da Povoa do
Varzim e Villa do Conde: as igrejas românicas de Rates e
S. Christovam de Rio Mau, as igrejas manuelinas de Villa do
Conde e Azurara e outros monumentos menores, o pelourinho
da Villa, por exemplo. De Leça da Palmeira, em delicioso pas-
VILLA DO CONDE
» Loc. cit.
Praias e estações thermaes
io5
seio, visitam-se facilmente os antigos mosteiros de Leça do Bailio
e Aguas Santas, a que já me referi também e que foram respec-
tivamente sedes, entre nós, aquelle da ordem militar de S. João,
ou do Hospital de Jerusalém, mais tarde chamada de Malta, este
da ordem militar e canónica do Santo Sepulcro.
Diga-se ainda que, em quasi toda esta parte da costa portu-
guesa, ha uma industria local — a das rendas de bilros, feita com
linha, e no typo da cha-
mada Dentelle torchon. Cen-
tros principaes d'este fa-
brico: — Vianna, Villa do
Conde e, para o sul, Peni-
che.
De Matozinhos até
S. João da Fo:{, mais co-
nhecida por A Fo:{, a estra-
da marginal segue em pe-
quena elevação, de onde se
goza o panorama de mar
mais delicioso que tenho
visto ; a estrada recorda um
pouco as digites que ao
longo do mar se usa cons-
truir nas praias de Flandres
e sobre as quaes, mais tar-
de, se levantam dezenas de
soberbas edificações. Mas, se as casas da nossa estação portu-
guesa não se lhes podem comparar, todo o resto é infinitamente
superior ao que se encontra nessas paisagens do mar do norte.
Ceu, luz, atmosphera maritima de uma intensidade rara, vegetação
envolvente, tudo isso se encontra em poucos sitios como nessa
successão de pequenas praias, a do molhe de Leixões, a do pare-
dão de Carreiros, a de Gondarem, a praia dos Ingleses e a do
Ourigo.
Ramalho Ortigão, apesar de viver ha muitos annos no sul,
não recorda esses sitios sem viva commoção:
Sob o ceu radioso, — diz-nos elle — , um vasto mar azul ondula, bate os ro-
chedos da costa e inunda-os de espuma. Na atmosphera fresca, picante de sal,
palpita o perfume das algas. Ao longe do mar negreja uma extensa linha como
NA PRAIA DE MATOZINHOS — O SENHOR DO PADRÃO
io6
Praias e estações thermacs
a de um formigueiro, de pequenos barcos á pesca do caranguejo. A areia da
praia reluz polvilhada do sol. Cantando no ar como a frescura de uma alvorada
ouve -se o pregão alegre, vibrante, alongado em toda a largura da pronuncia
de uma rapariga minhota : — Merca louça branca ou amarella, merca ? Abro
bem a bôcca para me deixar embeber e penetrar da luminosa alegria do arem
que parece diluida uma poeira aquática, diaphana, de pérolas liquidas douradas
pela luz. O pregão tão caractcrisiico da louça branca ou amarella, que tnntas
vezes ouvi em pequeno na estação dos banhos n'este mesmo sitio, iranspor-
ta-me em espirito ao tempo passado, e sinto-me como n'um banho ideal de
mocidade i.
FOZ DO DOURO — PRAIA DO OURIÇO
Todas estas praias desde Leça da Palmeira até á Foz, num
percurso de 4 kilometros que se prolonga por um outro de igual
comprimento até o centro do Porto, não podiam deixar de ser
frequentadas principalmente pela população da segunda cidade
do reino. A Foz, porem, é mais propriamente um bairro do Porto,
já faz parte da cidade e tem uma população fixa. Os forasteiros
são ahi relativamente em pequeno numero.
Por isso mesmo, a Foz de hoje é muito diversa da que Ra-
malho Ortigão nos cita nas seguintes palavras, escritas ha mais
de trinta annos:
Por uma janella aberta sobre o terraço a luz côr de pérola da madrugada
entrava humedecida e salgada pela viração maritima. As banheiras, filhas e moças
Farpas, i
Praias e estações thermaes
107
da Maria da Luz, armavam as barracas na praia, cantando ao longe em tercei-
ras, n'um coro argentino de sopranos, uma barcarola local. Os primeiros pre-
gões matutinos dos vendilhões ambulantes penetravam do lado da rua pelas
fendas horizontaes das gelosias, que o clarão da manhã pautava luminosa-
mente de azul i.
Esta é a evocação da Foz, a que se ia de carroção puxado a
bois, mais tarde em char-à-bancs e, ainda durante muito tempo,
em americanos puxados a mulas. Tudo isso está hoje algo moder-
nizado e apressado em velocidades de conducção. O Passeio ale-
gre, junto da foz do rio, é um ponto de reunião elegantissimo e
de bom gosto indiscutivel.
^-r--*sfc.r.:, ..
A VORTE DO PORTO
Como disse atnís, estas praias teem um caracter especial: a
rocha de granito entra pelo mar e recorta a faixa de areia com
formas muito caprichosas. Passada a foz do Douro encontramo-
nos porem, desde logo, na zona das dunas, larga superfície de
areia, lisa, sem incidentes que lhe rompi.m a uniformidade.
Após Arco\ello, pequena praia de recente data, apparecc a
Granja, que é a mais aristocrática de todas as do norte e a uma
das mais agradáveis de todo o país como temperatura de verão.
I Farpas, i.
io8
Praias e estações thermaes
Graças á vegetação que se encontra por toda a parte e á sua mata,
pode dizer-se que na Granja nunca se sente calor. Acresce a esta
circunstancia o facto da proximidade do Porto e de uma infini-
dade de aldeias, para que nada ali falte como alimentação. Mas,
antes de mais nada, é o próprio aspecto da terra que seduz:
uma espécie de alameda ou jardim, onde uma multidão de ca-
sas de apparencia agradável oppõem irregularmente as cores vivas
das suas fachadas ao verde profundo das arvores. A Granja tem
os seus apaixonados de Lisboa e até de Espanha; muitas famílias
A RIA DE AVEIRO JUNTO DA COSTA NOVA
distinctas espanholas a frequentam ha já muitos annos e até algu-
mas possuem ahi casa própria; e, de facto, sempre ella tem sido
considerada como uma excepcional Estação de verão.
A quatro kilometros de distancia, e sempre á beira da linha
férrea do Porto a Lisboa, está Espinho, desde sempre rival burguês
da Granja, mas muito mais importante como população de banhis-
tas. Para o norte do Vouga não ha praia mais frequentada do que
esta, nem talvez a Povoa de Varzim a iguale. Um serviço de
tvamwãfs põe-na em communicação com o Porto e Aveiro. O mar
tem ha annos destruido uma parte da villa; mas a cada bairro
que elle destroe succede um novo bairro construído mais para o
interior. E parece que o mar é que tem de ceder. Espinho não
pode acabar. Cada vez é, pelo contrario, maior.
Praias e estações thermaes
109
Retomando-se a linha férrea, se for de noite e não houver bru-
ma, olhando para o lado do mar, logo após Estarreja e a 20 ki-
lometros de distancia avista-se o bello farol da barra de Aveiro,
que fica no extremo da Costa Nova, nome que ahi toma a praia.
A duna tem em Aveiro uma importância excepcional, a que me re-
feri quando, no meu estudo anterior, citei a região da Gafanha,
conquistada completamente ao mar. A Costa Nova fica precisa-
mente no extremo poente d'essa região e apenas separada d'ella
pelos braços da ria parallelos á linha da costa marítima.
A PRAIA DA FIGUEIRA DA FOZ
Mas a praia mais importante de toda essa região é a Figueira
da Fo\, aonde se chega, quer deixando a linha férrea do Norte
na Pampilhosa e tomando a linha que d'ahi segue até o mar,
quer deixando-a em Alfarellos e seguindo pelo ramal que bifurca
na Amieira, linha de Torres, e entra na Figueira depois de
atravessar o Mondego. Por seu valor próprio, como cidade, e pela
pequena distancia a que se acha de Coimbra, a Figueira é uma
das mais valiosas terras de villegiatura do país. A praia propria-
mente dita é lindissima. E, sem ter a grandeza da bahia de Cas-
caes, a pequena bahia de Buarcos é comtudo digna de ser citada
pelo seu panorama especial.
Olhe-se para o lado do norte, do alto do forte de Santa Ca-
tarina, construido na foz do Mondego. Á direita, longe, ao fundo.
I IO
Praias e estações thermaes
limita-nos a vista um massiço denso de pinheiros; mas descre-
vendo um arco concavo deparamos com a povoação de Buarcos á
beiramar, e mais adeante o Cabo Mondego penetrando nas on-
das. Em plano inferior, estende-se a praia como um crescente
franjado de escuma alvíssima. Inigualável o seu aspecto festivo,
de manhã, num dia de sol, quando armadas todas as barracas de
lona muito branca, encimadas por pequenas bandeiras vermelhas
que o vento agita.
NA N AZAREI H
Figueira da Foz, cidade, possue o seu theatro; mas no Bairro
Novo^ na praia, encontra-se o maior Casino ou Kursal de todo o
pais, exceptuando o Colyseu de Lisboa.
Após Vieira, ainda assente na duna e no parallelo de Leiria,
encontra-se a primeira praia em terreno de arribas, A Na^areth,
sitio notável graças ao salto mortal que D. Fuás Roupinho, por
obra do mafarrico, ia dando, se a Senhora dos Aiflictos lhe não
acode a tempo. O aspecto que a arriba ahi toma é verdadeira-
mente formidável. A rocha eleva-se a pique numa enorme altura,
algumas dezenas de metros, e creio que nenhuma outra arriba se
lhe pode comparar. D. Fuás é que podia realmente gabar-se
de ter escapado de boa.
S. Martinho do Porto, a mais familiar das praias ao sul do
Vouga, dotada de uma temperatura ideal, que faz d'ella uma ver-
Praias e estações thermaes
1 1 I
dadeira Estação de j^erão, é uma bahia pequeníssima, circular,
a que dá accesso um corte vertical nas arribas de mar. Hoje,
após assoreamentos seculares, é apenas o resto de uma grande
bacia; porventura no futuro, quando se rebaixar a entrada do
porto e as dragas escavarem os terrenos interiores, converter-se-ha
num collossal porto de abrigo. Do lado do mar protegem-no as
arribas, do lado de terra uma cadeia circular de montanhas. E, se
nós, em logar de seguirmos a linha de Torres, que o serve,
subirmos por um momento ao alto das montanhas onde passa
o FAROL DA GUIA, A N. DE CASCAKS
a estrada das Caldas até Alcobaça e Leiria, de que Ramalho
Ortigão nos deu a descrição inserta no meu primeiro estudo,
S. Martinho apparecer-nos-ha apenas como uma bella saphira de
um azul profundo engastada no extremo d'essa enorme caldeira
circular.
Mas retomemos a linha férrea até á Estação de Mafra.
Seguindo d'ahi em carruagem, passa-se pelo convento de Mafra,
a obra de D. João V, uma enormidade coUossalmente inútil, no-
tável pela sua grandeza e perfeita construcção. D'ahi pode ir-se
pela Ericeira, villota edificada no alto das arribas, em cujos inter-
vallos se encontram excellentes mas pequeninas praias; deixando
á direita as Arribas do Mar, a Praia das Maçãs e o pittoresco valle
de Collares, subir a Cintra, para depois se tomar a estrada de
Cascaes.
I 12
Praias e estações thermaes
Cascaes é a mais importante das nossas praias de arribas. Ahi
se encontra a celebre Boca do Inferno, funda caverna por onde o
mar entra com grande estrondo quando está mexido e cujo aspecto
é então deveras fantástico, sobretudo observado do alto da estrada
contigua. Por ser a residência da corte nos primeiros meses do
outomno, pela proximidade em que se acha de Lisboa, a que a liga
A BOCA DO INFERNO BM CASCAES
O melhor serviço de tramways do país, e pela sua maravilhosa
situação sobranceira á bahia que tem o seu nome, esta estação
adquire uma importância de facto excepcional entre nós.
A margem direita do Tejo, após Lisboa, segue numa linha
ondulante até á barra e ahi forma, com o seu prolongamento da
costa marítima, o angulo voltado ao sul, em cujo vértice, e fron-
teira ao Bugio, em meio da barra, está a Torre de S. Julião.
A partir d'ahi, a costa inclina docemente, quasi para noroeste,
descrevendo um arco concavo, em sentido portanto contrario ao
doesse angulo, e circunscrito á formosa bahia ; como ultima praia
Praias e estações thermaes j 1 3
de uma serie que, na sua encosta, de facto se segue sem interru-
pção: Carcavellos, Parede, S. João do Estoril, Santo António do
Estoril e Mont'Estoril, está Cascaes. Todas essas praias olham
pois para sul e acham-se abrigadas dos ventos rijos do norte pela
serra de Cintra, circunstancias que lhes dão condições climáticas
especiaes de que mais adeante falarei. Elias teem ainda um cara-
cter novo entre nós. Residência da corte, do mundo diplomático e
das familias nobres do país, Cascaes impõe obrigações também
especiaes a algumas d'ellas e é por essas que o cosmopolitismo
entra em Portugal.
Com effeito, o MontEstoril mais parece uma estação do Medi-
terrâneo do que uma praia portuguesa. Entretanto a transforma-
ção faz-se lentamente, porque carece de capitães importantes para
se terminar.
Apesar d'isso, a magnificente bahia continua a ter a sua natu-
ral belleza que obra alguma humana será capaz de diminuir. «O
sitio, — diz um estrangeiro — , tem uma belleza oriental, com a sua
vegetação dos trópicos, as palmeiras, as piteiras gigantes, as camé-
lias, e as cristas de olivaes e soutos de sobreiros coroando de
verde as colinas que dominam a immensidade azul» '. E note-se
que o mesmo autor diz ainda que a conservou para elle, após a
festa consagrada da illuminação que ahi costuma ser um deslum-
bramento, na opinião até dos mais exigentes.
Na margem direita do Tejo as estações balneares succedem-se
ate ao Bugio, como um longo rosário de contas: Pedrouços, Al-
gés, Dafundo, Cruz Quebrada, Caxias, Paço d'Arcos, Oeiras,
outr'ora muito importantes, quando as descreveu Ramalho Orti-
gão nas suas Praias de Portugal e não havia ainda a linha
férrea do litoral, hoje bastante diminuidas d'essa antiga impor-
tância. Na margem esquerda, encontra-se a modesta estação
da Trafaria, ao mesmo tempo povoação de pescadores. Bulhão
Pato, que habita perto d'ahi, em Caparica, dá-nos uma viva des-
crição de uma pesca de sardinha, cheia de pitoresco local.
Sol alto ainda, saimos até á praia. Era véspera de Nossa Senhora da Con-
ceição, a grande festa annual da terra. Os habitantes é que estavam descoro-
I Jcan Bemard, La Vie de Paris, 1905.
I j j^ Praias e estações thermaes
coados e tristes ; a sardinha, a famosa sardinha da salga, não tinha dado nada
ou quasi nada. Mais uns dias de escassez e lá se iam as esperanças. .. o pãa
por muito tempo I Mar calmo. Na crista dos médãos, homens, mulheres, rapa-
zes, mudos, immoveis, olhos cravados na companha, que lá muito ao largo
vinha, regressando. De manhã os alcatrazes, de aza fechada, caindo do alta
como raios, picavam a flor das aguas, indicio de grandes negras de sardinha.
Pelo cariz do tempo, o lanço devia de ter sido grande. Chegaria a salvamento,,
ou rebentaria o saco ? 1 Silencio profundo nos de mar e nos de terra. O silen-
cio é signal certo de grande preoccupação de espirito, nos moradores de po-
voações marítimas, tão vivos e loquazes.
Ao rez do mar grandes grupos moviam-se visivelmente inquietos. Com o
sol, que já no ponente batia o areal, aquellas figuras pareciam tomar propor-
ções giganteas, cingidas de nimbos de ouro. O sol, as montanhas, o mar, as
soberbas e solemnes paizagens, em vez de apoucarem o homem, engrande-
cem-no.
A beira de agua principiou a correr um torvelino, levantando pyramides de
areia. De repente uma lufada súbita correu violenta. Os prodromos do furacão
teem rugidos dolorosos como os de leão na entrada da febre. Daria n*uma tem-
pestade ? Quantos corações ficaram apavorados em tal momento !
Os barcos aproximaram-se da terra. A multidão silenciosa. A vaga alta como
de mar movido ao longe, embora não arrebatada. N'um ai tudo salvo ou tudo
perdido! O sacco. . . a montanha de prata, estava a salvamento na praia. Raros
olhos ficariam enxutos vendo rebentar a alegria d*aquelle povo !
O sol, disco de fogo, tocava a superfície das aguas, que serenavam, passada
a borrasca ephemera, permittindo que olhos humanos se cravassem no seu
occaso explendido. Em breve a linha arenosa e )á desmaiada, que segue até o-
Cabo, a bahia de Cascaes, os picos de Cintra, os montes e povoações do norte^
o Tejo dormente, desvaneciam-se no breve crepúsculo das tardes de inverno.
O pharol do Espichel, girando as suas aspas de fogo intermittentes, parecia
abrir sulcos luminosos pelo mar levemente enrugado. Bugio e S. Julião accen-
diam-se. As estrellas estremeciam no firmamento limpido. Noite coroada de
lumes. A aragem era um alento virginio, e a vaga na praia um suspiro amo-
roso. As redes voltaram ao mar. A companha bradou a uma voz :
— Avé, Maria puríssima 1 »
Repete-se esta scena da nossa vida do litoral de um extremo-
ao outro do pais. Entretanto ella toma no Tejo um aspecto di-
verso, de uma grandiosidade que não deve passar despercebida.
E, recordando o que dissemos acerca da paisagem no nosso grande
rio, mais uma vez se verifica que essa grandiosidade lhe vem do-
fundo luminoso em que tudo se projecta e nos apparece aumen-
tado. Os dramas humildes da existência dos pobres pescadores.
» Bulhão Pato, Memorias, m.
Praias e estações thermaes
ii5
dentro d'esse quadro de uma luz tão perturbadora, attingcm uma
intensidade trágica excepcional. Como que se transformam em
episódios de uma vida sobrehumana.
Note-se ainda que a scena passa-se no inverno.
De Cascaes até ao extremo sul do reino, vamos agora encon-
trar-nos numa região cujo clima se aproxima notavelmente do do
Mediterrâneo: chuvas minimas e temperaturas medias. Por isso
mesmo a nossa descrição tem agora de ser curta, para tomar maior
incremento na ultima parte doeste trabalho — Portugal, estação
de inverno.
SETÚBAL— CASTELLO DE S. FILIPE
Ao sul de Lisboa, a linda cidade de Setúbal abriga-se por de-
trás dos montes de Palmella contra os ventos do norte. A sua
praia, na foz do Sado, forma-se ao pé das arribas que, já agora,
só nos deixarão, dobrado o Cabo de S. Vicente, para alem de
Portimão. EtTectivamente, as melhores praias do Algarve — a da
Im\ (Lagos) e a da Rocha (Portimão), ambas ellas encantadoras
como paisagem, são também ambas ellas de arribas.
Toda a nossa costa, desde a foz do Sado até ao cabo Espi-
chel, olha para sul e é extremamente abundante em fauna marí-
tima de variadas espécies. Ahi fica Cezimbra, a piscosa, como lhe
chamou o nosso épico, suppondo que só lhe analysaria os versos
quem soubesse latim. Mas entre ella e a foz do rio, um pouco a
ii6
Praias e estações thermaes
nascente do Outão, encontra-se a pequena praia de Albarquel,
alojada na bahiazinha do mesmo nome e protegida pelas arribas
onde assenta um velho forte desmantelado. Ha annos pensou-se
em fundar ahi uma estação scientifica, destinada ao estudo de
essa rica zona marítima, como preparatório da exploração me-
thodica de todas as industrias do mar em torno da pesca, fonte
principal da riqueza da região.
Da ponta sul da barra do Sado e encurvando levemente para
terra, a costa desce no meridiano até ao cabo de Sines, numa
SETÚBAL — PRAIA DA MARIA Ei^GUELHA
faixa de terrenos modernos onde se não encontra praia alguma.
Abrigada dos ventos do norte pelas arribas do cabo e toda vol-
tada ao meio dia, apparece então a pequena angra onde existe a
única e modestíssima praia da província alemtejana.
O nome de Sines parece oriundo de sinus. O golfo, apesar da
sua diminuta superfície, teria pois sido considerado nos tempos
antigos como o golfo por excellencia : por não haver outro ponto
abordável em grau e meio da costa marítima, desde o Sado até
ao cabo de S. Vicente. Mas não é esse facto que o illustra para
a nossa historia, e sim o de ahi haver nascido, em 1469, a Este-
vam da Gama e á lady entre nós chamada Branca Sodré, um
filho de nome Vasco, que é porventura o mais feliz dos portugue-
ses, se não em vida, certamente depois da glorificação eterna que
sobre elle irradiam os versos de Camões.
Praias e estações thermaes
117
A pequena praia de Sines é a mais familiar e timorata das
suas congéneres portuguesas. Frequentam-na algumas familias da
terra e poucas de Espanha, vindas por Badajoz e ainda por Aya-
monte. E mais uma povoação algarvia pela natureza das culturas
locaes, condições climáticas e caracter dos habitantes; e vive prin-
cipalmente da industria da pesca, idêntica á do Algarve, e da ex-
ploração da cortiça, peculiar ao Alemtejo.
Desde ahi, em toda a costa, correndo a Sul, e ainda depois
de passado o cabo de S. Vicente, não divisamos novas praias.
PORTIMÃO — PRAIA DA ROCHA
De facto, as da Luz e da Rocha, a que acima alludi, ficam no
Algarve e a mais de vinte kilometros para leste da ponta de Sagres.
Mas esta ultima província conta ainda uma grande quantidade
de praias, das quaes não podem deixar de se citar: Ferragudo,
Carvoeiro (Lagoa), Ai^mação (Pêra), Albufeira e Monteroso (\'illa
Real de Santo António), todas ellas agora em terreno de praia, o
terreno moderno do extremo do país.
Nas costas do Algarve teem-se desenvolvido varias pescarias
e as industrias annexas das conservas. Mas ainda assim a pesca
peculiar á região continua a ser a do atum que se realiza em ar-
mações especiaes e duas vezes por anno, nas viagens migratórias
que o tímido animal periodicamente effectua, com percurso obri-
gatório pelo extremo do nosso país.
A região algarvia tende a desenvolver-se, em parte, graças aos
seus portos de mar e, sobretudo, ao de Lagos, que está destinado
ii8
Praias e estações thennaes
a um prospero futuro, se for convenientemente aproveitado para
as necessidades das grandes viagens marítimas de circulação. Ha
annos já que a marinha inglesa de guerra toma a bahia de Lagos
como um dos pontos de apoio e estacionamento para as suas
grandes manobras, reunindo ali por vezes esquadras collossaes,
ou varias esquadras ao mesmo tempo. E é digno de apontar-se o
seguinte caso de contraste que, não ha muito, pôde ali obser-
var-se entre a maior frota de guerra da actualidade, pertencente
á primeira nação colonizadora de todos os tempos, e um pequeno
vaso de uma minúscula nação que foi a primeira a descobrir e a
conquistar terras e novos caminhos por todo esse mundo além.
HA PONTA DE SAGRES
Era de verão. E, na linda e majestosa bahia estava ancorada
uma armada inglesa de mais de cem navios de todos os tama-
nhos, grandes couraçados, cruzadores, avisos, torpedeiros, des-
iroyers, submarinos. Tinham chegado havia pouco tempo e, desde
logo e em plena marcha, tomavam as rigorosas posições que de-
pois sempre mantiveram, quando regressavam das manobras. E
assim, aquella enorme força de guerra impunha-se pelo seu for-
midando caracter de sciencia e calculo impeccaveis. Mas do alto
avançou um delicado veleiro, a nossa corveta de instrucção dos
guardas-marinhas. E, com suprema elegância, a todo o pano, pas-
sou pela frente da frota britannica, rodeou-a e, saudando-a gra-
ciosamente, lá se metteu de novo ao mar, como uma evocação
de sonho de arte, symbolo galante da nossa epopeia marítima,
quando de cá se ia á descoberta da Africa portentosa, á conquista
da índia, ao encontro do Brasil, ou á volta do mundo dentro de
Praias e estações thermaes
119
quaesquer cascas de noz. E a pessoa que de Lagos me descrevia
o caso acrescentava:
E, na ponta de Sagres, a alma do grande e tremendo Infante enterneceu-se
-pela primeira vez na sua metade portuguesa, e pela primeira vez pasmou de
quanto cá se fez, com elle e com o pouco que havia. A metade inglesa, essa
achou simplesmente correcto e natural que todos os oflíiciaes e toda a tripulação
da frota britannica, mais de quarenta mil homens, corressem á amurada dos
seus navios, para ver uma cousa inédita para quasi todos — passar a alma dos
antigos marinheiros portugueses.
j-^.
AGUAS E ESTAÇÕES THERMAES
Como se lê na memoria do Sr. engenheiro António Maria da
Silva sobre Nascentes thermo-minei^aes de Portugal, vol. i, graças
á contextura e antiguidade do nosso solo, regista-se nelle a exis-
tência de um sem numero de nascentes de emprego therapeutico.
E tal é a riqueza doesse nosso meio therapeutico que, apesar de
dividido o país em duas zonas de desigual distribuição e applica-
ção, doenças ha que, através de ambas as zonas, encontram a cada
passo as aguas santas que as curam..
j 20 Praias e estações thermaes
O chefe do serviço official de inspecção das nossas nascentes,
num valioso trabalho de onde extracto % fornece as mais amplas
indicações acerca do seu melhor aproveitamento. E não é em meia
dúzia de paginas que poderá resumir-se o importante assunto,
apesar de limitado, tanto quanto ao numero de nascentes, de que
indico as mais importantes, como á descrição das suas situações
locaes. Por isso citamos a fonte de informação para quem mais
seguramente queira aproveitar-se d'essas fontes de salvação.
Na enumeração que se segue, refiro ainda o valor therapeutico
da nascente apenas á sua especialização e não a todas as suas
applicações. E farei essa enumeração por grupos de doenças e
segundo a ordem de exposição adoptada até aqui.
Rheumatismo e doenças de pelle. — Este é o grupo mais nume-
roso das nossas aguas e thermas, facto que nos leva aqui a
chamar a attenção dos nossos leitores para o citado estudo do
Sr. engenheiro Silva, por nelle se encontrarem as razões de ordem
geológica que explicam e regulam o apparecimento das aguas em
taes ou taes terrenos.
Caldas de Monção, districto de Vianna, já conhecidas desde
1706. Bicarbonatadas, sódicas e lithinadas. Grande caudal — 1:600
doentes por anno, geralmente espanhoes. A estação vae de i5 de
maio a 3i de outubro. Biivette e balneário.
A villa de Monção está situada no extremo norte da fronteira,
á borda do rio Minho que, no dizer de D. António da Costa, não
vae, como o Lima, brincalhão, serpeando; vae cheio de margem
a margem, através de duas paredes formadas por arvoredo sil-
vestre, em lanços extensos e calmos, com solemnidáde.
A esta solemnidáde, — acrescenta depois — , junta-se ainda outra de Monção
a Valença : são as falladas ranhas (degraus d'agua na largura do rio) pelas quaes
o barco tem de descer, e três d'ellas, as da Filha boa, e a de Terra caida, de
perigo mortal.
«r. . .na margem direita, a cidade de Tuy, a sentinella de Hespanha com a
sua cathedral dominando a povoação, e na margem esquerda Valença, a atalaya
portuguesa, com a sua coroa de fortiíicações, de cujo centro se hastea a ban-
deira das quinas. . . »
Conselheiro Sarzedas^ Aguas mineraes — Physiotherapia, 1907.
PraLis e estações thermaes \ 2 )
Caldas do Eirogo, a 5 kilomeiros de Barcellos, para nordeste.
Bicarbonatadas, chioretadas, sódicas, siliciosas e sulfhydricas.
Abundantes, duas nascentes. Estação de i de junho a 3i de ou-
tubro — Soo doentes por anno. Biivette, pulverizações e balneário.
Estas ihermas são de recente exploração e acham-se assaz bera
installadas, apesar de não terem attingido ainda a situação a que
o seu constante progresso deve fazer aspirar. Elias estão alem
d'isso situadas numa linda região, já atrás citada, a do valle onde
poisam as vertentes do Tamel, em aguas do Cavado.
o RIO VIZELLA
Caldas da Saúde, a 3 kilometros de Santo Thyrso, para norte.
Chioretadas, sulfúreas, sódicas, silicatadas e bromo-iodadas. Abun-
dantes. Estação de i de maio a 3o de setembro — 3oo a 400
doentes por anno. Balneário.
Estas aguas, embora exploradas ha muito tempo, e crê-se até
que pelos romanos, teem actualmente uma installação modesta,
posto que bem cuidada e moderna.
Caldas de Vi:{ella, concelho de Braga, já conhecidas do tempo
dos romanos. Carbonatadas, sódicas, sulfúreas, siliciosas. Enorme
caudal, varias nascentes. Notáveis também na cura da syphilis,
— 3:ooo doentes por anno. Estação de i de maio a 3i de outu-
bro. Buvette, pulverizações e balneário.
D. António da Costa chama á terra Apitioresca V^ella, e diz-
nos que, na sua paisagem, o que mais nos encanta é a desharmo-
122
Praias e estações thermaes
nia de todos os elementos que a compõem e se transforma de
facto na mais formosa das harmonias ; que não ha extensão, mas
graça, nessa paisagem.
O rio, — conta-nos elle — , meio encoberto com tanta vegetação, já saltando
de entre fragas, já serpeando por entre ar\'oredo, alarga os braços debaixo da
ponte nova, o sitio mais pitoresco, e
reflectindo ao longo d'elle os castanhei-
ros, os carvalhos e os salgueiraes, offe-
rece então aos olhos um limpido espe-
lho, c aos ouvidos um doce queixume
produzido pelo som melancólico das
successivas quedas de agua, que nos
acordam a saudade.
Caldellas^ a 16 kilometros de
Hraga. Bicarbonatadas, sódicas,
cálcicas, carbónicas e silicatadas.
Abundantes, varias nascentes.
Muito empregadas também, fora
da sua especialização, em doen-
ças do apparclho digestivo — 700
a Soo doentes por anno. Estação
de 1 de junho a 3o de setembro.
Riivette e balneário.
Caldellas está situada numa
baixa minhota cuja paisagem é
suavissima e o terreno envol-
vente feracissimo. A 100 metros
e a meia encosta, sobranceiro ao valle, o Hotel da Bella Vista.
Para se apreciar o valor do sitio basta dizer que, conhecidas dos
romanos e durante muito tempo abandonadas as aguas, ahi pelos
fins do século xviii foram novamente exploradas pelos frades de
Rendufe. E, como é sabido, os frades, no nosso país pelo menos,
oram possuidores dos sitios mais bellos e valiosos, que por cá
havia.
Chatrs, no districio de Villa-Real. São as Aquaejlaviae e, mais
tarde, caliJae dos romanos. Bicarbonatadas, sódicas, gazo-carbo-
nicas^ siliciosas.
Estas aguas estão até agora mal exploradas, apesar das supe-
riv)res qualidades que todos lhe reconhecem. É de crer, porem.
EM CALDELLAS
Praias e estações thermaes
123
que, terminado o caminho de ferro, cuja lesta fica situada na
planturosa e celebrada veiga, que se estende em plano inferior
á villa, esta adquira maior importância, graças á maior facili-
dade de accesso; e que, então, as suas aguas se transformem
e adquiram por seu turno o valor real que devem ter.
Caldas de Moledo, á beira do Douro, próximas da Régua.
Bicarbonatadas, sódicas, silicatadas e sulfúreas. Grande caudal,
varias nascentes. Muito empregadas também no tratamento da
o TÂMEGA EM CHAVKS
syphilis — 900 a 1:000 doentes por anno. Estação de i de Junho
a 3i de outubro. Buvelte, pulverizações e balneário.
Pela sua situação ao lado da linha férrea do Douro, a povoa-
ção é um centro de excursões interessantes: ao rio maravilhoso,
cuja visita se deve fazer em quasi toda a sua extensão dentro do
país; á região de Villa Real, a que atrás me referi; finalmente,
a Lamego, seus edificios e arredores.
Thermas da Rainha D. Amélia, cerca de S. Pedro do Sul,
districto de Viseu. Apesar do seu enorme caudal, elevada hyper-
thermia, e da maravilhosa situação em que se acham, estas ther-
mas estão ainda por estudar devidamente e até por aproveitar
como convém.
Já me referi anteriormente á encantadora povoação a que se
dá o nome de Cintra da Beira, a villa de S. Pedro do Sul, so-
branceira ao espaçoso valle em que confluem quasi ao mesmo
124 Praias e estações thennaes
^empo o Troce, o Vouga e o Sul. A falta de um caminho de ferro
Qpncorreu, porem, até agora para essa vil la ser menos conhecida
e visitada. E tudo leva a crer que, construida a linha do Vouga,
a região prospere e se converta num ponto de excursão e ville-
giatura, a que dá o maior valor, não só a superior belleza de toda
a região em redor, como também a proximidade da cidade de
Viseu com as suas riquezas de arte.
O Banho de S. Pedro, que dista apenas alguns kilometros da
villa, será então largamente aproveitado. Porque deve dizer-se
que, na sua composição e applicações therapeuticas, as aguas do
Banho parecem constituir uma entidade á parte, dentro do país.
O Sr. Conselheiro Sarzedas assemelha-as ás aguas francesas de
Evaux, e suppõe-nas indicadas para o tratamento de rheumatismo,
neurastenia, nevralgias, doenças uterinas, lithiases biliar e renal,
atrophia muscular e artero-esclerose. São aguas sulfhydricas.
Caldas de S. Jorge, a 7 kilometros da \^illa da Feira. Abun-
dantes. Sulfhydratadas, chioretadas sódicas e alcalinas. Estação
de I de junho a 3o de setembro — 400 a 5oo doentes por anno.
Balneário.
Estas aguas estão situadas numa região de vastos pinhaes,
A installação carece de grandes melhoramentos, por datar de
muitos annos e não haver sido convenientemente modificada.
Aguas chioretadas de Alcanhôes, a 7 kilometros de Santarém,
para o norte. De exploração recente. Chioretadas sódicas, leve-
mente sulfatadas e siliciosas. Uma nascente só, mas abundante.
Empregada também nas doenças de estômago — 200 a 3oo doen-
tes por anno. Estação de i de junho a 3o de setembro.
A situação doestas aguas é por e.nquanto muito modesta
e carece melhorada.
Cucos, a 2 kilometros de Torres Vedras. Aguas e lamas
mineraes especialmente usadas no tratamento do rheumatismo.
Chioretadas sódicas, bicarbonatadas, cálcicas, lithinadas e silicio-
sas. Grande caudal em varias nascentes — 400 a Soo doentes por
anno. Estação de 1 5 de maio a 3o de setembro.
Estas thermas são de exploração recente. Apesar d'isso, a sua
installação é magnifica, e a sua prosperidade constante e cres-
cente. Accesso pela linha de Lisboa-Torres-Figueira.
Caldas da Rainha, entre Lisboa e Leiria, Aguas chloro-
sulfatadas, sulfhydricas e fosfatadas. Grande caudal, varias nas-
Praias e estações thermaes j 2 5
centes. A sua especialização é precisamente: arihritismo, syphilis,
doenças utero-ovaricas — 4:078 doentes em i9o(>. Estações: de
i5 de maio a 3i de outubro, e de 1 de janeiro ao ultimo dia de
fevereiro. Buvette, pulverizações, balneário.
Estas caldas, que já foram conhecidas pelos romanos, possuem
installações de primeira ordem. Graças porem á amenidade do
clima e á superior belleza da região em que a villa está situada,
esta é ainda um grande cen-
tro de villegiatura, como Es-
tação de verão\ 8:000 a
10:000 forasteiros, perten-
centes ás mais elevadas ca-
madas sociaes, ahi vêem todos
os annos passar a temporada
mais quente do anno.
A linda villa das Caldas da Rai-
nha é o centro de villegiatura que
CALDAS DA RAINHA— RIO DO AVENAL cm Portugol maís SC parccc com as
terras de aguas francesas e allemãs.
Não tem, certamente, Trinkhalle magnifica, nem a esplendida Conversations-haus
de Baden ; não tem o Corsaal de Wiesbaden, com o seu pórtico jónico, a sua
arcada rodeada de lojas de luxo, e o seu grande salão, de galerias sustentadas
em columnas de mármore, revestido de estatuas de Garrara ; não tem theatro,
não tem sumptuosas salas de concerto, e de bibliotheca ; não tem galeria de
pintura, nem galeria de antiguidades, nem grande hotel, nem grande restau-
rante, nem pavilhões, nem cottageSy nem chalets, nem quintas de recreio.
Tem, porem, óptimas arvores, o bello parque chamado da Copa, a linda ave-
nida dos alamos, os choupos, as acácias e os pinheiros da mata, — a sombra
sufRciente, emfím, para se passar o dia todo na fresca oxygenação do ar livre,
primeira condição essencial no tratamento das lisboetas anemicas, emmurche-
cidas durante o inverno na atmosphera mordente e defínhante das salas e dos
theatros.
A circunstancia, porem, que dú ás Caldas da Rainha a sua grande superio-
ridade sobre todos os logares de villegiatura, ainda os mais afamados em Por-
tugal, como Cintra, como o Bussaco, como o Bom Jesus de Braga, é que esta
villa é o centro da mais artística, da mais histórica, da mais pittoresca região
de todo o país. Em nenhum outro logar se proporcionam aos touristes mais
rápidas e mais fáceis excursões encantadoras de arte e de archeologia >.
i FarpaSy 1.
I 26 Praias e estações thermaes
Através d'esta região, já revelada noutras palavras atrás
transcritas, Ramalho Ortigão leva-nos a visitar os monumentos
da Batalha e Alcobaça, as ruinas do castello de Óbidos e a en-
cantadora lagoa do mesmo nome; outras ruinas ainda, as do
palácio de Leiria, que foi o maior edifício gothico civil do país \
os túmulos, cruzeiros e pelourinhos dispersos nesta zona privile-
giada, os campos de Aljubarrota e da Gollegã, a villa de Pom-
bal. E, aconselhando-nos que visitemos tudo isso, promette um
més bem cheio de prazer inédito, quer ao estudioso, quer ao
artista. E com razão o diz.
Estoril. Aguas chloretadas e silicatadas. Nascente abundante.
Estação de 24 de junho a 3i de outubro — 1:000 doentes por
anno. Balneário, pulverizações, inhalações, etc.
Estas aguas estão situadas em Santo António do Estoril,
bahia de Cascaes, e em meio da mata que os frades tiveram
artes de ali plantar, existe o estabelecimento, frequentadissimo
durante grande parte do anno. O primeiro balneário ahi cons-
truido data do tempo de D. José.
Banhos da Poça, em S. João do Estoril. Chloretadas-sodicas,
silicatadas e lithinadas. Estação de 24 de junho a 3i de outubro —
Soo a 600 doentes. Buvette, inhalações e balneário.
Estas aguas, que estão bem installadas, parece terem sido as
primeiras exploradas da região, mercê da influencia outrora exer-
cida pela Misericórdia de Cascaes.
Alcaçarias. No Terreiro do Trigo, Lisboa. Chloretadas sódi-
cas, azotadas. Balneário. Caudal abundante.
São muito conhecidas as installações doestes banhos, que se
recommendam pelo seu asseio e boa disposição.
Banhos de S. Paulo, Lisboa. Chloro-sulfatadas, sulfhydricas,
carbo-gazosas. Caudal inesgotável. Estação de 1 5 de maio a
3i de outubro — i:5oo doentes por anno.
Valiosissimas estas aguas, no tratamento do rheumatismo
principalmente; e, dada a sua situação dentro da cidade, no seu
ponto mais central, seria para desejar que a installação do
balneário pudesse realizar-se em condições superiores ás
actuaes.
Fadagosa de Marvão, districto de Portalegre. Bicarbonatadas
sódicas, sulfhydricas, siliciosas, férreas. Abundantes. Estação de
I de julho a 3o de setembro — 5oo doentes, geralmente espa-
Praias e estações thermaes
127
nhoes da Estremadura. Exploradas desde 1780, mas principal-
mente após i885. Buvette e balneário.
Situadas no extremo do Alto Alemtejo, quasi na fronteira,
numa região alpestre e pittoresca, estas aguas são pouco conhe-
cidas dos naturaes do país. Tem-lhes por isso mesmo faltado o
apoio que merece o esforço do concessionário, criador do estabe-
lecimento.
MONCHIQUE— KM CAMINHO DA PONTE DO LAGKDO
Thermas de Monchique, Algarve. Chloretadas sódicas, sili-
ciosas. Grande caudal, quatro nascentes. Especialização, alem do
rheumatismo: dyspepsias e doenças secas da pelle. Balneário —
700 a 800 doentes por anno. Estação de i de junho a 3o de
setembro.
Estas thermas estão situadas na vertente sul da serra de
Monchique; numa das mais lindas regiões de Portugal, a que an-
teriormente me referi no meu estudo do Pais. Envolvem-nas uma
grande mata e goza- se de lá um panorama maravilhoso e exten-
sissimo. Monchique soffre comtudo, se bem que em menor grau
que as thermas anteriores, do afastamento em que se encontra
128
Praias e estações thermaes
do centro do pais. Complicando-se as necessidades de ordem
therapeutica com as necessidades annuaes de villegiatura, é na-
tural que os habitantes das cidades procurem de preferencia as
regiões ao norte do Tejo, mais próximas como estão da zona po-
pulosa do país. Se assim não fora, a estação de Monchique teria
prosperado de forma excepcional.
Doenças da pelle. — Confinadas numa parte dos valores thera-
peuticos da classe anterior, ou ainda caracterizadas por uma
o MONDEGO NA FELCUEIRA
inversão na ordem d'esses valores, apparecem-nos varias estancias
de aguas:
S. Pedro da TofTe^ a 5 kilometros de Valença. Chloretadas
sódicas, sulfatadas, cálcicas, magnesianas e siliciosas. Uma nas-
cente só. Installações modestas. Estação de i de junho a 3i de
outubro — i3o a 200 doentes por anno. Balneário.
Caldas das Taipas, a 7 kilometros de Guimarães. Bicarbo-
natadas sódicas, sulfúreas e siliciosas. Caudal abundante, quatro
nascentes. Estação de i de maio a 3o de novembro — i:3oo a i:3oo
doentes por anno. Buvette e balneário.
As Taipas estão situadas no percurso de estradas que de Braga
levam a Vizella e a Guimarães, dentro da zona minhota a que tão
Praias e estações themtaes
129
largamente me referi no meu primeiro estudo. São já co-
nhecidas desde o tempo dos romanos. Mas o seu maior va-
lor só foi reconhecido em meados do século xviii, graças aos
esforços de um frade, Frei Christovão dos Reis, carmelita des-
calço.
Estas caldas estão talvez prejudicadas pela proximidade de
Vizella, uma das grandes estações do nosso meio therapeutico
e de villegiattira.
FELGUEIRA— A CASA DO MOLEIRO
Caldas da Felgueira, a 7 kilometros de Canas de Senhorim,
linha férrea da Beira Alta. Carbonatadas sódicas, gazo-carboni-
cas, silicatadas e sulfhydratadas. Três nascentes e um caudal
considerável. Estação de 26 de maio a 3o de outubro — 400 a
5oo doentes por anno. Buvette e balneário.
A especialização completa d'estas aguas é: arthritismo loca-
lizado na pelle, mucosas e sei^osas.
As Caldas da Felgueira estão situadas a pequena distancia
do Mondego e na sua margem direita. Mas esse Mondego não é
o da zona baixa e terrenos modernos da doce região coimbrã;
é ainda o que corre apertado em valles graníticos. Soo ou 400
i3o
Praias e estações thertnaes
metros acima de ess'outro, através de uma paisagem forte e
extremamente pittoresca, que mais se aproxima da das terras
minhotas.
A installação da Felgueira é considerada como uma das
melhores do nosso país. O povoado de que toma o nome é ainda
hoje insignificante. O conhe-
cimento d'estas aguas data
dos fins do século xviii,
em que começaram a ser
apregoadas as suas virtudes
anti-herpeticas. Valeu-Ihes
porem immenso a reputação
que lhes fizeram alguns mé-
dicos eminentes de Lisboa,
Manuel Bento de Sousa,
António Maria Barbosa e
Silva Carvalho. Ainda hoje
ellas são frequentadas prin-
cipalmente pelas famih*as
do sul do país.
Banhos do Luso, pri-
meira estação da linha fér-
rea da Beira Alta. Estas
aguas são bicarbono-chlo-
retadas, sódicas, gazo-car-
bonicas. Muito abundantes.
Estação de i de maio a 3i
de outubro — mais de 1:000
NO VIDAGO doentes por anno. Buvette
e balneário.
Especialização correcta: vicio arthritico.
Conhecidas pelas suas virtudes anti-herpeticas desde o fim do
século xviii, estas aguas só comtudo começaram a ser exploradas
a partir de i85o. A estancia do Luso é d'aquellas a que um longo
tirocinio imprime caracter. Luso é propriamente um balneário.
Mas é um balneário dentro de um dos mais extraordinários sitios
destinados a superior villegiattira. Basta para isso a proximidade
a que está da mata do Bussaco. E pois uma estação a todos os
respeitos privilegiada.
Praias e estações themiaes 1 3 i
Aguas de Almotnha, a 3 kilometros de Alcobaça. Chioretadas
sódicas, sulfatadas sódicas, carbonatadas cálcicas, siliciosas. Cau-
dal abundante. Estação de 23 de junho a 3i de outubro — 600 doen-
tes por anno. Duas estancias. Buvette e balneário.
Especialização correcta: doenças da pelle e intestinos (consti-
pações principalmente).
Estas aguas são de exploração recente. Estão situadas a meia
distancia entre o Vallado e Alcobaça, e á beira da estrada que os
A PONTE ROMANA DAS PEDRAS SALGADAS
liga, atravessando a região encantadora que Ramalho Ortigão
descreveu partindo de S. Martinho do Porto. Hoje já raros to-
mam esta antiga estrada. Vão em caminho de ferro até Vallado
e de lá é que sobem a Alcobaça.
Doenças das vias digestivas. — Voltamos á região de Trás-os-
Montes e no districto de Villa Real encontramos algumas das
mais conhecidas aguas do pais, situadas á beira da nova linha
férrea da Régua a Chaves. Procedem todas ellas de um vasto
lençol que vem do interior de Espanha.
Vidago, a meio caminho entre Chaves e Villa Pouca de Aguiar.
Bicarbonatadas-sodicas, gazo-carbonicas, lithinadas e arsenicaes.
Varias nascentes de diversa mineralização e applicação. Estação
l32
Praias e estações thermaes
de 1 de junho a 3o de setembro — 700 a 800 doentes por anno.
Buvette.
Estas aguas, que foram já conhecidas pelos romanos, são
consideradas preciosas, as da nascente Vidago primitivo princi-
palmente. Exportam-se em
grande quantidade. O seu uso
é sobretudo interno, por isso
mesmo a Bnvette compre-
hende quasi completamente
os serviços de exploração
da estancia.
Apesar d'isso projectam-
se ahi futuras e grandiosas
installações para uma época
próxima, em virtude princi-
palmente do accesso que
agora dá, a toda essa região,
a nova linha férrea.
A empresa doestas nas-
centes explora também uma
das nossas melhores aguas
de mesa, a de Sabroso.
Campilho. Exceli ente
nascente de aguas bicarbo-
natadas, sódicas, gazo-car-
bonicas, ferruginosas, lithi-
nicas, fluoretadas e leve-
mente arsenicaes.
São aproveitadas estas
aguas apenas para exportação; perfeito todo o serviço de capta-
gem e engarrafamento.
A nascente brota a pequena distancia de Vidago.
Pedras Salgadas, a meia distancia entre Vidago e Villa Pouca.
Bicarbonatadas sódicas, lithinadas, gazo-carbonicas. Muito abun-
dantes. Varias nascentes com diversa mineralização e applicação.
Estação de i5 de maio a 3o de setembro — 1:162 doentes em
1906. Buvette, balneário.
Especialização correcta : doenças gastro-intestinaes, arthri-
tismo.
NAS PEDRAS SALGADAS
Praias e estações thermaes j 3 3
São de recente exploração, embora se pense que fossem conhe-
cidas dos romanos. Excellentes as installações quer do balneário
e dos hotéis, quer da expedição das aguas em garrafa.
A estação das Pedras Salgadas está situada numa região bas-
tante elevada, de onde se goza um soberbo e vasto panorama da
serra. De todas as suas nascentes a mais reputada é a do Penedo.
Se em logar de tomarmos a linha da Régua a Chaves, seguir-
mos pela que mais acima parte de F^oz-Tua em direcção a Mi-
TEDRAS SALGADAS — A CASA DO ZÉ NADO
randella, a meia distancia entre estes dois pontos, e para nas-
cente, encontra-se o soberbo manancial de outra excellente agua
de mesa:
Agitas de Bensaitde. Bicarbonatadas sódicas. O caudal, apro-
veitado sobretudo para exportação, é superior a 5oo metros cúbi-
cos em vinte e quatro horas e provém de varias nascentes.
Especialização: dyspepsias incipientes.
Doenças diversas. — Como disse, os nossos agrupamentos de
nascentes são determinados pela esp^c/a/z*{Jcao de cada uma d'ellas,
o que não quer dizer que, na maioria dos casos, o seu valor
therapeutico não seja mais variado e rico do que posso fazer
i34
Praias e estações thermaes
suppor. Mas aqui obedeço a uma necessidade mental já atrás
notada, a de ver os factos em linha schematica e portanto muito
simplificados. Por isso entro agora numa numerosa classe de
entidades therapeuticas que não podem reduzir-se aos nossos
typos geraes. E começo pela
mais notável de todas as nas-
centes portuguesas.
jm^ L £JH^^K t^KW Gere^. Esta nascente, que
P^ ^ ^^IGh^KJÉI^HE P^^^^^ ^^^ ^'^^ conhecida dos
romanos, o que de certo não
admira por ella se achar nas
vizinhanças da celebre estrada
militar da Geira^ que nos ligava
ao centro do império, mais ainda
parece ter sido preparada para
allivio de um povo de aventu-
reiros que, das suas peregrina-
ções pelas terras equatoriaes e
da zona tórrida, em redor de
todo o mundo, regressam a casa
com o fígado grandemente ava-
riado.
Elias são de facto heróicas
para o Jigado^ embora também
se empreguem no tratamento da
diabetes.
São alcalinas, silicatadas, fluo-
retadas e carbonatadas sódicas.
Divididas por varias nascentes, o seu caudal é abundantissimo.
Estação de i5 de maio a 3i de outubro — 2:000 doentes por anno.
Applicam-se principalmente para uso interno.
Já me referi á região em que estas nascentes brotam, descre-
vendo sobretudo a belleza superior dos amplos valles que lhes
dão accesso, do rio Cavado e seus affluentes. A estação do Gerez
no valle do rio Homem, um pouco a montante de Villar da Veiga,
está situada numa altitude assaz considerável, na zona de 400
a 700 metros.
Esta circunstancia, ligada ás que concorrem na serra, quer no
campo geológico, quer no da fauna e flora, converte a estada
GEREZ — MOINHO NO RIO CALDO
Praias e estações thermaes
i35
ahi numa constante revelação de aspectos raros e inéditos de pai-
sagem intensa, até dentro dos terrenos graniticos em que é habi-
tual ser assim.
A quem desejar pois inteirar-se completamente do que esse
sitio offerece á curiosidade multiforme do touriste, tomo a liber-
dade de lembrar a monographia que o Dr. Ricardo Jorge ha annos
GEREZ — CASCATA DAS PALAS
escreveu com um enthusiasmo, que não tem fim, pela maravilhosa
estancia.
O Gerez possue installações de primeira ordem. Mas possue
sobretudo, alem da sua milagrosa agua medicinal, a mais per-
feita agua potável que jamais bebi, quer como sabor e leveza,
quer como temperatura — a agua que nasce do chão, por trás
da Casa amarella, e que tem a temperatura constante de 12 graus
centígrados. Esta agua não conhece dilatados, nem receosos.
Bebe-se impunemente em qualquer momento.
Alem doestas aguas do Gerez, outras ha que muito se recom-
mendam no tratamento da diabetes.
Caldas de Melgaço^ no Minho. Bicarbonatadas mistas, com
predominância cálcica, siliciosa, férrea e lithinada. Abundantes,
1 3 6 Praias e estações thermaes
seis nascences. Estação de 1 5 de maio a 3i de outubro — 800 a
900 doentes por anno. Buvette.
Especialização: diabetes.
Estas aguas são de exploração moderna. A sua situação junto
do rio Minho, a montante de Monção, participa do pittoresco de
todo o curso d'esse rio na parte mais alta.
Aguas de Cúria, na região da Bairrada, districto de Aveiro. Es-
tas aguas, que teem grande affinidade com as de Contréxevilie, são
de exploração recente e vieram preencher uma lacuna no meio the-
rapeutico português. Muito abundantes. Sulfatadas, cálcicas, bicar-
bonatadas sódicas, levemente magnesianas, ferruginosas e lithina-
das. Estação de i5 de maio a 3i de outubro. Buvette — 273 doentes
em 1905; tendências para aumentar.
Especialização: visa os arthriticos e attinge os gravelosos.
(Aumenta o funccionamento do fígado e rins).
Estas aguas são exportadas em quantidades já hoje conside-
ráveis. A região onde ellas brotam é encantadora e pertence á
segunda zona da nossa classificação, a das terras baixas das pro-
ximidades do litoral. Guria está situada a igual distancia entre
Aveiro e Coimbra, a poente e muito próximo da linha férrea.
Fo^ da Certã^ na margem esquerda do Zêzere, freguesia de
Sernache do Bomjardim. Pela sua mineralização, estas aguas
devem considerar-se únicas no país. Sulfatadas, sódicas, alumi-
nosas. São empregadas só para uso interno e exportadas.
Especialização: diabetes e dyspepsias por fermentações anor-
maes.
Estas aguas não estão ainda completamente estudadas.
Aguas de Santa Martha, Ericeira. Chloretadas-sodicas, ni-
tricas, magnesianas, siliciosas. Abundantes. Rompem nas rochas,
á borda do mar. São de exploração moderna.
Estas aguas carecem de um estudo mais completo do que o
realizado até hoje. Os melhores resultados que se teem obtido
com o seu emprego são : uso interno, em doenças de estômago, rins
e bexiga; uso externo, em doenças de pelle, eczema e rheumatismo.
Aguas da Amieira, a 1 1 kilometros da Figueira da Foz. Chlo-
retadas, sódicas, bicarbonatadas-calcicas. Enorme caudal, três
nascentes. Estação de 1 5 de maio a 3i de outubro — 1:200 a i:3oo
doentes por anno. Buvette e balneário.
Especialização: doenças de estômago e da pelle.
Praias e estações ihermaes
i37
Estas aguas estão em exploração desde i885. A Amieira fica no
cruzamento da linha de Torres com o ramal de Alfarellos, junto
dos deliciosos campos do Mondego.
Aguas de Moura, no districto de Beja. Bicarbonatadas cálci-
cas, chioretadas, magnesianas, nitratadas e lithicas. Grande cau-
dal. Seio as aguas potáveis das fontes da villa. Exportam-se em
grande quantidade.
Os saes de Moura, assim conhecidos como producto pharma-
ceutico, são os que mineralizam estas aguas.
Especialização: arthritismo.
o TÂMEGA NA SUA FX>Z
Doenças das vias respiratórias e artliritismo. — Termina esta
enumeração por duas estações de agua de uma especialização
accentuadissima, tanto mais para notar quanto é certo que todas
as aguas sulfúreas se applicam mais ou menos no tratamento
das doenças doeste grupo. Dado, porem, o valor therapeutíco
das duas nascentes, a especialização definida, sobretudo da pri-
meira d'ellas, impõe-nas como entidades differenciadas.
Entre-os-Rios, na confluência dos rios Tâmega e Douro. Abun-
dantes. Sulfhydratadas, sódicas, carbonatadas e chloretadas. Es-
tação de I de junho a i5 de outubro — Soo a 600 doentes por anno.
Bupette, pulverizações, inhalações e balneário.
Apesar de conhecidas desde muito tempo, a sua exploração
regular é relativamente moderna.
Já por vezes me referi á região superiormente bella do rio
Douro e em especial ao sitio de Entre-os-Rios, que é uma incon-
testável maravilha.
i38
Praias e estações thermaes
As installações da estação figuram entre as melhores do país,
e o seu futuro affirma-se pelo aumento constante de touristes.
Porque Entre-os-Rios não é apenas uma estação de aguas; é um
logar de villegiatura muito definida e caracterizada.
Aguas de S. Vicente, entre Cette e Entre-os-Rios. Abundan-
tes. Chioretadas, carbonatadas sódicas, silicatadas e lithinadas.
Estação de i de junho a i5 de outubro — 400 doentes por anno.
Buvette, pulverizações, inhalações e balneário.
ENTRE OS-RIOS — MARGEM DO DOURO
Ainda ha pouco tempo não se tinha completado o estudo cli-
nico doestas aguas, porque a sua exploração é recentissima. Por
confrontação com outras, é-lhes porem assinada a seguinte espe-
cialização: — doenças das vias respiratórias e arthriticas.
As installações são excellentes.
A estação, alem de tudo o mais que concorre nella e na
região deliciosa que a envolve, torna-se notável porque está hoje
posto a descoberto o balneário romano, em que as aguas foram
exploradas — achado precioso, de um valor inestimável e de uma
riqueza de pormenores verdadeiramente excepcional.
Aguas purgativas. — Entre as lacunas que até agora existiam
na serie dos valores therapeuticos representados pelas nossas nas-
centes thermo-mineraes, uma havia que especialmente se fazia
sentir — a das aguas purgativas. Á riqueza da visinha Espanha,
Praias e estações thermaes I 3 q
na especialidade, para só falar doesse país, oppunhamos nós uma
absoluta penúria. Annunciam porem ultimamente os jornaes da
capital que vae ser registada uma nascente de aguas laxativas,
descoberta em Charniche, freguesia da Ventosa, concelho de Tor-
res Vedras. Da analyse que lhes foi feita, resulta que a presença
de avultada quantidade de sulfato de mçignesio nestas aguas as-
'sina-lhes um logar especial na hydrologia portuguesa.
A sua especialização parece ser: regularização das funcções
gastro-intestinaes.
Segundo affirmam, são de um sabor muito agradável ao pala-
dar e de uma pureza excepcionai.
PORTUGAL, ESTAÇÃO DE INVERNO
Apesar da sua limitada extensão, Portugal possue uma grande
variedade de climas. Como diz o Dr. Silva Telles na sua Intro-
diicção geographica, a situação do país, a natureza e relevo do
seu solo, a grande quantidade de altas serras ao norte e a expo-
sição especial das suas encostas, as terras baixas do litoral e da
provincia alemtejana, a acção do Oceano em grande parte do
território, tudo isso leva-nos a suppor que Portugal ha de possuir
climas de montanha, de valles e de planícies e climas marítimos.
Tudo isso nos leva também a comprehender as variedades de
vegetação e de regime agricola em cada região e, em parte
ainda, o temperamento e aptidões das respectivas populações.
O clima evidentemente, como resultante das circunstancias
de maior ou menor pressão do ar, de maior ou menor regulari-
dade e excessos de temperatura, do grau de humidade, dos ven-
tos reinantes, de chuvas, neves, trovoadas e nevoeiros, da lumi-
nosidade mais ou menos constante e intensa da atmosphera e da
sua nota de cor, o clima, digo, tem uma influencia marcada na
saúde physica e moral dos respectivos habitantes e deve portanto
ser estudado como meio hygienico e therapeutico. Ora «em Por-
tugal, diz um distincto medico inglês, o Dr. Dalgado \ ha terras
« Dr. D. G. Dalgado, The Climate of Lisbon and of the hvo health resorts
in its immediate neighbourhood. Mont * Estoril y on the Riviera of Portugal y
and Cintra, London, 1906.
140
Praias e estações thermaes
com climas de quasi todos os typos e para todas as estações, mas
algumas não são exploradas e outras carecem de melhorar as
suas condições de vida».
Afigura-se-me até que muitos dos nossos climas, sobretudo
no que toca a terras do interior, nem conhecidos são. Ha annos
passeava no valle de Besteiros, faldas do Caramullo, com um
medico illustre; impressionado pelo nobre aspecto da paisagem,
pela tranquillidade e doçura do ar e pela espécie de abrigo que nos
criavam as serranias envolventes, elle pára de repente e exclama:
— Que esplendida estação de saúde aqui se não fazia ! I . . .
E como este, através do país inteiro, vi eu muitos casos que
não sei que estejam apontados pelos especialistas. Mas já hoje
felizmente ouvimos falar dos Sanatórios da Serra da EstreJIa,
de Parede, Oeiras e Outão; das colónias maritimas para crian-
ças em Peniche, no Estoril e na Trafaria. Já milhares de pessoas
da nossa melhor sociedade vão fa:{er a estação de verão nas
Caldas da Rainha e em Cintra, retemperar-se na mata do Bussaco
e no Bom Jesus do Monte. Já se aponta Unhaes da Serra como
estação de outono e já o Estoril começa a ser considerado como
estação de inverno, não falando nessa ilha encantada da Madeira,
a decana das nossas estações, que tão requestada vae sendo por
estrangeiros, no momento presente.
Mas, em qualquer d'estes grupos, estão felizmente appare-
cendo sempre casos novos. E é para notar que, no nosso litoral
abundem, como apontei, as estações de inverno e egualmente as
de verão.
A respeito de Cintra, diz-nos o Dr. Dalgado:
«Cintra é uma villa construída para residência de verão. É uma encanta-
dora estação de moderada altitude, moderada temperatura e agradável humi-
dade no verão 1 Ella tem nesta estação ar puro, mas enriquecido pelos aromas
exhalados da sua abundante vegetação ; o ozone é ahi naturalmente em maior
quantidade do que em Lisboa».
Mas, para este medico, é sobretudo o Estoril que merece
uma consideração que, por certo, surprehenderá a maioria dos
portugueses.
«A atmosfera no Mont'Estoril, acrescenta elle, é muito pura, marítima e
saudável, e melhor a tornam ainda os seus pinhaes e matas de eucalyptos
que, como é bem sabido, teem a propriedade de aumentar a quantidade de
Praias e estações thermaes I a \
ozone do ar. Durante o inverno não ha movimento na localidade, nem auto-
móveis, nem poeira».
Referindo-se á luminosidade da atmosfera lisbonense durante
o inverno, á necessidade de dois dias de sol em cada três para
uma boa convalescença, e partindo dos dados da estatística me-
teorológica, affirma que tanto Lisboa como o Mont'Estoril exce-
dem as exigências medicas. Eis aqui, na totalidade, as observa-
ções que elle faz relativamente a esta ultima estação.
o ANTIGO CONVKNTO DF. SAXTO ANTÓNIO DO KSTORIL
«Lisboa tem uma temperatura muito mais suave e unirorme que Biarritz
ou Nice, e tão suave, mas mais uniforme que Catania. A sua humidade relativa
pode considerar-se desejável e os ventos dominantes são moderados. Com to-
das estas vantagens e com as que já notei .... uma cidade tão grande nunca
pode ser um bom logar para convalescentes; mas pode ser recommendada a
todos os que desejem aliar uma temporada de descanso com os divertimentos
de uma cidade muito alegre e um clima muito doce.
O Mont'Estoril é, a todos os respeitos, superior a Lisboa e, por isso
mesmo, muito mais o é relativamente a Biarritz, Nice ou Catania. O lacto é
que, tendo eu procurado, em toda a zona oeste e sul da Europa, um bom
clima para ahi tí.xar a minha residência, nenhum encontrei ainda que pu-
desse soflfrer comparação com o Mont 'Estoril durante os meses de novembro
a março, tanto pela pureza atmosférica, igualdade de temperatura e secura
comparada, como pela ausência de ventos. Se juntarmos a isto as vantagens
provenientes dos seus pinhaes, avenidas de palmeiras e matas de eucalyptos,
dos seus lindos chalets, bons hotéis e excellente systema de canalizações, da
sua agua tão pura e leve como salutar, da sua magnifica praia de areia, dos
142
Praias e estações ihermaes
seus innuineros passeios, da pesca e outros divertimentos na bahía, da sua
luxuriante vegetação tropical e maravilhosa profusão de plantas indigenas e
exóticas, dos seus laranjaes carregados de frutos dourados, de um ceu azul e
de um mar azul, temos uma estação de belleza e salubridade incomparável,
única — um verdadeiro jardim em plena primavera — quando a Inglaterra
ainda está envolvida em tristeza, nevoeiro, geada e neve. Pela sua excepcional
situação para quem vem por mar de Londres, New-York ou Rio de Janeiro,
e pela proximidade em que está de uma grande cidade, alegre e hospitaleira
como Lisboa, o Monc 'Estoril não tem rival.
Therapeuticamente considerado, o Mont'Estoril pode ser classificado en-
tre tónico e estimulante por um lado, e calmante por outro. Casos ha em que
partilha das qualidades de ambos. Actua como estimulante nos casos de debili-
dade proveniente de febres ou doenças pulmonares, no cansaço das crianças,
na debilidade senil e em algumas formas de dyspepsia ; e como calmante em
muitos casos de asthma, insjmnia ou irritabilidade nervosa ; ao passo que a
sua temperatura igual e secura relativa são extremamente benéficas para o
rheumatismo chroníco e gotta, e em muitos casos de catharro chronico e pul-
monar. A sua acção pode comparar-se, servindo- me de um exemplo caseiro,
á de um bom copo de vinho do Porto, que estimula em certos casos e tempera
em outros, sendo que em nada afiecta uma pessoa robusta e forte.
Estas mesmas observações podem ser applicadas a Cintra durante o verão.
O Mont*Estoril é um logar ideal de repouso, principalmente para os esgo-
tados pelo trabalho, porque ahi dormirão melhor do que em qualquer outro
sitio. É também uma esplendida estação intermediaria para as pessoas que
voltam dos trópicos e desejam evitar os rigores de um inverno do norte ; ou
para os doentes a quem uma mudança de grande calor para grande frio seja
extremamente prejudicial ou perigosa. Também pode ser recommendado aos
que não supportam as habitações aquecidas artificialmente; porque no Mont -
Estoril não ha necessidade de fogões nem de fato pesado. Em alguns casos de
tuberculose pulmonar incipiente seria sem duvida vantajosa a estada ahi ; mas
parece -me diííicil encontrar alojamento, por isso que tanto os proprietários de
chalets, como os donos dos hotéis, se recusam a acceitar inquilinos ou hos-
pedes nessas condições».
O Dr. Dalgado, no seu opúsculo, depois de mais uma vez
rccommendar o Mont'Estoril aos touristes em geral, formiíla uma
serie de quadros meteorológicos em que estabele a comparação
da nossa praia com as estações de Biarritz, Nice e Catania, con-
cluindo pela incontestável superioridade do Mont'EstoriI. *
I Recentemente chegou-me ás mãos um artigo publicado no The Practi-
tioner, de julho do corrente anno, intitulado The Three Estorils. The Portu-
guese Riviera, By G. H. Brandt, M. D. Neste artigo estende-se aos três Estoris
o modo de ver do Dr. Dalgado acerca de Mont'Estoril e da sua comparação
com as Franco-Italian Rivieras. Faz-se também ahi allusão ás thermas de
Praias e estações thermaes
143
Quer-me parecer porem que esse estudo deve ser estendido
ao sul do nosso país, onde ha praias e estações do litoral que,
aliás sem competência especifica para o affirmar, julgo superiores
ao Mont^Estoril. E lançando mão dos dados que se encontram no
trabalho doesse illustre medico e dos que fornecem os Annaes
do Observatório D. Luis, annos de 1904 e 1906, chego ao seguinte
apanhado :
Temperaturas medias
Primavera
Verão
Outono
14,38
20,69
16.69
12,39
19.67
15,25
.3,27
21,94
15.79
i5,oo
25,10
19.3
iS.o.S
2o,5o
16,64
16,04
21,58
17.90
16,54
22,60
18,36
Anniiaes
i5,63
i3,8o
1475
17,60
15.74
16,82
17.38
A progressão gradual de Lisboa até Faro, passando por Lagos,
mantem-se em todas as outras relações meteorológicas, confir-
mando a crescente superioridade das estações á maneira que nos
afastamos para o sul. E o que demonstra o quadro seguinte:
Annos
1856-1900
1875-iyoo
1904-1905
Estações
Lisboa .
Biarritz .
. Nice . .
Catania .
Lisboa .
Lagos. .
Faro . .
Máxima
amplitude
thermica
Humidade
relativa
Quantidade
annual
dt chuva
-
70,88
738,3
-
74.9
1.067^
-
75,8
766,9
-
61,9
556,1
34,6
67,30
542,15
34,4
61, 5o
459,45
29.7
72,10
391,55
Santo António e S. João do Estoril, concluindo por dizer : •! hope I have con-
vinced the rieder of the importance of the Estorils. They offer at the same
time a unique wínter climate and abundam facilíties for mineral-water treat-
ment.» The Practitioner, Limited, London, W. C. Strand, 149.
I A A Praias e estações thermaes
Devo acrescentar que, nas praias do sul, ha ausência de ven-
tos fortes e nevoeiros, sendo que a irradiação solar é ahi muito
superior á do norte e a temperatura mais uniforme. Por estes
vários motivos eu julgo toda a costa do Algarve destinada ao
estabelecimento de estações de inverno, devendo porventura co-
meçar-se por impulsionar a criação da de Lagos, por causa da
sua admirável bahia.
É para citar ainda a analogia de aspectos que parece existir
entre este sitio e as regiões do sul da Itália. Coelho de Carvalho,
na nota final á sua traducção das Éclogas de Vergilio, assim
no-lo diz:
Os primeiros quinze dias aqui passados, são horas de continuo deslumbra-
mento; tanta é a luz no céu e no mar, que tudo se impregna de um tiuido
luminoso; e, se nos corpos a opacidade é uma illusão dos nossos sentidos im-
perfeitos, a atmosphera de luz, que nos envolve, a tudo dá uma tal apparencia
de diaphano que, nos primeiros momentos, a realidade é sonho.
A tarde estava deliciosa; e então notei, mais uma vez, quanto a paisagem
d 'esta região algarvia se assemelha ás praias da Grande Grécia; como esta
bella bahia de Lagos nos provoca nitida a visão d*aquelle encantado golfo,
onde, n'um recanto da costa, existe o tumulo de Vergilio, e sobre cujas aguas
vagava em noites de luar o espectro de Agrippina, a assassinada mãe de Nero.
É semelhante o recorte das arribas ; erguem-se também ao fundo do qua-
dro as altas montanhas cor de violeta ; e, n'essa tarde, uma leve nuvem branca
pousara sobre o pico de Monchique, como lá a coma de fumo empluma, por
vezes, de branco o cimo do Vesúvio.
O que mais acorda a lembrança da paisagem do sul da Itália é a igual còr
no céu e no mar, que céu e mar já aqui não são do mesmo azul, nem do
mesmo verde, que, ao voltar para o norte o promontório de Sagres, as ondas
e o firmamento vão tomando.
Depois, que placidez ao declinar da tarde ! Parecia que a natureza inteira
cairá em beatitude, enervada pela embriaguez intensa da luz d'aquelle dia de
agosto.
A agua do rio, em baixa mar, entre as restingas e coroas do areal de ouro
levemente rosado, era serena, como tanques de prata espelhenta ; e uma e ou-
tra barquinha de solitária vela latina deslizava, ao amor da bríza, em partida
para a pesca do alto, ou em demanda do porto da villa, com peixe para levar
á lota. A paz e a côr de um quadro vergiliano, embora em Vergilio o desenho
seja diverso.
Conclusão. O estudo do nosso povo fez-me invocar os exem-
plos do resurgimento da Allemanha e da Itália como modelos a
seguir na nossa obra nacional. O presente estudo leva-me a invo-
Praias e estações thermaes I a 5
car um outro exemplo, o do povo suisso, como um dos que melhor
praticam a industria que talvez possa denominar-se — da villegia-
iiira. A França e grande parte da Itália nella encontram uma
das suas maiores fontes de riqueza. Apesar d'isso, quero crer que o
exemplo suisso sobreleva ao das outras nações como systematiza-
ção verdadeiramente nacional de toda uma rede de instituições
tendentes a um mesmo fim profissional. A industria do hotel
é, nesse país essencialmente productor, a segunda industria.
E entretanto nada o impede de ser ha muito tempo um dos mais
notáveis nas industrias mecânicas, de ser hoje notabillissimo na
cultura da vinha e nos meios da sua defesa contra os agentes
atmosféricos, de ser a nação da pedagogia, etc, etc.
Ora as condições especiaes do nosso país predispõem-nos para
sermos uma nação industrial semelhante á Suissa nesse ramo da
rillegiatura.
Inútil dizer o que a nossa situação, encarada sob este as-
pecto, acarretaria comsigo para a conservação e desenvolvi-
mento de todo o nosso tão pittoresco yb/A'/ore industrial; para
todas as profissões relacionadas com as necessidades do touriste;
para a nossa agricultura e industrias annexas; para todas as
industrias do mar e do litoral, para a nossa marinha mercante;
para as vias de communicação no interior do país; para todas as
industrias de construcção; para a cultura e producção das bellas
artes ; para o desenvolvimento da musica.
A nossa paisagem, o caracter do nosso povo, as nossas praias
e nascentes thermo-mineraes, as nossas estações de montanhas,
valles, planícies e litoral, eis ahi a grande riqueza do nosso país,
superior no seu conjunto, segundo parece, ás que possuem os
outros paises.
António Arroyo.
'W
A HABITAÇÃO EM PORTUGAL
CASA DE HABITAÇÃO cm Portugal, bem como cm todos os
logares e em todas as épocas em que o homem pre-
cisou de levantar o abrigo que o protegesse
contra as inclemenciiJí
ambiente, obedece, na sua
estructura, nas suas dis-
posições geraes, na sua
orientaçíío, ás condições
ambientes de solo e clima,
indo buscar áquelle, mon-
tanha nua ou floresta es-
pessa, os materiaes cons-
tructivos, e adaptando a
este a distribuição e o
destino das suas partes
componentes. Ora, sendo
os materiaes da nossa re-
gião, assim como o seu
clima e o conjunto dos
seus hábitos domésticos,
semelhantes aos de toda a Europa do sul e aos que na zona
levantina occupam a orla do Mediterrâneo, d'aqui deriva uma
certa similitude de aspectos e espontânea convergência de moti-
EM VIANNA DO CASTELLO
148
A habitação em Portugal
VOS que integram a habitação portuguesa no grupo de nações
que teem um fundo commum de procedência eihnica e certa ana-
logia de condições históricas.
Sujeita á multiplicidade das condições sociaes, quer na disper-
são imposta pelas primitivas circunstancias agrarias, quer no agru-
pamento solidário originado pela formação inicial do burgo,
a habitação, coexistindo com as transformações por assim dizer
cellulares da vida popular, é como que o alter ego do homem
EM VIANNA DO CASTELLO
e O seu mais cândido e intimo reflexo. A casa do pae do velho
Hesiodo, reconstituida pelas investigações sagazes da archeologia
na simplicidade primeva da sua feição, é o núcleo ancestral da
familia hellenica, verdadeiro symbolo da vida pastoral e agrí-
cola da Attica contemporânea do autor dos Trabalhos e os Dias.
Para se fazer uma exposição critica da habitação humana,
mesmo em qualquer ponto restricto da superfície da Terra, urge
sempre discriminar a casa rural da casa urbana, e extremar ainda,
entre os dois typos, as que tém caracter de formação espontânea
das que obedecem a moldes eruditos. Estas, mercê de uma tal ou
A habitação em Portugal
'49
CAPITEL DA CASA DE COLOMBO
qual preoccupação de sumptuosi-
dade e das determinantes estheti-
cas que lhes deram origem, são
quasi sempre edificações de pro-
cedência exótica, em geral cons-
truidas nos períodos de arte que
caracterizam as varias phases da
architectura religiosa, e obedecem
por isso, na sua traça e na sua
ornamentaria, aos modelos trazi-
dos pelo novo cânon architecto-
nico. Por uma reacção natural, o
alvenel da região mantém certos
motivos tradicionaes dos estádios
anteriores, mas naturalmente influenciado pelos novos elementos,
termina por os adaptar á construcção humilde, á qual elles vão
adherindo como cristaes, formando assim os elos seculares da
tradição decorativa. É o caso do românico, do gothico, e, na
Idade Moderna, da inexhaurivel fonte de inspiração que tem sido,
até á actualidade, o mo-
vimento de reviviscencia
da arte greco-romana co-
nhecido pela designação
da Renascença.
Na estreita faixa que
constitue o solo portu-
guês, lei análoga domina
o fácies da habitação, im-
primindo-lhe como que o
stygma do substractum
geológico, quando, como
na zona granitica, as al-
deias fundem o tom fuli-
ginoso das suas fachadas
e dos seus colmos com o
scenario pardo da monta-
nha, ou quando, como
na região do calcareo, as
CA«A DE COLOMBO NO FUNCHAL (dcmoiida) frontaHas reverbcratti sob
IDO
A habitação em Portugal
a intensidade da luz que d^elkis parece
irradiar, as telhas brilham com u ouro
dos seus musgos e as chaminc.s erguem
no azul ferrete a variadíssima gra-
cilidade dos seus perfis esbeltos
como minaretes.
Nas largas manchas de aflo-
ramentos graniticos, a casa
tvpica tem expressão a maior
parte das vezes idêntica nos
pontos mais diversos do nosso
território, e esse parentesco
logo fere a curiosidade do
observador e expressivamen-
te o informa sobre a identi-
dade de costumes e a per-
manência de tradições. Em
geral de um só andar, é de
pedra accumulada sem ci-
mento, recordando o rude
apparelho polygonal das ida-
des primitivas, ou em fieiras
regulares de pequena espes-
sura, collocadas de cutello e
constituindo o perpianho tão
vulgar nas áreas transmon-
tana e minhota. Ao rés-do-chão, cavam-se as lojas para a alfaia
agricola, o gado, ás vezes o lagar e o celleiro; a escada, exterior,
encosta a uma das fachadas ou cae sobre ella perpendicular-
mente : é desguarnecida e rude, ou cobre-se no patim do alto com
um alpendre elementar. Para a rua publica, frequentemente para
um quinteiro, deita a varanda de madeira, forrada de ripas mal
esquadradas, as mais das vezes desguarnecida de balaustres; nas
regiões onde a pedra abunda, veda-se até ao peitoril com lagens
rectangulares, e o seu beiral saliente firma-se em columnas del-
gadas de fuste monolithico. Aos cantos, dois aposentos furados
por janellinhas timidas, quasi sempre de taipa, quando este
elemento se associa á pedra, completam a physionomia da habi-
tação.
EM VIANNA DA CASTELLO
A habitação em Portugal
i5i
O clima determina a orientação das fachadas que precisam
de ser mais rasgadas pelas aberturas, accusa o pendor dos tectos
na região das neves, alonga a beirada nos logares onde durante
as longas invernias os ventos desabridos erguem telhados e col-
mos que tém de ser seguros por fieiras de pedras ou grandes
lagens de schisto.
Um typo de casa de mais
arejado aspecto, frequente nas
regiões do Minho, Tras-os-Mon-
tes e Beiras, é a casa da classe
media rural, com entrada nobre
pelo largo portão que encosta
a um dos esquinaes do prédio,
ora apenas coberto por um te-
jadilho que o protege das infil-
trações da chuva, ora com cer-
tas preoccupações architecto-
nicas, de pilastras e cornija
saliente, sobre que se ergue
uma cruz flanqueada por dois
vasos heráldicos. Dentro, o
amplo pateo rectangular que
tanto lembra as pousadas das
Castellas e da Andaluzia, com
dois dos seus lados occupados
pela larga varanda soalheira,
assente em pilares ou colum-
nas de pedra, mais raramente
sobre arcaria apparelhada. De
beiral saliente firmado em prumos de madeira sobre que o
travejamento se adapta por meio de um cachorro duplo for-
mando capitel, quasi sempre sem balaustres, é esta varanda
em geral orientada a sul ou nascente e é ali onde se fia ao sol
de inverno, onde se dorme nas noites caniculares, servindo no
outomno de sequeiro do milho ou de madureiro da fruta. E para
ella que dão os aposentos da casa, e por vezes, nas povoações de
encosta, domina os casebres humildes, branquejando, caiada e
cheia de cravinas, a indicar a habitação do lavrador mais abastado
ou a tranquilla e farta residência ecclesiastica. Para o pateo dão
EM VIANNA DO CASTELLO
l52
A habitação em Portugal
os estábulos, os celleiros com as arcas de castanho cheias de
centeio ou de azeite, as arrecadações; alli se empilham as carra-
das de lenha sob um telheiro, e a um canto se acolhe o forno de
tecto cónico, cruzado por dois tijolos sobre a porta laivada de
fumo; pela estrumeira do chão, saltam porcos e gallinhas em
convivência familiar e nas
noites calmas de julho re-
pousam os bois pacificos,
ruminando. A cobertura da
casa é de telha vã fixa por
pedregulhos ou então arga-
massada; as chaminés, raras
e simples, não alindam o
perfil da empena como nas
\i mais pobres casas algarvias,
e o fumo, ou se espalha
no ambiente saindo pelos
interstícios do tecto, ou ir-
rompe de uma abertura ve-
dada por um rectângulo de
cortiça do qual pende uma
canna formando cabo.
A ornamentação das ca-
sas em toda a região grani-
tica é pobre, não só pela
dureza rebelde do material,
o que onera a construcção,
mas pela ausência da cal e dos innumeros recursos das suas
combinações. As aberturas são succintas, sobretudo nas regiões
de longo e nevoso inverno, e as fachadas, secularmente tisnadas
a fumo e sol, apenas nalgum pobre e tosco poial se ornamentam
com o mangerico humilde, ou o vermelho vivo da sardinheira.
Nas zonas mistas, já apparecem frisos e pilastras, e entre os
prumos da varanda lançam-se arcos de taipa, muito caiados e
frescos.
Por vezes, nas aldeias de encosta, por onde se escalonam os
enormes blocos graniticos, alguns em prodigioso equilibrio, ha
casas cavernas, talhadas na rocha viva, que lhes fornece a área
do pavimento além de uma ou duas paredes, servindo-lhes em
Eit VIANNA DO CASTELLO
(2usa onde nasceu Miguel de Vasconcellos
A habitação em Portugal
i53
alguns casos de cobertura pelo aproveitamento de grandes lagens
que avançam sobre os esteios naturaes e formam vastas palas
monolithicas. E a antithese da casa de adobe, parallelipipedo de
barro, a que se mistura palha cortada, seco ao sol ou ao forno
e privativo das regiões onde de todo falta a pedra, como nas
zonas geológicas de formação recente. E este o antiquissimo
exemplo da Mesopotâmia, com suas muralhas de adobes secos
ao sol do mês de Nizam, chamado do tijolo, muralhas que uma
cheia levava ás vezes na impetuosidade da corrente.
Citemos também a especialissima construcção dos palheiros
do litoral, formados de pranchas de madeira pintadas a verme-
lhão, que se vêem de Aveiro até Mira, os quaes, elevando-se
sobre estacaria, se esquivam á invasão das areias, que, passan-
do-lhes por debaixo, vão mais longe formar a nova duna, ou
prolongar a antiga. Assim, os habitantes das
cidades lacu.sires se esquivavam ás cheias dos
hiiTus suissos ou ás inundações da
plantcie lombarda.
Nas regiões calcareas, a
alvenaria, com os seus va-
riadissimos recursos, a plas-
ticidade da pedra, o con-
junto das industrias do bar-
ro, o tijolo, o azulejo, a
telha recortada, e também
a figura decorativa, dão á
habitação aspectos de can-
tante polychromia e pasto
á imaginação do artista
regional, c]ue assim vivia
numa constante labutação
criadora. O clima favorece
os aspectos felizes, a tra-
dição exalta-os, e c assim
que a paisagem é tão pií-
torescamente illustrada de
notas decorativas, com os
extensos lanços de aqueductos demandando o filão recôndito
onde a agua aflora, os pilares gigantes da nora árabe, gemedora
EM VIANNA DO C \STELLO
'H
A habitação em Portugal
c nostálgica, aureolada pelo arco-iris da agua borrifada pelos
alcatruzes, os terraços sonhadores onde florescem espirradeiras
c sangram bouganvillias, e esses cândidos ihuribulos do lar que
são as airosas chaminés algarvias. Os grossos pilares que susten-
tam as varandas do norte
substituem-se por arcarias
que a existência do tijolo e
do barro torna de fácil cons-
trucção, sendo ainda com
tijolo que se revestem os
pavimentos, se formam as
abobadilhas de descarga das
portas e janellas, os cellei-
ros, as adegas, os fornos.
Recortado, é um dos mais
caracteristicos recursos de-
corativos da região, empre-
gando-se em frisos de cima-
Iha, ameias, chaminés, pom-
baes e nos arcos rendilha-
dos das janellas em fer-
radura; conjugando-se em
graciosos desenhos, vê-se
nas varandas, terraços, pla-
tibandas e em certas janel-
las recônditas, espécies de
rótulas que lembram de longe discretos ralos de confessionário.
O azulejo forma a percinta dos corredores com o desenho fresco
e simples de faixa e contra-faixa, verde e branco; illustra a fron-
taria com a imagem do santo padroeiro e reveste os alegretes do
miradouro onde enrubescem as rosas do canniçado.
Os tectos, sempre cobertos de telha curva, alvejantes de cal,
ornamentam-se nas regiões de Aveiro, Coimbra, Thomar, na
vasta zona estremenha e para além do Tejo, com figuras da olaria
popular nas extremidades das empenas ou perto do angulo dos
beiraes — leões heráldicos, perus, pombas, animaes fantásticos —
e as pontas do telhado ergucm-se em bico, á chinesa, com telhas
lanceoladas, recortadas como uma renda. As chaminés, sobretudo
no Alemtejo e Algarve, são de uma infinita variedade, umas como
EM VIANNA DO CASTELLO
A habitação em Portuoral
i55
minúsculos zimbórios de cathedral, outras com pilastras dóricas
e cimalha clássica, outras cylindricas cingidas por calabres espi-
ralados, outras encimadas por cúpulas aos gomos lembrando tur-
bantes mouros, outras emfim em que o alvanel juntou argamassa
e tijolo segundo os azares da fantasia, produzindo modelos iné-
ditos de originalidade e de graça.
O typo da habitação rural do Alemtejo é o monte, centro da
familia agricola das vastas herdades da região, correspondente
o PAÇO DB CALHE RO^ EM PONTE DE LIMA
ás quintas ou granjas do norte e condicionado apenas pela diver-
gência das suas circunstancias agrarias. Simples rés-do-chão es-
tendendo em maior ou menor área o agrupamento das suas de-
pendências quando do lavrador remediado, toma as proporções
de uma villa quando na posse do landlord, que chega a fazer
d'elle um palácio citadino com todo o luxo e conforto da habi-
tação urbana. Intermédio, está o monte do agricultor rico, de há-
bitos campesinos e casa farta, mas sujeito por tradição e gosto
á simplicidade rústica do viver ambiente. Na monótona ondulação
do pais alemtejano, no alto da lomba ou a meio da encosta, sob
o reverbero inalterável da luz, os montes desenham-se em des-
taque nitido, brancos como marabutos, desdobrando a horizonta-
i56
A habitação em Portugal
lidade das suas linhas e o leve pendor dos seus telhados fais-
cantes, a cima dos quaes apenas irrompe o recorte geométrico da
chaminé.
O monte comprehende a casa de habitação do proprietário e
o conjunto das dependências onde se guarda a alfaia agricola, se
faz o queijo e se amassa o pão, e onde repousam os serviçaes^
os maltezes e o gado. Albergaria do caminheiro, do vagabundo,
PACO DE CALHEIRO«
O palheiro do monte offerece dormida e agasalho aos que o acaso,
a rota ou a mendicância fazem passar pelo âmbito da herdade
acolhedora.
A sala de entrada, ladrilhada a tijolo, com o escrúpulo de lim-
peza tradicional nesta região e que só tem paridade no asseio clás-
sico dos interiores hollandeses, deslumbra com o polido refulgente
do vasilhame caseiro, as cantareiras de louça, estanho, cobre,
arame, que enchem as estanheiras pintadas de azul e branco. Os
corredores, caiados como os dos conventos, com cotovelos e re-
cantos, conduzem á sala de jantar e á larga cozinha, em cuja
ampla lareira crepita perennemente, dia e noite, o lume de azinho
A habitação em Portugal
•57
c de sobro. Pelas paredes, o mesmo scintillante rcHexo de metaes
brunidos que constituem o trem do serviço domestico e dos ga-
nhões quando a cozinha é commum ; a um canto, o bojo do pote
de barro, com o galbo clássico do dolútm romano. As demais de-
pendências, a amassaria, queijeira, celleiros, cavallariças, palhei-
ros, cabanas, agrupam-se em volta da habitação, formando assim
um pequeno e alvejante burgo, ou destacam-se em maior área
CASA RURAL DO MINHO
I)'cstc lypo procede a casa do século xvii, com escada exterior parallela á frontaria
c varanda alpendrada (gr. anterior)
como factores municipes doeste pequeno mundo agrário. Ao lado
a eira, em sitio alto e batido de vento para a limpa, mais além
os vastos tanques para o gado, claros rectângulos onde o azul se
mira, implacavelmente; a nora árabe ou a cegonha, ás vezes o
aqueducto, por fim a horta e pomar, quadriculas de verdejante
repouso no incommensuravel descampado da região.
Nas villas e cidades, pelas múltiplas adaptações do seu viver,
é impossivel reduzir a habitação a um typo ou typos que, mesmo
differenciados nas diversas zonas do país, resumam a concor-
i58
A habitação em Portugal
dancia dos factores cons-
tructivos e a variedade dos
elementos ornamentaes.
Pelas condições incessan-
temente variáveis da exis-
tência social com todas as
suas imposições de luxo e
conforto, pela infiltração
cosmopolita e pelas cor-
rentes da arte e da moda
dia a dia renovadas, a ha-
bitação urbana reúne um
conjunto heterogéneo de
elementos artisticos, su-
pérfluos ou incompativeis
com a habitação rural, ao
passo que lhe faltam ou-
tros, ás vezes de bem in-
teressante cunho esthetico,
inherentes á vivenda cam-
pestre, á qual imprimem
caracter e pittoresco. Foi
nas cidades e villas que mais especialmente actuou a influencia
dos architectos e alveneis que de regiões estranhas vinham, com
CASA RURAL DO SUAJO
D*oste typo procede a casa seguinie, do século xviii
EM BRAGA — CASA DO FEITAL
A habitação em Portugal
i59
seus novos canons, proce-
der á construcção dos edi-
fícios religiosos ou dos
grandes edifícios públicos;
é, pois, nesses centros que
em maior profusão ainda
se conservam restos de es-
cultura de pedra, de talha
de madeira, de ferro for-
jado, de bronze e muitas
outras vinhetas illustrati-
vas da habitação em Por-
tugal.
As escadas exteriores,
e por isso os alpendres, tão typicas e lógicas no campo, appare-
cem somente em uma ou outra casa primitivamente isolada e
pouco a pouco cingida pela crescente invasão das novas edifíca-
ções que lhe conquistaram a antiga área da cerca ou terreiro; c
ainda se justifícam em algum largo tranquillo ou alameda um-
brosa como as que, a datar do século xvii, se construiram em
quasi todas as terras do país. As portas, rectangulares ou ogi-
vaes, de aresta viva ou chanfrada, com alisares lisos ou historia-
EM PONTE DE LIMA
i6o
A habitação em Portugal
dos, as janellas de peitoril saliente, unas ou geminadas, com verga
direita ou curva, de arco pleno ou polycentrico, as cornijas, os
modilhões, as gárgulas, todos os trechos decorativos que davam
physionomia á habitação portuguesa, são coevos, como disse, das
formas de arte importadas,
e ás quaes entre nós se im-
primiram modificações re-
gionaes, formas de arte que
dominaram em certos pe-
riodos da nossa historia.
Essa lei observa-se desde
a vetusta casa do senado
de Bragança, que entesta
com o primitivo românico,
até ao desolador hybridismo
da architectura contempo-
rânea. E assim que certas
villas e cidades do norte,
\'ianna do Castello, Bra-
ga, Guimarães, Miranda
do Douro, Porto, Tranco-
so, Coimbra, Thomar, ao
sul Lisboa com os seus ve-
lhos bairros de Alfama e
Mouraria, e sobretudo a
rica e archeologica Évora,
nos dão, pela sua antigui-
dade e resistência á inter-
venção cosmopolita, uma
das mais vivas impressões
do viver archaico e dos re-
cursos do constructor, que
tenazmente alliava a tradição á novidade pela conservação tocante
e ingénua de alguns rythmos do passado.
Na ornamentação das nossas casas urbanas, uma das influen-
cias mais remotas e persistentes foi a influencia mourisca, não só
pela admirável mestria dos seus alveneis chamados a todo o país,
como pela perfeição technica dos seus ensambladores, em todos
os trabalhos de madeira. Rótulas de fusos esbeltamente torneados.
CA
onde também se vê a vivenda
senhorial dos condes de Ca-
co,MB.A-OsadcSub-Ripas Iheiros, avultando com so-
I/O
A habitação em Portugal
berana linha solarenga no largo panorama de
uma natureza ubérrima; as casas da Torre,
cm Soutello, e a do Feital, ambas perto de
Braga; com as proporções de palácio a sum-
ptuosa vivenda de Matheus, solar dos Condes
de Villa Real, e o palacete torreado da quinta
do Freixo, na riba-Douro. Da architectura que
no tempo de Luis XV reagiu contra o renas-
cente italianismo, temos em Lisboa a fachada,
cheia de côr, da casa da rua da Alfandega a
que encosta a casa dos Bicos, o soberbo palá-
cio da Mitra, no Campo de Santa Clara, e
uma porta na travessa de André Valente. Do
regresso ás formas antigas, e desse sóbrio e
fino classisismo que foi a arte Luis XVI, existe
em Queluz o bello exemplar que representa
com distincção a modalidade architectonica do
tempo de D. Maria L
Ha annos, um dos nossos mais notáveis homens de sciencia,
Ricardo Severo, mandou construir na tranquilla rua do Conde,
no Porto, a sua casa de habitação, e como aquelle iilusire director
FM L15B0A — Ao Conde Barão
da Porivgalia possue, além de vastos conhecimentos archeologicos,
uma delicada sensibilidade artistica, conjugou, adaptando-os á cons-
trucção e condicionando-os ao viver actual, os mais encantadores
elementos tradicionaes arrancados aos exemplares archaicos que
A habitação em Portugal
171
restam do viver d'outrora: a es-
cada exterior, de alpendre; as
janellas geminadas pela columna
dórica, de fuste gracil, com a
cimalha saliente sobre misulas;
a rotula, a janela de angulo, e
deliciosas vinhetas comj o nicho,
a meridiana, os poiaes para cra-
veiros e mangericos, a veleta no
ápice da empena, onde se recorta
a carreira de um leão rompente.
Reunindo a tradição ás imposi-
ções modernas, não pretendeu
exemplificar um typo histórico e
invariável de habitação regional,
mas reunir num schema do nosso
tempo tudo o que as suas viagens
pelo país lhe sugeriram de bello,
de pittoresco e de lógico: é por isso um dos mais intelligentes
tentames no sentido de dar á casa portuguesa sabor local, poesia
c conforto. Não esqueçamos as sympathicas tentativas do archi-
recto Raul Lino, e o projecto da casa 0'Neill, em Cascaes, repas-
EM LISBOA — Casa dos bicos
EM QUELUZ — A casa que foi do Marquês de Pombal
172
A habitação em Portugal
sada de sabor histórico, devida
á rica fantasia do distincto pin-
tor Francisco Villaça.
Para se completar o estudo
orgânico da habitação portuguesa
e d'ahi se poderem tirar conclu-
sões de caracter genérico que nos
habilitassem a unificar na varie-
dade apparente dos aspectos ex-
^^^^«^^^^■B ternos os typos onde se surpre-
B I^^EUlil^^^^k HÉ hendessem analogias estructu-
B I^^BhÉI^I^^B seria preciso reproduzir um
H i^^^^^^^^^^n conjunto de plantas que compre-
H^^^^^^^^^^^^H hendesse todas variantes (pois
Bi^^^^^^^^^^ que as fachadas são expressão da
HibC. planta) e dar um largo informe
EM viANXA DO ALEMTEJo sobrc as necessidadcs, os hábitos
de vida e as tradições das diífe-
rentes zonas do país. Não cabe tão ampla documentação, como
logo se infere do fim que visa este livro, numa curta exposição
descritiva em que deve accentuar-se o factor pittoresco e o ca-
racter poético, — portanto de Índole bem diversa das memorias
eruditas.
UM MOKTE ALHMTEJANO
O que poderia concluir-se doestas notas, um pouco esparsas,
é que a habitação em Portugal não offerece um typo único, inva-
-4 habitação em Portugal
'73
riavel no tempo e no espaço, a
que possamos dar a designação
nacionalista de casa portuguesa.
Bem pequena é a área do país,
mas dentro desse restricto âm-
bito, com a multiplicidade dos
seus materiaes e do seu clima,
surprehendem-se formas de tão
flagrante differenciação, o homem
por tão variadas maneiras tirou
o seu abrigo das condições geo-
lógicas, climatéricas e agrarias,
que uma sinuosa cadeia se pode
estabelecer entre os dois elos
extremos: a casa pelasgica er-
guida nas duras e ásperas re-
giões graníticas, e os palheiros
de pranchas levantados no chão
movediço das dunas do litoral.
Nas zonas de contacto, a habita-
ção apresenta caracter misto; ao bloco junta-se a ripa, a taipa,
a alvenaria remata o perpianho, e tudo se começa a adornar
EM PORTALEGRE
ALEMTFJO — Sempre noiva
com particularidades decorativas que em nada perturbam a ex-
pressão geral architectonica.
'74
A habitação em Portugal
Das condições geológi-
cas deriva, como já accen-
tuámos, a expressão ex-
terna da habitação huma-
na, e do encontro desta
_ com o clima surgiram os
• ^ . i \ recursos especiaes com
^ír que a egoista imaginativa
do homem foi tornando
MiRANFK DK Aí^ua dc Pcixcs acolhedor o seu rude, pri-
mário abrigo.
No solo tem o constructor de enraizar a casa não só pela
imposição dos factores naturaes que se lhe deparam, mas pela
maneira de os combinar e pôr em obra, afim de que o t\ po cons-
tructivo não só caiba dentro da ambiência climatérica, mas se
adapte á divergência das condições sociaes: preço do terreno,
especialidades productivas, processos de cultura e recrutamento
do pessoal empregado nas lavouras.
EM VIANNA DO ALENTEJO — A ffUã de PciXCS
A h.ibitação em Portugal
175
Desde o Tejo á extrema
norte, na zona propria-
mente continental, esses
processos oscillam dentro
de themas similares e
d'isso a casa se resente,
pois que para o amanho
das terras é em geral suffi-
ciente o grupo familiar com
a adstricção permanente de
restricta famulagem. É por
isso que os aposentos se
» ' " FM BOA
reduzem em numero e a
habitação se limita ao rés-do-chão para a alfaia agrícola, os celei-
ros e o gado, e ao primeiro andar para o proprietário e a sua
gens que frequentemente vive em promiscuidade familiar. É essa
a casa portuguesa que apresenta menor numero de variantes e s^
estende ao Minho, Trás-os-Montes e Beiras, casa de escada exte-
rior alpendrada, varanda saliente sobre pilares ou misulas a qual
PAThO INTERNO DE Af^UJ dC PeiXCS
lyó
A habitação em Portugal
ora deita para a rua, ora
para um pateo rectangular
onde secam as carradas de
lenha. Na região alemteja-
na, com a cultura antes ex-
tensiva, a multiplicidade das
industrias agricolas dentro
do mesmo prédio, as col-
meias de trabalhadores
adventicios, o monte, mer-
cê, alem doestes factores,
do pequeno material e da
facilidade do alargamento
da área pela vastidão da
propriedade, desdobra-se em evora
geralmente em extensão li-
mitando-se ao pavimento térreo em redor do qual se agrupam
as demais dependências do cultivo.
Na faixa algarvia, que são os Algarves d'áquem-mav^ a tradi-
ção mourisca deixou, mais que em qualquer outra parte do pais,
traços indeléveis de construcção local a que se prende a tradição
horticola e a derivada das industrias da pesca. Do clima uniforme
nasceram os elementos espontâneos que teem apenas emprego
episódico no resto do pais : a casa de terraço, de arestas niiidas
como um enorme dado de cal, de cuja linha superior apenas
se levanta a delicada renda da chaminé ou o perfil da sotéa,
como uma cabeça embiocada e curiosa que olhasse ao longe,
para o mar de tur-
quesa.
O que nos últi-
mos tempos se tem
querido definir, abs-
tractamente, como
constituindo a ex-
pressão regionalista
da casa portuguesa,
é a habitação de es-
cada exterior encos-
EM EVORA — As portas de Moura tacla a uma das la-
CHAMINÉS DE
A habitação em Portugal
chadas do prédio ou caindo sobre
esta perpendicularmente e coberta
no patim do alto por um alpendre
com tejadilho assente em colum-
nellos dóricos ou jónicos.
Effectivamente, é esta a varie-
dade que, como já dissemos, com
maior frequência se encontra nas regiões ruraes mais diver-
sas, por ser talvez a escada exterior, além de outros motivos
apontados, um recurso de construcção fácil e económica, facto
que parece dar garantias sobre a remota origem desse typo,
accentuando-se que é commum a toda a faixa mediterrânea,
como se vê em pontos extremos, no sul de Itália e na Grécia.
Nelles se filiam, como ficou exemplificado para o Paço de Ca-
Iheiros e a Casa do Feital, alguns dos solares dos séculos xvii
e xviii e muitas habitações da classe media no campo e nas cida-
des. É por certo a que mais se coaduna com a uniformidade do
nosso clima, sobretudo nas suas zonas temperadas, e aquella que
abrange não só maior numero de exemplares ainda existentes,
mas a que mais inalterável se conservou nas suas linhas geraes
através das variantes da architectura civil nos períodos das gran-
des correntes de arte estrangeira.
Quanto ao pormenor decorativo, esse é que ofFerece uma
abundante variedade de motivos locaes, e é principalmente a elle
CASA DO 8R. RICARDO SEVERO NO TORTO (RUA DO CONDE
y"
CHAMINÉS DE FARO
A habitação em Portugal
que devemos ir buscar a pe-
' dra de toque de onde irradia
j . a expressão regional da casa
portuguesa, pois é elle que
r^if^ ^y^ ' lhe imprime caracter e lhe dá
f^ f %M ^^^^ nossa. Ora conservado
« ^J ' nas camadas fundas do povo,
' ' e em reproducção perma-
n y^-yr '. i ^ ncnte e fecunda elaboração nos seus
^ íí^ I objectos de uso commum, ora substi-
ySif\ tuidu pela decoração erudita bem depressa
modiíicada ao sabor das tendências estheticas do
architecto local, o ornato é o elemento mais es-
pontâneo e mais intimo da construcção domestica, impregnado
de fantasia, de imprevisto, de risonha ingenuidade e sempre de
graça ondulante e rythmica. Ao eschema regional, ás necessida-
des elementares que eram os requisitos inherentes da sua cons-
trucção, acrescentou o alvencl os elementos que a poesia do
meio e a tradição lhe iam fazendo brotar da imaginação irre-
quieta ; e é por isso que da
casa portuguesa se evola um
perfume que não reside só
na forma, não se destaca
apenas da linha, mas irra-
dia de um conceito minús-
culo, de um aspecto reca-
tado e humilde, nimba a
aresta de um telhado, sen-
te-se ranger na veleta, rasga
uma janella sobre a vida
intima, evoca-nos o passado
embalando a dor para que adormeça. Ora tudo isto nos faz
sonhar porque é a poesia da nossa terra, a poesia do campo e
da cidade, que nos lembra sempre, num sobresalto de nostalgia,
os sonhos incubos da nossa infância, e nos unge com o refres-
cante orvalho da pátria longinqua.
COIMBRA — Lapide dos prédios foreiros ao Município
no século xvi
João Barreira.
ARTE DECORATIVA PORTUGUESA
ARTE decorativa andou em Portugal, como em todos os
paises cultos da Europa, ligada aos monumentos. Flsta
these seria trivial se não a completássemos, acrescen-
tendo-a com outra subordinada : quando não havia ainda
monumentos, haveria arte decorativa, em gérmen, ao menos?
Onde e como se manifestou ?
Os monumentos, ou corrigindo a expressão com mais pro-
priedade, as construcções ornamentadas mais antigas que possui-
mos, vêem-se ainda nos fragmentos architectonicos da Citania de
Briteiros e de Sabroso, nas vizinhanças de Guimarães. Foram
integradas com superior critério no claustro do Convento de
S. Domingos, sede da Sociedade Martins Sarmento. Entramos,
assim, num dominio decorativo anterior de algumas centenas de
annos á arte dos Romanos. Porem, esse mesmo alfabeto artistico
apparece na cerâmica prehistorica, desligado de qualquer monu-
mento. E recuamos então novamente algumas centenas de annos;
quantas? Ninguém o poderá provar por emquanto K
i Cartaillac, Les *iges préhistoriques de lEspagne et du Portugal^ Paris
1886, p. 287 e seg.
Pierre Paris, Essai sur l'art et Vindustrie de 1'Espagne primitive, Paris,
1903 a 1904, 2 vol. Sobretudo os capitules que comprehendem Varchitecture
I 8o -^'^ decorativa portuguesa
Os motivos da arte são muito variados, e abrangem a pedra,
o barro, a lousa, os metaes preciosos. Alguém disse e demons-
trou com autoridade incontestável que os primeiros elementos
decorativos, os mais archaicos: os circulos concêntricos, a espi-
ral, as covinhas isoladas ou agrupadas, a espinha de peixe ele-
mentar, o lavor entrançado, os cordões, os ornatos cruciformes
ou alveolares, etc, recordam a arte dos monumentos prehisiori-
cos da Scandinavia e da Gran-Bretanha '.
A semelhança de alguns motivos é perfeita ; outros lembram com
evidente clareza as descobertas feitas pelo allemão Schliemann *.
Separar esses motivos, classificá-los por períodos, determinar
a sua procedência, com apparente exactidão, seria tarefa impossível
por emquanto, e pouco uiil. E, porem, sobremodo interessante e
instructivo observar a persistência e vitalidade d'essa arte, num
período em que ella se achava reduzida a um campo limitado,
vivendo somente em duas ou três industrias primitivas.
O que todavia apparece como facto novo e surprehendente —
e não foi ainda notado — é a persistência d'essa arte decorativa
da Citania e de Sabroso, com todos os seus symbolos, até nossos
dias, em dilTerentes industrias caseiras de primeira ordem,
reatando o fio de uma tradição, duas, três vezes millenaria, com
a mais escrupulosa exactidão.
Pois o que são os jugos dos nossos bois, ora simplesmente
lavrados com gravura linear, ora com entalhe fundo ou apenas
superficial, ora tapados, ora vasados, monochromicos ou poly-
chromicos, senão pedras formosas, a seu modo ?
O que são as arcarias ornamentadas, no pórtico da Matriz de
Barcellos, o conjunto decorativo (dúzias de motivos) de todo
o templo de S. Pedro de Balsemão, a decoração em granito do
Mosteiro de Travanca, ou os eflfeitos decorativos em tijolo nas
(vol. i), la céramique e les bijoux do vol. ii, com uma extraordinária riqueza
de illustrações.
A obra alcançou o premio Martorell, (concurso de Barcelona de 1902).
Só a cerâmica abrange 1 52 pag. em 8.° gr.
1 Id., ibid.
2 Id., todo o capitulo: Les Citanias et les villes fortifiées du MinhOy p. 272
e seg.
Arte decorativa portuguesa
i8i
ruinas da igreja do Convento de Castro de Avellãs, senão archivos
de desenhos para feitores de jugos populares?
Quem foi mais fiel? — o architecto no grande monumento eru-
dito e apurado, o mestre de obras na modesta capella de longínqua
freguesia, ou o artifice popular, talhando o jugo com três pobres
instrumentos: a goiva, a meia cana e o pé de cabra? Quem
revelou melhor esthese ? A resposta é facillima.
O oleiro, o ourives na
filigrana, o feitor de jugos
principalmente, para citar
só três, revelaram-se os
mais seguros e fieis adeptos
da arte nacional. EUes nos
conservaram o alfabeto de
formas decorativas mais ri-
co, mais variado, mais puro,
mais genuino que uma na-
ção pode apresentar. E sem
receio de contradição se
deve affirmar que ninguém
nesse campo nos leva a
palma !
Salve pois ! Obreiro das
aldeias! Não te importes
com as pretensões da outra
gente que se diz artista,
porque já acharam pouco
o titulo que tiveram ainda
teus pães, intitulados sim-
ples artífices ou operários.
Dos templos, uns cai-
ram; outros foram detur-
pados; raro é o que man-
tém a pureza das suas linhas
constructivas. A arte decorativa popular ficou, vive, floresce.
Da ornamentação, nos grandes estilos eruditos, d'essa não fale-
mos ! Ahi é que os restauros da moda, os estragos, a confusão
foi enorme, perturbando a lógica mais elementar, o raciocinio
esthetico mais necessário, supprimido ás vezes quasi o próprio
os OIROS DAS MULHERES DO MINHO
l82
Arte decorativa portuguesa
senso commum em determinados centros de influencia, aliás pre-
tenciosos.
A applicação desordenada, chaotica, do estilo rocóco, tradicio-
nal em Braga, imitado em nossos dias com o mais deplorável
exagero, num rigorismo que assombra; o servilismo com que se
repele na capital o chamado estilo pombalino, na habitação parti-
cular, applicando a chalets um estilo feito para quartéis, secreta-
rias e conventos banaes: estilo frio, monótono e pobre de ideias;
a fúria insana com que se devaneia no moderno estilo manuelino,
com dois elementos
apenas: asymetria
nas linhas constructi-
vas e arcos polycen-
t ricos — porque fauna
e flora decorativa nin-
guém as entende na
ornamentação talhada
à V aventure — são
symptomas deplorá-
veis de uma pobreza
de ideias palpável, de
uma orientação erra-
da. E tempo de acu-
dir com um conselho
reflectido, fundado
nas melhores tradi-
ções nacionaes. Fe-
lizmente, não nos fal-
tam alguns artistas de
bom critério, origina-
lidade e fecundidade
comprovadas. Come-
çam a muliiplicar-se
as obras bem pensa-
das, obedecendo ás melhores condições technicas, accommodadas
a um preço razoável, traçadas em obediência ás necessidades
modernas, sem caírem nos excessos de estilo, que só por irrisão
podiam baptizar como Arte Nova.
Haverá suite, persistência nessa salutar reacção?
os OIROS DAS MULHERES DO MINHO
Arte decorativa portuguesa
i83
Tudo depende de um conselho claro da critica, de uma regres-
são salutar, não ao Passado, puramente, cegamente, mas sim ás
fontes, ás genuínas fontes da inspiração nacional. K preciso senti-
rem novamente, com o povo, as suas alegrias e as suas tristezas
expressas em symbolos palpitantes como outr'ora, quando imagens
valiam por lettras: in ipsa legitnt qui litteras nesciíntt.
Mostrem-lhe as bellezas da sua pátria, da sua casa; honrem
a poesia do seu lar ; venerem a sua arte, porque elle o me-
rece; amparem as suas industrias caseiras, que ainda podem
ser uma fonte de receita e
de inspiração nacional. En-
tre elles ha cantadof^es-im-
provisadores; porque não
haverá na arte decorativa
popular o improviso fecun-
do? Se quem canta, seus
males espanta — quem de-
buxa e esculpe e idealiza
tanta coisa, é porque tem
no coração a saudade de
uma belleza entrevista em
sonho, presentida, que lhe
afaga e fecunda a imagina-
ção. As fontes da inspira-
ção popular nunca secaram.
COBERTA DE URROS
Quaes foram essas fon-
tes ? Eis o que importa ave-
riguar.
Começaremos a reforma
pelas artes decorativas ou
pela grande arte, a arte
j gA Arte decorativa portuguesa
mãe, a Architectura, que em si reune, cncyclopedicamenie, todos
os elementos? A segunda solução só é applicavel nos grandes
centros, onde afflue o capital; e ahi mesmo vemos prevalecer
os casarões (Avenida da Uberdade, em Lisboa!) cortiços enor-
mes com mil aberturas, onde a colmeia humana, o inquilino,
larga a pelle, o seu dinheiro, explorado pela usura de qualquer
grande mestre de obras que traçou o fino plano. Ao contrario,
a arte da provincia fez produzir maravilhas artisticas, em terras
onde não havia nem mármores raros, nem escultores pretencio-
sos, nem pintores ou scenographos exóticos. Com uma simples
alvenaria — (porque a cantaria é ahi, no Alemtejo, supérflua, luxo
da mão de obra) — e sobre ella um reboco de cal, económico,
encobrindo o opus rusticum; com o tijolo applicado em formas
e feitios variadissimos, surprehendentes \ semeando aqui e acolá
com discreta parcimonia uma janella geminada, com columnellos
de mármore branco de permeio; realçando a arcaria com tijolo
recortado e tingido a ocre vermelho; numa palavra, com os ele-
mentos mais económicos, tirados exclusivamente dos recursos
locaes, realiza-se um prodigio decorativo. O mesmo sgi^affito,
importado da Itália talvez no seculc xv, mantendo ainda hoje
motivos tradicionaes de uma elegância e distincção raras, em
Évora e Beja, mas já esquecido em Coimbra, onde teve e tem
bellissimos exemplares históricos — o sgraffito nacionalizou-se, a
ponto de ser um encanto de toda a vida eborense, até na casa
apenas remediada. E uma das formas mais expressivas e mais
económicas da decoração portuguesa exterior, ainda hoje.
Quem inspirou ali o artifice? Quem animou o seu collega,
estucador de Aflife (\'ianna do Castello), cuja reputação de arte,
1 Em 1882 {Cerâmica, serie 11, pag. 27, nota 2.») sublinhei a importância do
tijolo antigo, como elemento decorativo, em todo o Alemtejo. José Queiroz
(Cerâmica Portuguesa, Lisboa, 1907, pag. 2()9, capitulo Tijolo)^ a quem recom-
mendei o assunto, illustrou-o lindamente. O grande industrial Almeida Costa
(Fabrica das Devezas, em Gaia) provou praticamente nas suas edifícações de
Gaia e do Porto (Rua de D. Carlos) que a applicaçáo decorativa do tijolo se
presta a innumeras e surprehendentes ornamentações na architectura moderna.
Vide ainda ; A cerâmica applicada ás construcções^ Lisboa^ 1907 na Biblioiheca
de Jnstrucçáo Profissional. Ahi mesmo reproduziu a bellissima construcção do
Visconde de Sacavém, em Lisboa (Rua do Sacramento), com os merecidos
louvores ao fidalgo de bom gosto, que foi arrojado industrial.
Arte decorativa portuguesa
iS5
RENDAS DE PENICHE
bom gosto e geito lechnico é prover-
bial? Ás escolas não devem nada. A
tradição para elles — alemtejano e mi-
nhoto — é tudo, na officina caseira que,
transmittida de pães a filhos e a netos,
mantém uma technica primorosa. A
familia Meira, hoje com officinas em
Vianna, de onde é natural, no Porto,
em Coimbra e Lisboa, é um exemplo
eloquente da transmissão de aptidões
artisticas, sobremodo honrosas. Ampa-
remos pois por todos os modos o lavor
domestico, as industrias caseiras, res-
peitando os direitos históricos adquiri-
dos, saneando os mercados de venda,
repellindo a usura e as imitações es-
trangeiras. Centralizar, com a fé num
qualquer typo ou modelo de organiza-
ção francesa, allemã ou inglesa, é as-
phyxiar uma vitalidade preciosa.
Fala-se tanto — tem-se falado de
mais — na criação da Casa portuguesa,
com decoração própria, original, que
já ninguém se entende no meio de tan-
tas receitas e alvitres. Cada provincia
tem felizmente o seu typo. Procurae-os.
Como pretendeis pois apregoar uma
formula, um padrão único? Os mais
caracteristicos estão por essas estradas
fora ; são producto espontâneo popular,
original, sem a menor intenção de o
ser, simples e convincente, porque são
sobretudo exemplares económicos, cla-
ros e apropriados ao fim pratico. Teem
por fundo uma paisagem que prima
pela belleza; nella vive uma raça pri-
vilegiada, fecunda pela prole abun-
dante com que povoa o Reino, gente videira, económica, robusta,
no meio de uma existência frugalissima; infatigável como o boi
I 8(5 Arte decorativa portuguesa
minhoto, que ella considera o seu melhor amigo e alliado. Para
elle o melhor logar da casa, o mais agasalhado no inverno, o mais
fresco no verão; para elle a alfaia mais adornada, mais cara,
mais vistosa — o jugo incomparável. — Neste capitulo o lavrador,
aliás ultra-poupado, não pensa em economia; ahi mantém um
verdadeiro culto; á menor doença chama-se o doutor, corre-se á
botica, longinqua e careira, sempre pesada á magra bolsa do lavra-
dor. Gasta-se com o boizinho aquillo que se regateia á mulher e
aos filhos, em doença ás vezes grave. Em torno doesse jugo e
com a mesma technica, precisamente, manteve-se uma decora-
ção caseira que dá grande realce ainda a outros moveis de uso
pessoal do lavrador.
Vi em Trás-os-Montes e no Douro peças de mobiliário cober-
tas de desenhos lavrados com o entalhe obliquo^ o qual nos paises
septentrionaes da Europa: Allemanha, Suécia, Noruega, Dina-
marca, Hollanda, etc, resuscitou ha uns vinte annos sob o nome
Kerbschnitt, com uma voga excepcional.
Vi lambem nessa mesma região, e ainda na casa rústica, typos
variados de mobilia torneada (castanho) no estilo da Renascença
flamenga e hoUandesa, muito notáveis, extremamente sólidos, re-
sistindo aos peores tratos, apesar de vários séculos de existência.
Porquê? É fácil explicá-lo. A sua construcção é perfeitíssima.
Não teem prego, nem colla; todos os elementos estão ensam-
blados com o maior apuro. A mesma perfeição, o mesmo cuidado
se revela na factura do vasilhame de cozinha. E certo que os
vasos de cobre, caros, mas quasi eternos, tendem a desappare-
cer. Faz pena porque, sob o ponto de vista da technica, são per-
feitos; tudo é batido a martelo primorosamente, soldado com
arte eximia, decorado com motivos tradicionaes preciosos. Vale
tanto essa Dinanderie como a serralharia, pois a obra de ferro,
toda forjada, batida sobre a bigorna, ostenta formas, desenhos e
ornatos que nos transportam aos séculos xiv, xv e xvi. As grades
antigas de grande estilo, nas casas abastadas — (poucas eram ha
vinte e sete annos, quando em 1881 as desenhámos; hoje são
raríssimas) provam que em Trás-os-Montes se ligou grande im-
portância á obra do ferreiro e serralheiro.
Estas officinas viviam ao lado da loja do amieiro e espadeiro;
lidavam com gente nobre; dahi a riqueza com que os fidalgos
e burgueses abastados ornavam as varandas de suas casas e pa-
Arte decorativa portuguesa
187
lacios, as reixas de suas capellas mortuárias em Braga, Lamego,
Bragança, Évora, Elvas, Borba, Villa Viçosa, etc. Em todas essas
localidades, recolhemos desenhos preciosos. Os pequenos centros
da provincia rivalizaram com os lavores das grandes cidades.
A obra moderna de serralharia em Lamego, Trancoso e Celo-
rico (gradeamentos dos cemitérios) dá ainda hoje na vista, sur-
prehende, encanta nos padrões. A enorme grade do cemitério de
Celorico, um primor de arte, deve-se a um modesto serralheiro
BAHU DE COIRO LAVRADO, MODERNO — PortO
da terra. E um prodigio e custou Soo^rooo réis 1 1 Outra, de mérito
quasi igual, no cemitério de Trancoso.
Repetimos: o estilo d'essas grades de cemitério, grimpas de
torre, gaiolas de sinos, cruzes funéreas, impõe-se, nos padrões
grandes e nos minimos. Em Coimbra reappareceram nos últimos
annos lavores que annunciam uma nova Renascença, graças aos
esforços do Sr. António Augusto Gonçalves, antigo Director da
Escola Industrial Brotero e restaurador benemérito da Sé Velha
de Coimbra, artista de óptima raça c organizador da officina
conimbricense, em novas bases. Elle tem como poucos a intuição
clara, o sentimento arraigado, a convicção profunda da valia do
operário popular. Sabe, ha muito, de onde vem e para onde vae;
e com elle caminha ha 3o annos o operariado de uma cidade
inteira. A Escola Livre das Artes do Desenho de Coimbra, que
igg Arte decorativa portuguesa
já festejou as suas bodas de prata, modestamente, em silencio
recolhido, mas em trabalho sempre fecundo, deu o exemplo, antes
do Governo intervir no ensino das artes decorativas com tentati-
vas, apalpadelas e contradições. Ahi, como na capital, foi a inicia-
tiva particular quem deu o exemplo, o modelo para as suas orga-
nizações. Em Lisboa, a Escola Rodrigues Sampaio é anterior a
todas as tentativas do Ministro, aliás benemérito, António Augusto
de Aguiar (i883j. A Escola Livre de Coimbra ainda é mais an-
tiga! O Sr. Gonçalves não promoveu só essa arte da serralharia
artistica, decorativa, de que estamos falando; agrupou em torno
das ofíicinas da Sé \'elha, restaurada por iniciativa de um Pre-
lado eminente, grande e generoso, á moda dos Almeidas, dos
Castello-Brancos e dos Mellos — uma serie de industrias de arte,
que posso e devo classificar como modelares, porque é elle o pri-
meiro que trabalha e maneja os instrumentos, como maneja o
seu seguro, fecundo e enérgico lápis. Assim, os effeitos são visi-
veis, palpáveis, gloriosos; ennobrecem uma cidade e honram
o país !
II
A arte decorativa seguiu na architectura profana e religiosa
iguaes destinos ao principio. Não temos espécimes da decoração
românica, mas ha-os nos códices membranaceos castelhanos
{códice Vigilano, séculos xi-xii; no Libro de los Testamientos, na
cathedral de Oviedo, principios do século xii ; na Biblia, de Ávila,
século XII ; no Libro de los juegos, de D. Aflfonso, O Sabio^ fins do
século xiir, etc). E toda a razão ha para suppor em Portugal
uma arte irmã. Comparando, por exemplo, o ultimo doestes
códices com as illuminuras que illustram o Cancioneiro da Biblio-
teca Real da Ajuda, facilmente se conhece que os nossos artistas
se inspiravam dos modelos vizinhos, mormente da arte que
dominava na corte de D. Aflfonso, O Sábio, avô de El-Rei
D. Dinis, de quem foi padrinho, protector e conselheiro. Isto já eu
demonstrei com documentos, os próprios decalcos do Cancioneiro
citado, tirados em 1877 e remettidos ao meu illustre amigo Fer-
dinand Denis, que com esses e outros documentos meus compôs
Arie decorativa portuguesa i3q
uma boa parte da memoria sobre os antigos pergaminhos iilumi-
nados da litteratura portuguesa *.
Em Coimbra conservaram-se até cerca de 1862 restos muito
notáveis de pinturas muraes, a fresco, na igreja românica de
S. Christovam, que certamente se relacionavam peio estilo com
a arte da illuminura nacional, como foi observado em Espanha.
Quaes foram dentro da época românica ^ (séculos ix-xni), os
elementos componentes da decoração interior ? Sobresaem quatro :
1.® A pintura mural ai fresco.
2.^-3.® O mosaico, juntamente com o azulejo.
4.® O lavor multiforme do alfarje.
Já dissemos como em Coimbra se conservou, até 1862, um
preciosissimo resto de pintura a fresco, do século xii, na crypta
da igreja românica de S. Christovam, destruida vandalicamente,
para dar logar ao Theatro D. Luis I, que também jà desappa-
receu, como obra banal, de fancaria, que era. Tinhamos ahi um
typo de decoração interna valioso, caracteristico e bem conservado,
segundo o testemunho de pessoas que o admiraram, quando
o templo foi demolido -. Ninguém, na douta, culta, sabia e pre-
I Introducção histórica ao Missal de Estevão Gonçalves. De la peinture des
nianuscripts iUustrés en Portugal. Paris, Macia édíteurs. Sem data.
Vide também a monographia do Visconde de Santarém : Notice sur guel-
quês mannscripts remarquables par leurs caracteres et par les ornements dont ils
sont embellis. Paris, s. d. Não traz anno, mas as Notes additionnelles, ainda mais
raras do que a Notice, teem a data 24 de abril de i835.
O estudo de Esteves Pereira no Occidente (revista illustrada), sobre os ma-
nuscritos illuminados portugueses, ou existentes em coUecçóes portuguesas, é
muito deficiente. Basta recordar que lhe falta toda e qualquer referencia á arte
dos nossos vizinhos, que são riquissimos ainda e originaes na sua technica.
Sempre a mesma muralha da China, na fronteira de Portugal, para estes senho-
res, nacionalistas inconscientes 1 O Visconde de Santarém não procedeu d'este
modo, no mesmo assunto, ha sessenta annos. Para que servem então esses
exemplos illustres ?
3 Com esta designação entendemos uma classifícaçao que, por falta de
espaço, não podemos justificar aqui. Esse serviço foi feito em outro logar, com
ampla documentação. (Revista do Porto : A Arte, «Ensaio sobre a architectura
românica em Portugal», anno iv, n.® 3j e seguintes).
3 A. Felipe Simões, Relíquias da architectura romano-by^jfantina, cita as
pinturas e dá a planta da egreja destruida.
igo
Arte decorativa portuguesa
sunçosa Lusa-Athenas, teve a lembrança de tirar um simples
esboço das pinturas da crypta.
Com os frescos combinavam-se os mosaicos de que em toda
a peninsula hispânica ha trabalhos nacionaes importantissimos,
começando pelas bellissimas obras polychromicas de Gerona e
Tarragona (Museu archeologico d'esta cidade ; collecção do Conde
de Belioch, cêrca de Gerona, etc, etc). O Museu Archeologico
do Carmo (Lisboa), o Museu Archeologico e Ethnologico de Be-
lém, differentes museus de provincia (o do Instituto, em Coimbra;
da Sociedade Martins Sarmento, em Guimarães ; os da Figueira,
NO DUSSACO — Lavores embrecliados
Santarém, Beja, Evora, etc; vejam-se os valiosos Boletins dos
mesmos museus) podem apresentar documentos de valor, desde
os mosaicos romanos de thermas celebres (no Minho, Caldas de
Vizella e das Taipas ; no Douro, recentes descobertas de Entre-
os Rios; na Estremadura, em todo o Alemtejo e Algarve,
segundo as explorações de Estaco da V^eiga).
Do mosaico ao azulejo vae um passo somente, bem curto,
como é fácil demonstrar em toda a arte árabe, pois os azulejos
peninsulares mais antigos dos séculos ix e x (Córdoba, na mes-
quita), são de facto um mosaico ainda e não uma combinação de
chapas, inteiriças, nas dimensões normaes de o'",i3. Logo voltare-
mos a este elemento decorativo, de capital importância em toda
a peninsula, em todos os tempos, até nossos dias.
Arte decorativa portuguesa \ q j
Sendo o azulejo, desde a sua apresentação no Oriente, como
o foi o tijolo vidrado, polychromico, equivalente a um tapete,
a um tecido, traduzido em cerâmica, para encobrir material de
valor intrinseco secundário, é evidente que a transição de um
para outro ramo da arte decorativa é natural e impõe-se ao histo-
riador.
Deixemos, porem, por emquanto o azulejo, o tijolo, e o tecido,
para nos occuparmos do alfarje, que verdadeiramente devia abrir
a serie, visto que é o elemento constructivo, por excellencia, em
toda a habitação peninsular; d'elle depende tudo o mais-, a elle
convergem todas as concepções do decorador medievico e do da
Renascença.
Elle, o alfarje mourisco, mantém o seu triumfo durante todo
o século XVII e cria ainda maravilhas no primeiro terço do sé-
culo xviii, no meio da tyrannia do estilo rocôco, e apesar da
omnipotência da moda, que fez da solemnidade faustosa, mas pe-
sada, da habitação portuguesa, um arrebique casquilho. Graça,
a graça inconfundivel, o donaire perfeito dos decoradores fran-
ceses, uma legião de artistas ! raras vezes o teve esse rocôcó *,
mormente trabalhando o granito; e no granito cifram-se ires
quartas partes do lavor nacional nesse estilo. Foi preciso que o
estilo pseudo-classico, que em Portugal vigorou até i83o (e cor-
responde rigorosamente ao estilo Luis XVI de França) começando
cerca de 1780, no reinado de D. Maria I, viesse reacordar a graça,
a elegância, o discreto bom gosto e o conforto da casa moderna ;
viesse restabelecer as honras da sciencia do desenho, sciencia
que o bom Francisco de Hollanda deixara adormecida, como a
«Menina branca de neve» da lenda allemã. Esse estilo fez escola,
nobilitou o gosto decorativo nacional, mas foi, infelizmente para
a maioria das classes abastadas, apenas um episodio da moda,
não um propósito esthetico, claro e definido, um programma para
> Um exemplo rocôco puro, que nos satisfez plenamente, como uma re-
cordação do que vimos de mais bello em França — mas esse espécimen é em
madeira, não em pedra ! — encontra-se no Santuário (Casa das Relíquias) do
convento de S. Francisco de Alemquer. Não tem par em todo o Reino, a guar-
nição dos armários envidraçados. Parece o boudoir de uma Rainha ; e Rainha
foi a fundadora (D. Beatriz, segunda mulher de D. AíTonso III).
192
Arte decorativa portuguesa
Vida nova na Arte. Esse estilo subtil e perfumado, cheio de che-
rubins e de cupidos, coroado de trofeus galantes, decorado de
festões de rosas, de emblemas pastoris e de boninas, colhidas
nos prazeres campestres e nos rende^-votis amorosos, vive hoje só
para os bibliophilos, em meia dúzia de livros muito raros, que
constituem o nosso capitulo de livres à gi^avures. Aqui entramos
num dominio novo, não explorado ainda pela erudição nacional.
O lavor do alfarje ou almocárabe domina em Portugal em
toda a arte decorativa no interior das habitações, d^sde a con-
quista árabe até ao
primeiro terço do sé-
culo XVIII. Não ha
exemplo de tenacida-
de, de vitalidade se-
melhante ! Em todo o
revestimento interior
das grandes e peque-
nas moradas, dos tem-
plos majestosos, das
ermidas e capellas
mais modestas que so-
bem pelas grandes
serras do Reino ou
se escondem nas que-
bradas umbrosas; em
todas as salas e gale-
rias dos Paços régios,
bem como nos corre-
dores dos conventos,
ou ainda nas aulas dos
collegios semi-secula-
res — por toda a parte
registei o triunfo indis-
putado d^essa grande
arte, que mestres mou-
riscos nos ensinaram.
tono DA IGREJA DE S. BENTO DA VICTORIA (pORTO)
Arte decorativa portuguesa jq3
Mas não é só a carpintaria de construcçao em que elles nos ins-
truíram maravilhosamente; é o próprio mobiliário artistico, fixo
e volante, que lhes deve os segredos de uma technica surprehen-
dente, ainda hoje louvada e admirada por todo aquelle que
a soube descobrir e estudar em exemplares autênticos, quer na
cidade, quer na villa, quer na mais insignificante aldeia, pois a
difficuldade está nisso, em segui-la até ás camadas populares, hoje
em dia.
Mesmo quando a obra de talha da segunda metade do sé-
culo XVII attinge os effeitos mais theatraes — o de um scenario
de opera archi-faustosa, fantástico, é fácil encontrar no remanso
de uma sacristia, no segredo de uma vestiaria, uma obra rara
do alfarje, occulta modestamente, consolando o visitante. Está ali
escondida, em bellissimo estilo, recordando-nos a boa tradição
de séculos passados, por assim dizer uma Renascença posthuma !
A technica é, porem, sempre mosarabe.
Ha mais de trinta annos que estou chamando a attenção dos
estudiosos para este ramo, outrora frondosissimo, da arte deco-
rativa peninsular, nacionalizando o termo technico sob a expres-
são laço (em árabe ajaraca), laçaria, lavor altcatado. Em 1882
citei a fonte de estudo capital, o compendio theorico e pratico
de toda essa maravilhosa arte mosarabe ', o tratado: Carpintaria
de lo blanco y tratado de alarifès, de Diego Lopes de Arenas
(I.* edição, i633); 3.* ed. Madrid, 1867, por D. Eduardo de Maria-
tegui. Temos esta á vista.
Que importa que o dominio árabe terminasse em Portugal
com a conquista do Algarve em i25o, se a influencia do génio
artistico d'essa raça nacionalizada no solo peninsular (o mou-
risco) continuou até á conquista de Granada (1492) e perdurou
mesmo até ao primeiro terço do século xvu, até á expulsão defi-
nitiva dos mouriscos, sob o governo de Felipe III (1609); se emfim
> Havemos encontrado em Portugal differentes exemplares annotados da
edição de 1727. O Sr. António Moreira Cabral, distincto bibliophilo do Porto,
possue um. Temos presente a edição moderna, annotada, de 1867^ que per-
tence á serie Biblioteca dei arte en Espafta. No Commercio do Porto, a propósito
da Exposição de Cerâmica Nacional, apontámos em 1882 para a excepcional
importância d'este compendio de carpintaria.
i3
194
Arte decorativa portuguesa
O ensino nas escolas de artífices e nas officinas avulsas se man-
teve rigorosamente dentro da tradição mourisca, pois o Arenas
continuou a ser reeditado pelo século xvni adeante ? ! '
O alfarje é uma arte complexa, com processos technicos
especiaes ; complexa, porque abrange no systema do traçado geo-
métrico não só a carpintaria, mas todo o mobiliário, o azulejo,
o lavor variadíssimo
de estuque, emfim:
grande parte da obra
de ferro e aço, sec-
ções importantes da
cerâmica, da ourive-
zaria e da obra es-
maltada. No sentido
restricto da carpinta-
ria de construcção,
que prevalece em toda
a habitação humana^
é a arte que ensina a
traçar, enlaçar, em-
butir as listas, faixas,
fitas ou bandas, que ora cobrem de figuras estrelladas os apo-
sentos interiores, em superfície corrida ou interrupta (alisares,
taboleiros das paredes, frisos, nichos, etc), ora pendem dos
tectos, formando estalactites; é a arte da alxamia, que produz
os adornos pendentes de desenho polygonal; é, emfim, a arte
ALMOFADA DE PENICHG
> A influencia do Arenas é reconhecida pelo eminente pedagogo espanhol
Borrei), no seu esplendido Tratado de dibujo. Madríd, 1866-1875, obra em
3 volumes, foi., que muito honra a sua patría e é uma verdadeira encyclopedia
das artes decorativas. A Espanha teve mesmo antes do Arenas um outro livro
celebre, com a apologia da officina : Bienes de el honesto trabajo y danos de
la ociosídady por el P. Pedro de Guzman. Madrid, 1614. (Nossa collecção).
Sobre a Bibliographia da arte e das industrias em Espanha temos publicado
elementos importantes desde 1886.
Colleccionámos para nosso uso muitos dos volumes d*essa copiosa e honro -
sissima bibliographia, que debalde se procurarão nas Bibliotecas publicas mais
ricas de Lisboa, Porto e Coimbra.
Arte decorativa portuguesa iq5
que criou as cúpulas de construcção alveolar, as feéricas arma-
ções que recordam as scintiilações do céu estrellado '.
Se houve arte decorativa original, peninsular, e por isso tam-
bém portuguesa, foi a do al/arje. Se os nossos antiquários sup-
põem uma influencia d'essa arte, menos evidente entre nós do que
em Espanha, enganam-se. Até ha pouco, elles nem sonhavam com
o alfarje; se algum citou o tecto da cape lia de Cintra foi para
o classificar erradamente de árabe fsicjj como sendo o da antiga
mesquita dos paços árabes, quando elle é mourisco, e pertence
incontestavelmente ao principio do século xvi ^. O pavimento cerâ-
mico da capella, no seu género também lavor de alfarje, esse
será talvez do fim do século xiv ou principio do século imme-
diato. Enganam-se os archeologos nacionaes, porque não conhe-
cem do país senão meia dúzia de localidades, accessiveis por
meio de commodas linhas férreas; enganam-se duas vezes, por-
que teem deante dos olhos uma espécie de muralha da China,
que começa para elles na raia de Espanha. Desde 1881 andamos
registando pacientemente e desenhando as reliquias do alfarje,
da arte mosarabe ^ entre nós. São ainda numerosas e muito no-
I Boirell {op. cit,) traz os variados processos de construcção, engenhosíssi-
mos, das abobadas ou coberturas alveolares (vol. 11 est. 40 e 41). Elle em parte
completa, em parte resume, outras secções do Arenas, mais prolixo. Vide lam-
bem Mariátegui, Glosario de arquitectura y de sus artes auxiliares. Madrid,
1876; emíim, o recente estudo de António Prieto y Vives: «Apunies de geo-
metria decorativa : Los mocárabes», na revista Cultura espanola, Madrid, 1907,
n.*^ 5. O termo — leia -se : almocárabe,
3 Conde de Sabugosa, O Paço de Cintra, Lisboa, igoS, com desenhos de
Sua Majestade a Rainha. Ahi vêem desenhos do tecto e do pavimento em mo-
saico, de tijolo vidrado, polychromico. Vide, emíim, o nosso Ensaio : A Cerâ-
mica portuguesa e sua applicação decorativa. Lisboa, junho de 1907, na «Biblio-
teca de instrucção profissional».
3 Já em 1882 prometti um estudo intitulado : «Reliquias da arte mosarabe
em Portugal (Cerâmica portuguesa). Serie 11, pag. 34». O douto escritor Maria-
tegui (GlosariOf pag. 85). chega a definir o lavor de alfarje, com o próprio
termo mo^árabes, assim: «Labores en forma de lazo çon que se adoman los
paiíos, racimos, cubos, tirantes, etc, de los techos de alfarje — Del árabe al-mor-
cabaçuy e em outra citação : «moçarabes ó mozarabes Uamaban á los techos de
maderas dorados que despues se Ilamó artesonado». Cita depois documentos
de 1 540 e 1 542 e dá os desenhos.
196
Arte decorativa portuguesa
taveis; o que era, ao prin-
cipio, um documento artís-
tico, raro, uma excepção, é
hoje um valioso thesouro! *
Resumindo, porque o ca-
pitulo sobre o alfarje, seria
hoje interminável, a sua te-
chnica perdura ainda; em
Coimbra reproduziram ha
annos a reliquia da Sé Ve-
lha, citada em nota, com
toda a perfeição. Uma ex-
posição de desenhos e pho-
tographias d'esses lavores
» Falla-me o espaço para enu-
merar e commentar a valia das
descobertas. Tudo é inédito. Ha
obra de alfarje notabilissima em
Ceia (Palacete Motta Veiga). O
tecto da sala maior d'esta casa
do século XV, era uma copia rigo-
rosa do grande salão do paço dos
Duques do Infantado (Mendozas)
em Guadalajara. Desenhámo-la
em 1881 ; foi destruído. Ha ali
mais quatro tectos de obra de
alfarje, muito notáveis. Outro
tecto precioso existe em Coim-
bra (descoberta do Sr. A. A.
Gonçalves). O tecto da matriz
de Caminha é incomparável, uma
maravilha. Desenhámo-lo nos me-
nores detalhes, em 1881 e 1882.
É mais conhecido o alfarje que cobria o tecto inferior do antigo coro da
Sé Velha de Coimbra, com data de 1477. Foi apeado para ser applicado nas
obras novas do Paço do Bispo. Já citámos o tecto da capella do Paço Real de
Cintra ; ha outro idêntico na capella do solar dos Duques de Bragança em Villa
Viçosa. Ha obra de alfarje em quasí todas as egrejas e capellas semeadas pelas
duas vertentes da Serra da Estrella (valles do Mondego e do Zêzere). A abun-
dância de boa madeira de castanho na dita região, outr^ora, favoreceu alli
a arte do carpinteiro-decorador.
CORO DA IGREJA DA MADRE DE DEUS (XABREGAf)
Arte decorativa portuguesa
197
impõe-se. Por quasi todas as freguesias da Biira,
desde os pequenos templos da primeira e segunda
metade do século xvii e principio do século xviii; j
desde a laçaria mais simples, schema de du^is /j
ou tres estrellas, formada de polygonos
enlaçados ou sobrepostos e armados
sobre outros tantos pares de tirantes
(réguas) parallelos, até á deslumbrante
armação pseudo-gothica de 171 1 S do
antigo Palácio dos Peixotos-Padilhas
em Lamego 2, temos uma serie ininter-
rupta de obras de arte que documen-
tam de um modo brilhante, surprehen-
dente a vitalidade da tradição mosarabe
em Portugal, o vigor ingenito de um
officio privilegiado, a tenacidade, o me-
thodo, a virtude em summa, de um en-
sino que resiste a todas as influencias
das modas exóticas importadas. O car-
pinteiro português quis ser e foi sem-
pre até meado do século xviii (a 2.* edi-
ção do Arenas o prova) fiel depositário,
honestissimo obreiro de uma arte an-
cestral, digna de figurar ao lado e em
concorrência com os primeiros modelos
estrangeiros.
Note-se que a par d'esse lavor mosarabe na madeira corre
parallelo o lavor da Renascença. Pondere-se que as novas formas
da arte antiga renascida foram familiares ao carpinteiro-cons-
NA MADRE DE DEUS
> A data está no pórtico da entrada, sob o brasão de armas.
2 Por esta obra de talha, posta num palácio que ostenta no brasão da en-
trada a data 171 1, offereceu certo súbdito inglês, que foi lá levado por um fidalgo
português, a quantia de tres contos de réis. É um prodígio de execução e, o que
é raro ao mesmo tempo, um primor de bom gosto, com eminente eflfeito deco-
rativo, com uma sciencia^ uma arte tão segura, tão bem ponderada na gradua-
ção do relevo que denota um mestre perfeito.
Está na cor natural do castanho, fosca, numa tonalidade quente, harmo-
niosa e foi restaurado com muito critério, por ordem da Direcção do Banco, por
j Qg Arte decorativa portuguesa
tructor; mas, por mais bellos que pareçam esses productos assi-
milados da arte italiana, não sofifrem comparação com o almocá-
rabe mourisco. Seria fácil provar pelo mobiliário fixo : cadeiraes,
arcazes, armários e caixas de órgão, retábulos de altares e púl-
pitos, gradeamentos e cancellas, guarda-ventos e confissionarios —
lavores que se apresentam muitas vezes datados, que elle carpin-
teiro-constructor riscou para o seu collega, o entalhador, primores
da arte da Renascença; mas tudo isso fizeram igualmente bem
artífices de outras nações — o alfarje só o temos nós e a Hes-
panha ".
Não acabaria com este capitulo tão original da arte deco-
rativa portuguesa, se a minha attenção não fosse solicitada por
duas variantes da obra de madeira: a talha combinada com a
pintura, e a talha combinada com a obra de torno. Tratemos da
primeira.
São os revestimentos das abobadas formando caixotões, em
que a moldura é talha, ás vezes riquissima, o fundo pintura his-
tórica ou allegorica, sempre variada. O pintor neste caso é mais
um scenographo que aspira a produzir um efifeito decorativo, a
distancia, a instruir como num livro aberto; ao passo que o seu
collega ornamenta os retábulos pintados dos altares com mais
um artista popular de Lamego, que sem cultura, sem escola, executa esponta-
neamente o mesmo lavor hoje em dia ! Quem tal obra fez inventou uma planta
geral e risco todo mosarabe, baseada sobre dez polygonos hexagonaes de
formas muito alongadas que produzem o singularíssimo effeito de um artezoado
de abobada gothica, estrellada, desenhado sobre as faces internas de uma py-
ramide hexagonal truncada, que forma chapéu sobre a sala. O recinto deverá
ter 10 a 12 metros quadrados. Outro aposento menor, contíguo, apresenta ou-
tro tecto também artístico, mas mais simples. Em Viseu, na Guarda, em Bra-
gança, em Amarante, em Coimbra, Braga, Tagilde (Guimarães), etc, vi também
exemplares notáveis, mas o de Lamego não tem par, no Reino ! É um traçado
gothico em 1711 !
» É mosarabe e em parte alfarje, mas com variante sensível na technica, o
gradeamento das varandas, com adufas, rotulas^ etc. As adufas da região de
Trás-os-Montes são muito notáveis (Villa Real, Mirandella, Murça, Bragança,
etc). Ha até typos de frontarias inteiras, gradeadas em Braga, Guimarães; não
havia outrora mirante de convento que não tivesse os elegantes gradeamentos
no Norte do país, os quaes correspondem aos gradeamentos de tijolo ornamental
àjour, nas casas religiosas da Estremadura e do Alemtejo.
Arte decorativa portuguesa Iqq
cuidado, com os últimos primores do pincel. Todos os templos do
meado do século xvii em deante apresentam em Portugal essa
obra realizada com o auxilio de duas artes.
Não é combinação nova, a composição da obra de talha com
a obra de torno, mas é engenhosa. As camas de lavores fusifor-
mes, de columnas torcidas, coroadas de bilros, são puramente
obra de torneiro; o entalhador raras vezes intervém. Ha ahi
muita applicação de desenhos e padrões do chamado estylo indo-
português, mal definido ainda; como é sem duvida indo-português
o lavor acharoado (vermelho e ouro, ou preto e ouro *) com mo-
tivos chineses, que teve immensa voga no reinado de D. João V»
aypos: órgão da Capella da Universidade e a própria Biblioteca,
ahi mesmo). Mas são de muito mérito alguns exemplares do mo-
biliário nacional em que o entalhador e o torneiro se combinaram
harmonicamente. Um púlpito de i58o-i6oo, na egreja de Santa
Maria de Almacave (Lamego), é a este respeito, uma obra
prima.
O lavor de tremidos^ de que tanto se tem abusado nas imita-
ções modernas da obra antiga, desfiguradas ainda em cima com
ferragens, de fancaria, não tem importância, nem valor quando
applicado, sem outro elemento decorativo, assim como a obra de
torno só, isolada, cansa e fatiga com o seu aspecto pesado. E
preciso variar, combinar esses diflferentes processos technicos,
com o alto e baixo relevo, as molduras de variadas grossuras e
perfis; attender ao justo equilibrio das superfícies lisas e lavradas;
fazer intervir a ornamentação dos embutidos a marfim, das ma-
deiras finas, a uma e mais cores (intarsia)^ as applicações do
mosaico chamado florentino (mármores de cores), etc. Na obra
moderna do coiro lavrado teem os nossos artifices attingido, ás
vezes, os primores dos mestres antigos. Ha, comtudo, muito exa-
gero na technica.
Se a talha puramente decorativa já era uma especialidade em
que se executaram verdadeiros prodigios de 1600-1700, o azulejo
decorativo — que chamaremos de tapete, o tecido traduzido no
barro, sob mil padrões, ou o quadro sacro e allegorico do agiolo-
> Ou então: verde, preto e ouro com realce branco (S. João de Tarouca).
200
Arte decorativa portuguesa
gio nacional, assumiu proporções que o tornam uma manifestação
única. São a gloria da nação portuguesa, que nenhuma outra lhe
pode disputar nos séculos xvn e xviii, .quaesquer que sejam as
condições em que a critica
apresente o problema a jul-
gamento. Comparem os nos-
sos melhores espécimes com
as decorações mais aprimo-
radas que as nações cultas —
começando pela grande e
fecunda mestra, a Itália —
inventaram para a pintura
a fresco, e a victoria será
nossa. Ahi, no azulejo de
Évora, de Beja e de Estre-
moz, de Lisboa e do Porto,
de Alcobaça e de Coimbra,
de Refojos do Lima, de
S. João de Tarouca, de W-
seu e de Lamego, de Gui-
marães e de Braga, de
Vianna e de Barcellos —
citamos ao acaso, porque
seria preciso contar todas
as grandes cidades e todas
as villas, as mais obscuras
e recônditas aldeias, todas
as quintas e solares, as her-
dades, capellas e cruzeiros
mais modestos ! — tudo e
todos, do Norte a Sul, da
raia de Espanha até ás ro-
chas escarpadas do Atlân-
tico, dos pincaros do Minho aos promontórios do Algarve, tudo
proclama ao mundo que houve um impulso artístico irresistível
no povo português, comparável nos seus resultados ás mais bellas
manifestações da grande arte.
O azulejo foi a imitação de um quadro, ou a copia de um te-
cido, substituiu um e outro, ou ambos ao mesmo tempo, quando
Azulejos das paredes e decoração do lecio
Arte decorativa portuguesa
201
se apresentou como o mais beilo panno de raz, com todos os ca-
racteres da grande decoração mural.
Conservou-nos a imagem da vida portuguesa, fielmente, todo
o encanto do lar, do nosso interior, a poesia da nossa vida mari-
tima, as aventuras da guerra, as tragedias do mar, os jogos da
infância, os cuidados e as alegrias do campo, os primores da corte,
o idillio amoroso, a lenda dos santos, o milagre das romarias, as
sortes das touradas, o sabor do conto popular. Se quereis estudar
as artes decorativas — ahi as tendes no mais solido e seguro
documento, na linguagem cerâ-
mica, como num livro inexgota-
vel e . . . como se fosse pouco,
o que o próprio livro, impresso,
produziu, o que elle soube ins-
pirar.
Já atrás alludimos ao livro
de imagens — o termo é tradu-
zido da expressão : livre à figii-
res, tão conhecido dos verdadei-
ros bibliophilos.
Parece, pelo silencio dos nos-
sos eruditos, que tal espécie não
existiu entre nós, ou foi indiffe-
rente para os destinos, para a
historia das nossas artes deco-
rativas. Puro engano! Desde o
sec. XV, desde os incunabulos,
desde a Chronica do Mundo, de
Hartmann Schedel, com as in-
numeras illustrações (cerca de
2:000 1) de Wohlgemut (mestre
de Diirer ) e de sua escola ; desde
a encyclopedia illustrada que correu mundo nos séculos xv e xvi
em numerosas edições, sob o titulo Margarita philosophia' ; desde
esses pesados in-folios e in-quartos, até os minúsculos volumes
que os Quilhard, os Debrié e os Bartolozzi illustraram, para os
nossos poetas da Arcádia e para as almas devotas dos outeiros
freiraticos, até ás novenas impressas e aos livrinhos de missa de
uma Theresa Angélica da Silva, Princesa Real que escondeu o seu
TALHA GRANDE DA FABRICA DO RATO
202 ^^^ decorativa portuguesa
fino buril sob o veu do anonymo, houve sempre inspirações para
a Arte decorativa, dentro do dominio da Imprensa ' .
Não é possivel no limitado espaço de que disponho (e que mal
chegaria para fazer bem a historia documentada de um só ramo
da arte decorativa) dar uma relação aproximada d'esses livros de
figuras, onde os gravadores-decoradores nacionaes (portugueses
e espanhoes) deixaram archivadas as suajs pièces d'oi^emeitiSy suas
gravuras decorativas.' Esses maitres ornemanistes da peninsula
foram por mim estudados cuidadosamente desde 1877. Comecei
nos depósitos das Bibliotecas reunidas das Necessidades e da
Ajuda, ainda na gerência de Alexandre Herculano, que me facul-
tou hospitaleiramente os seus aposentos de bibliothecario, junto
ao palácio da Ajuda. Explorei depois esse riquissimo thesouro
durante longos annos, como se fosse a minha própria Biblioteca,
porque a confiança que em mim depositava o primeiro empre-
gado, 2.® official Rodrigo Vicente de Almeida, aliás rigoroso
no cumprimento das suas funcções, como todos sabem, não
tinha limites.
Estes estudos conduziram naturalmente ao exame da Historia
da gravura em madeira e cobre portuguesa e da lithographia na-
cional, á organização de uma coUecção que reputo única, no Reino,
e á colleccionação dos livres à figures, portugueses. Em publi-
cações successivas, desde 1877, tenho chamado a attenção dos
amadores sobre o assunto que constitue verdadeiramente a docu-
mentação mais autentica da historia dos mestres decoradores
(maitres-oiyiemanistes) em Portugal, nacionaes e estrangeiros,
porque estes últimos prestaram-nos grandes, incontestáveis serv-i-
ços. Bastará recordar os nomes que figuram acima no texto.
Não deve perder-se isto nunca de vista. Primeiro os allemães e
os franceses nos incunabulos (séculos xv e xvi) ; depois esses mes-
mos, os flamengos puros e os flamengos-hispanizados (dominio de
Espanha em Flandres) durante todo o século xvii (Pedro Perret,
I Os paragraphos que vão ler-se em seguida são extrahidos de dois capítu-
los extensos de um volume, note-se bem (lllustraçao artística do livro nos sé-
culos xv-xvm sob, o ponto de vista decorativo; e de outro volume: Historia
da gravura em madeira e em cobre, em Portugal), iniciados na Ajuda, em i877«.
Arte decorativa portuguesa 2o3
Noort, Heylan, Vilia Franca, Schorquens, etc), a que vieram jun-
tar-se os ingleses (Biling, o nosso Belingue, Dudley), guiaram os
mais notáveis gravadores nacionaes, com o esplendido Agostinho
Soares — aliás Floriano — á frente.
Os serviços de celebres gravadores franceses: Rochefort,
Picart, Quillard, Le Bouteux, os Debrié são menos ignorados.
As publicações da Academia Real da Historia que hombreiam,
sob o ponto de vista typographico, com as mais perfeitas da
França e Itália no século xviii; os primores da Officina Real Syl-
viana e da Officina Real da Musica de Fernandes Gayo são um
encanto, por exemplo na obra: Uoannes Portugalliae reges ad
vipum expressi, Calamo a P. Emanuele Monteyro; Coelo a Guil.®
Franc.® Laur.® Debrie. Parisino Régio Calcographo. Ulyssipone.
Anno ciD idcc xlii foi».
Pode rivalizar com essa obra a seguinte que até a pre-
cedeu :
Ultimas acções do Duque (de Cadaval) D. Nuno, por seu filho
D. Jayme de Mello. Lisboa, lySo, na Officina da Musica, in-fl. gr.
com retrato e 28 estampas, alem de grande abundância de
vinhetas.
Os artistas que figuram no precioso volume são: Quilhard
(pintor) e Harrewin (gravador). É uma das publicações mais
esplendidas que conhecemos da época de D. João V, que certa-
mente não foi avara em magnificências typographicas.
Finalmente : ao terminar o século xviii o celebre Bartolozzi e a
sua escola evocaram a arte elegante, decorativa do Império e o estilo
de Luís XVI, o qual precedeu o gosto da era de Napoleão I e foi
ainda o herdeiro d'ella e das modas da grande Revolução até —
cerca de i83o. A escola portuguesa que se criou á volta de Bar-
tolozzi e na celebre officina do Arco do Cego, aperfeiçoando-sc
em Roma, legou-nos alguns livros deliciosos, mas de mérito des-
igual, porque no mesmo volume trabalharam ás vezes buris des-
iguaes. {Noites Josephinas, de Mirtilo, Lisboa, 1790). Seria preciso
citar uma ou duas dúzias de volumes. De entre a nossa collecção
escolhida lembraremos somente os tomos do Theatro de Ma-
nuel de Figueiredo, os dois grandes libretos illustrados da Opera,
chamada do Tejo (reinado ainda de D. José). Deveríamos ter
começado com o rarissimo Manual de Orações para assistir ao
Sacrijicio da Missa, composto e aberto ao buril por Theresa An-
204. ^^^^ decorativa portuguesa
gelica da Silva » (Lisboa, 1732), volumezinho que é quasi um
mysterio, um enigma da Corte de D. João V. Depois, seguir pelos
livros illustrados de festas e exéquias regias, nos reinados de
D. Pedro II, D. João V e D. José; passar em seguida ás obras
de calUgraphia — ás t Artes de ler e escrever» do século xviii, pri-
morosamente illustradas, delicia do bibliophilo em qualquer pais!
Finalmente, para sermos methodicos, teriamos como remate os
poetas da Arcádia e suas obras profusamente illustradas, fina-
mente commentadas ao buril, invenções ás vezes de mediocres
poetas (não offendemos com isto a ingénua memoria de Manuel
de Figueiredo) servidos por gravadores eméritos ^, Quasi lhes
invejamos a sorte, hoje, no século dos processos technicos requin-
tados, em que uma graphia prodigiosa nos deslumbra, mas não faz
» Sobre a autora-gravadora e o seu raríssimo livrinho, todo gravado a buril
(i58 pag. em 32."; creio que o meu exemplar é único, presentemente) vide
Innocencio da Silva, Diccionario bibliographico, vol. vii, pag. 3 16. O meu
exemplar tem uma historia muito curiosa. Foi da Infanta a Sr.* D. Maria Anna,
filha de El-Rei D. José, que nasceu a 7 de outubro de 1786 e falleceu no Rio
de Janeiro a 16 de maio de 181 3. Deixou nome, como artista amadora muito
distincta nas artes do desenho e da musica.
2 Eis as datas de alguns livros com gravuras decorativas de grande mérito,
datas tiradas dos próprios originaes, que possuimos : Albergaria, Tropheos Lusi-
tanos, Lisboa, iò3i ; Methodo lusitanico de desenhar as fortificações , Lisboa,
1Ó80, por Serrão Pimentel; O engenheiro portugue^, Lisboa, 1729, por Azevedo
Fortes, em 2 vol.; Exame de bombeiros, (artilharia), Madrid, 1748, por Pinto
Alpoyra; Exame de artilheiros, pelo mesmo, 1744; Divertimentos militares,
1762, anonymo; etc. As relações de exéquias, casamentos e outras testas come-
çam com as do embarque da futura Rainha da Grã-Bretanha D. Catharina, filha
de D. João IV, em 1661, continuam com a pompa fúnebre da Rainha D. Sofia
Isabel de Neuburgo, em 1699 (2.* esposa de D. Pedro II) e vão até D. João VI.
Os tratados de desenho portugueses, muito bem illustrados no século xviii, foram
citados por mim, já em 1879 em obra impressa nesse anno. Conteem muitas gra-
vuras de grande interesse. Finalmente, os tratados de calligraphia são, alem
dos de Barata (século xvi, contemporâneo de Camões), os bellissimos volumes
de Manuel Andrade de Figueiredo, s. d. 1722 ; Ventura da Silva, i8o3 ; as Regras
methodicas do mesmo autor, 1819. Em torno das obras do poeta Figueiredo ha
uma multidão de gravadores portugueses de grande mérito, como os ha nas
obras de Luis Rafael Soyé (Mirtilo). Só as Noites Josephinas, com as suas 20
gravuras representam 10 gravadores; O Sonho, do mesmo autor tem 16 gravu-
ras e 1 retrato : os gravadores são Debrié, Le Bouteux, e A. Quillard ; O Elo-
Arte decorativa portuguesa 2o5
olvidar o amoroso instincto artístico que guiou vossa mão, a vós,
alumnos académicos do Arco do Cego, pensionistas da Escola
Portuguesa de Roma, hoje olvidada!
Numa arte rara, como é a da gravura em madeira e em co-
bre, e como foi depois a lithographia, houve em Portugal sempre,
um pincel, um buril, um crayon fecundo, que ainda hoje admira-
mos no segredo de uma escolhida livraria, á luz de um velho
candieiro português, com a saudade indizivel do passado e a es-
perança no porvir:
Co*o tempo o prado seco reverdece,
Co'o tempo um louro morre, outro florece.
Porto, março de 1908.
Joaquim de Vasconcellos.
DESCRIPÇÂO DAS ESTAMPAS CONTIDAS NO ARTIGO PRECEDENTE
Ourivesaria. — Peças de uso exclusivamente popular. Technica da fili-
grana tradicional.
Pertencem a uma collecção de photographias que mandei executar de
1879-1880 e deviam enriquecer uma obra do calligrapho Godinho sobre os
trages populares das províncias portuguesas. Appareceu apenas um fascículo.
giOf da Sereníssima Senhora D. Maria Barbara, Princesa de Portugal e Rainha
de Espanha, por Manuel de Figueiredo, Lisboa, 1804, é um primor de gravura
e desenho em que collaboraram Bartolozzi, o celebre D. A. de Sequeira e ou-
tros ; e pára concluir vejam-se as gravuras de José Teixeira Barreto nos Sckerp
poetici, de Rossi; existe um exemplar na Biblioteca Real da Ajuda, onde
abundam os livros dos Maitres-ornemanistes, a começar na Hypnerotomachia
de Polyphilo (Veneza, 1499) que ali descobrimos em 1877, exemplar perfeitís-
simo, hors ligne.
2o6 '^'■'^ decorativa portuguesa
Havia acceitado a redacção de um capitulo sobre a arte popular e sobre as
industrias tradicionaes das nossas aldeias. Outros redactores eram Theophilo
Braga e Ramalho Ortigão.
N." 7. Grande grilhão com esirella pendente (Cruz de Malta), ou em logar
d'esta, o grande coração, que está na parte superior.
N.** 8. Brincos lavrados em relevo, ocos, batidos sobre forma ; simulam
cachos de uvas.
N.*" 9 e 10. Argolas lavradas em relevo; mesma technica; uma d'ellas está
de frente, a outra em perfil.
N.«> II. Fio de contas torcidas.
N.» 12. V\o de contas lizas.
N." i3. Grilhão mais grosso que o n.<» 7, com medalha pendente, e ao cen-
tro um Senhor pregado na cruz ; dos lados a Virgem e S. João ; o fiindo era
folheta metallica luzente, cor de purpura.
A parte superior, espécie de sobreceu tinha ao centro Nossa Senhora da
Conceição e rematava com uma coroa real.
A technica d*esta peça, já difficil de encontrar em 1879, apresenta o lavor
de piorrinhaSy variante preciosa da filigrana popular, que tem ido desappare-
cendo das peças de ouro e de prata, pois é muito mais diíRcultoso do que a
filigrana de fio tirado, puramente.
N." 14. Crucifixo; o resplandor esta trabalhado em piorrinhas.
N." i5. Argolas massiças de filigrana, com beira lisa.
N** 16. Brincos de filigrana, com argola lisa.
N.» 17. Broche usado ainda em 1879, indistinctamente por homens e mu-
lheres.
N." 18. Borboleta, de filigrana (também as vi antes de 1879, de folha de
ouro, orlada só de filigrana) que se usava pendente de um cordão fino. A bor-
boleta é apenas, na forma, um coração invertido ; e, como tal, tem significação
symbolica.
Tecidos. — (Industria domestica). — Arte popular. Urros (concelho de
Moncorvo.
Technica : Relativamente perfeita, num tear muito rude, cujo typo authen-
tico pode ver-se no Museu Industrial e Commercial do Porto. Urdidura de
linho grosso com trama de lã, puramente.
Ha exemplares muito raros, em que sobre a urdidura de linho se estabe-
lece a trama de seda ordinária amarella (barbilho)^ espécie de seda frouxa.
O tinto é formado com cores vegetaes exclusivamente (neste caso, azul
escuro) e resiste muito á acção dos raios solares.
Polychromia adoptada : vermelho, verde, amarello, alem do branco e azul.
Estylo : Tradição sem duvida oriental, como tenho verificado escrupulosa-
mente. No seu género, são modelos admiráveis. Como desenho representam
verdadeiros improvisos, pois as tecedeiras de Urros não teem nenhum ensino
de arte.
Rendas. — (Industria caseira). — Arte popular. Peniche.
Technica : Excellente, feita com bilros e linha nacional. Typos de Peniche.
Arie decorativa portuguesa 207
Pertencem aos annos de 1880-1 885, antes da creação da Escola de desenho
industrial D. Maria Pia.
Amostras apenas de uma grande coUecção de rendas nacionaes de bilro,
que representa uns 600 padrões (Vianna do Castello, Villa do Conde, Peniche,
Setúbal, etc), cedidos pelo autor ao Estado, e coUeccionados de 1876-1889.
A grande travesseira (o,G8xo,56) pode considerar-se a obra mais per-
feita que se fabricava em Peniche cerca de 1880. Valor: i3í!y55oo réis. Pro-
priedade do Sr. Dr. Pedro Augusto Ferreira, Abbade aposentado de Mira-
gaia (Porto).
Não ha renda de agulha em Portugal, na industria popular.
Estylo: A renda de Peniche foi influenciada notavelmente pelos padrões
irlandeses (guipure)\ os padrões de estylo francês (século xviii) são mais raros;
são apenas o primeiro e segundo da estampa inferior.
Obra de ooupo lavrado. — Esta industria de arte resurgiu, moderna-
mente, no Norte do país ha cerca de vinte annos; no Porto, principalmente,
trabalhavam e trabalham ainda alguns artistas de muito mérito. Comtudo for-
çam, não poucas vezes, a technica, e prejudicam o effeito decorativo.
A casa Silva Rocha^ do Porto, vendeu essa obra ao Museu Industrial e Com-
mercial do Porto num anno (1889) em que apresentou umas malas de grande
lavor em estylo manuelino, de gosto duvidoso por vezes, com scenas mariti-
mas, etc. Houve até quem se deleitasse, encommendando e pagando retratos
em couro, fingindo baixos relevos. . .
As grandes malas mandadas por Silva Rocha á ultima Exposição de Pa-
ris (1900), ostentando as maiores âorescencias manoelinas, venderam-se só em
pequena parte. A maioria foi para o fundo do mar, com o celebre vapor Saint-
Jacques, que reconduzia os productos portugueses, não vendidos.
Obra de moealoo. — É do primeiro terço do século xvii, a obra de
embrechado, mais antiga, do Convento do Bussaco. Como lavor, é sobre-
modo característico e muito nacional. O effeito é magnifico, com recursos
minimos.
Modernamente tem esta ornamentação sido applicada em grande escala
nos passeios de Lisboa (Avenida da Liberdade), com bom resultado; e maior
sería, se o desenho dos padrões escolhidos fosse mais artistico.
Ceramioa. — Azulejo polychromico, simulando tapete.
Escolhi o revestimento da sachristia da Sé de Vizeu, porque neste recinto
se conbina, de um modo admirável, a pintura de arabesco, decorativa, sobre
madeira de bordo (fim do século xvi) com a decoração cerâmica e com o azu-
lejo puramente ornamental do primeiro terço do século xvii.
O effeito é prestigioso, quando se considera a ríqueza da grande pintura
em tábua, da Escola do Grão- Vasco, onde brilham admiráveis estofos, em
parte ainda guardados nos magnificos arcazes, que não são o menor encanto
doesse discreto e harmónico aposento !
Compare-se esta obra com a da sachristia monumental da igreja de
Santa Cruz de Coimbra (1622), em que rivalisa a escultura decorativa da
2o8 ^^^ decorativa portuguesa
abobada, em pedra de Ançã (um primor), com o azulejo polychromico de
tapete nas paredes, com a obra de talha do mobiliário e com a suave harmo-
nia das tábuas do pintor Velascus.
Comparem-se esses dois aspectos com o espectaculoso apparato scenico,
theatral da sachristia da Sé do Porto I
Peça grande, decorativa, nacional, inédita, da antiga Fabrica Real do Rato
(ultimo terço do século xviii), a maior e mais importante que ella produziu.
É uma talha de faiança decorada sobre fundo branco, com flores, estylo
oriental, com as cores: azul, verde, amarello e roxo. Marca : FR, Fabrica Real,
sobre monogramma de Thomaíj; Brunetti. Altura: o",94Xo^,535 de diâmetro.
Pertenceu ao Marquês de Pombal e estava em 1886 ainda na Quinta de Oei-
ras. Foi arrematada no leilão do Conde de Mozer por 82^000 réis e pertencia
em 1895 ao Sr. Carlos Ribeiro Ferreira, de Lisboa. (Communicação de José
Queiroz).
J. DE V.
BREVE NOTICIA
ARCHITECTURA EM PORTUGAL
UANDO no meado do século xii Portugal se separou da
monarchia leonesa, já na Europa se definira organica-
mente o typo de architectura conhecida no nosso tempo
sob a designação de architectura românica. Caracteri-
zada nos seus grandes monumentos pelo emprego systematico
da abobada, da qual deduz os elementos da sua estructura geral,
foi assim denominada por Caumont, em i825, pois este archeologo
a considerou como dimanando da architectura clássica por pro-
cesso análogo ao que fez derivar do latim as linguas chamadas
românicas.
Começando a organizar-se depois do anno looo, talvez ao sul
da PYança onde se conservara a tradição da abobada antiga,
facilmente se espalhou por toda a Europa christã na sua grande
zona Occidental, sendo a peninsula hispânica a região onde mais
rapidamente penetrou, mercê da influencia clunysiana e do grande
numero de conventos pela famosa ordem monástica estabelecidos
áquem dos Pyrineus.
A Espanha christã comprehendia então uma grande faixa que
ia do Tejo ao Ebro e cuja orla oscillava segundo os azares da
reconquista, soffrendo por vezes entalhes furiosos da gente sarra-
cena, os quaes, posto que ephemeros, bastavam para a destrui-
2IO
A architectura cm Portugal
ção radical dos monumentos recentemente construídos. É por isso
que da phase pre-romanica não ha, pelo menos na região do no-
roeste peninsular, monumento digno de nota, e forçoso se torna
ir bus-
car a urigejn
dos exisicn-
tes^ apesar ái\s .sluls
particularidades I( ícaes,
ás escolas de arte que na
Europa criaram o novo
typo architectonico, entre nós implantado em virtude do facto
religioso.
No periodo indeciso de formação da nacionalidade portuguesa,
dado que as formas estheticas se manifestam independentemente
SÉ VELHA DE COIMBRA
A architectura em Portugal
21 I
das modificações politicas, o conjunto de monumentos sobre que
tem de recair a observação do archeologo, existentes ainda hoje
na zona de Entre-Douro-e-Minho, pertencem ao grupo que pode-
TRAVANCA — Interior da igreja conventual
mos denominar gallecio-português, pois accusam na estructura e
na ornamentaria um reticulo de influencias estendido áquellas
duas provincias, ainda apenas esboçado, mas cuja genealogia
se fará com maior clareza quando a documentação plástica se
CLAUSTRO DE CELLAS
212
A architectitra em Portugal
TORRE DA SÈ DE ÉVORA
completar com a informação histórica.
Não cabe nas dez ou doze paginas d'este
artigo a investigação de taes filiações
nem o estudo da acção que as grandes
cathedraes tiveram sobre os pequenos
monumentos: basta que assinalemos o
facto para mais tarde o justificarmos
em maior espaço e com mais vasto in-
forme.
A primeira phase da architectura
portuguesa corresponde, pois, ao româ-
nico, e como esta expressão constructiva
durou na Europa o curto espaço de
i5o annos, os monumentos da nova
nacionalidade nasceram quando lá fora
começava a desenhar-se a cruz de ogiva
e a esboçarem-se os primeiros traços da architectura gothica,—
facto este que circunscreve o românico português a um período
, de meio século. Effectiva-
mente, a cruz de ogiva, ou
artesoado gothico, apparece
com grande precocidade em
monumentos do começo da
monarchia.
A architectura românica
portuguesa, na sua forma
integral, isto é, em edifícios
de três naves abobadadas,
reduzia-se ás Sés de Bra-
ga', Porto, Lamego, Goim-
I Em Braga, Porto, Travanca,
Pombeiro, Lamego e Lisboa, já
não existem as abobadas româ-
nicas; no entanto, ou nunca
existissem ou fossem derruídas, é
certo que todos os seus elemen-
tos orgânicos tendem á existen-
sÉ DE ÉVORA cía d'aquella coberturà.
A architectura em Portugal
2l3
bra, Lisboa e Evora, e ás igrejas conventuaes de Travanca e de
Pombeiro. Os numerosissimos edifícios d'este estilo, mas mais
modestos, disseminados pelo país, teem cobertura de madeira, e
são em geral de uma só nave. A sua ornamentação obedece ás
fontes de inspiração que Gourajod lhes assinala com lúcido crité-
rio, e que são as influencias
clássicas, b} santinas, gaule-
sas e irlandesas, chegando
as três ultimas, pela sua
preponderância, a expulsar
completamente a decoração
greco-romana. Acrescente-
mos os motivos locaes que
o alvenel da região ingenua-
mente applicava, por tradi-
ção ou por gosto, facto de
resto commum a todos os
períodos da historia da Ar-
te. A fauna e a flora são
orientaes, trazidas pela cor-
rente b} santina aos portos
do Mediterrâneo ou pelos
povos septentrionaes atra-
vés da zona das caravanas ;
a ornamentação geométrica
reproduz os themas dos
objectos de adorno dos po-
vos nórdicos, cinturões, pu-
nhos de espadas, fibulas,
themas caldeados pelos illu-
ministas irlandeses, e mes-
clados com motivos gallo-romanos, de cujo hybridismo irrompe
ás vezes a linha simples da sereia hellenica. Estes ornatos reves-
tem capiteis e archivoltas, modilhões e gárgulas, e circundam
por vezes com seu macabro enredamento o tympano dos portaes
onde se agrupam os elementos ingénuos do symbolismo christão.
O luxo decorativo dos edifícios românicos comprehende, alem
do portal, fortemente escavado na frontaria, com as curvas de-
crescentes das archivoltas assentes em duas renques de colum-
IGREJA DA GBACA EM SANTARFM
214
A architectura em Portugal
nelos, a diversidade dos capiteis, de plástica rude no duro granito
do norte e do Alemtejo, mais delicada na região do calcareo, a
ornamentação fruste dos tympanos, e alguns informes e raros
exemplares de escultura em vulto.
Começando este simples relato pela zona que no despertar da
nacionalidade devia ter soffrido a influencia dos sanctuarios galle-
gos e leoneses, teríamos naturalmente a citar a Sé de Braga, se
A BATALHA
as successivas mutilações lhe não tivessem reduzido os elementos
românicos a alguns vestigios da porta principal, á porta sul, des-
locada do primitivo logar, e a alguns modilhões e gárgulas. Mas
em volta das reliquias da Cathedral bracarense, nos concelhos de
Guimarães, Povoa, Villa do Conde, Barcellos, Santo Tirso, ha
toda uma colmeia de pequenos edifícios românicos, quer de uma
só nave, de abside ora rectangular, ora semi-circular com abo-
bada em quarto de esfera ; quer de três naves, com ou sem tran-
septo. A sua disseminação faz-se depois em linhas divergentes,
no sentido da região portucalense (Aguas-Santas, Cedofeita), para
nordeste até Chaves (Granjinha, Outeiro-Sêco), para Bragança
A architectura em Portugal
2l5
(Castro de Avellãs), para o Douro (Cette, Paços de Ferreira),
para sueste até Lamego, subindo depois até á Serra da Estrella.
Outra zona de influencia comprehende Coimbra como centro,
Thomar, Leiria (igreja de S. Pedro), Santarém (Alporão), Lis-
boa e Evora.
Das igrejas que constituem aquelle primeiro agrupamento, uma
das mais curiosas a citar é a conventual da Travanca, perto de
CASTELLO DC
I.OaiA
Proiccto de restauração do Sr. Korrodi
Amarante, de tres naves talvez primitivamente abobadadas, com
arcos quebrados de saimeis levemente inflectidos, particularidade
que os aproxima dos arcos mouriscos em ferradura. A fachada
accusa as tres naves interiores, a do meio mais alta com janellas
lateraes (clerestory)^ ligada por uma espécie de botaréo a uma
torre de vigia em cujo portal se repete o arco quebrado, de duas
archivoltas estranhamente decoradas com animaes que se perse-
guem e se devoram, cingindo o tympano onde o cordeiro pascal
segura a cruz numa das patas. Alem doesta igreja, e também de
tres naves, posto que sem abobadas, temos a citar a interessan-
tíssima de S. Pedro de Rates, de bello portal com tympano escul-
2l6
A architeciura em Portugal
pido exterior e interiormente, archivoltas historiadas, capiteis de
variadissimos motivos e um tramo do lado da epistola onde appa-
rece o artesoado gothico como um prenuncio da passagem ao
typo definitivo da arthitectura medieval.
Passando pela Sé do Porto, onde as successivas restaurações
alteraram a primitiva traça, temos a descrever, ainda que succin-
tamente, um dos mais bellos e nobres monumentos do românico
peninsular, não só pela admirável ryihmica das suas linhas, pela
sua soberana estructura orgânica, mas pelo seu magnifico estado
de conservação, levado ao primitivo aspecto por uma restauração
intelligente e amoravel : a Sé Velha de Coimbra. É um edifício
de planta crucial como os seus congéneres, de três naves todas
abobadadas, a central soerguida acima das lateraes, e ornamentada
por uma esbelta galeria de triforio. As três naves terminam por
três absides semi-circulares, correspondendo a do centro á capel-
la-mór, onde se admira um dos mais bellos retábulos de talha go-
thica que existem na peninsula; e as lateraes respectivamente á
capella de S. Pedro, lado da Epistola, e á dos Apóstolos, lado do
Evangelho. A fachada, cujo corpo central avança sobre os late-
raes, demarcando assim a triplice
nave, corôa-se de ameias como uma
torre de menagem e apresenta nas
suas proporções um mixto de força
e de elegância, de sobriedade e de
côr, como raro se encontra em edi-
fícios onde concorram tão simples
elementos ornamentaes. As suas
grandes aberturas historiadas são
o rico portal, thema decorativo fun-
damental do corpo saliente, e a
janella que sobre elle se rasga
em proporções elegantissimas. Nos
corpos lateraes, ao rés-do-chão,
as setteiras, que escassamente
illuminam as naves corresponden-
tes; em cima, ao nivel do trifo-
rio, duas pequenas janellas ge-
minadas e flanqueadas cada qual
por duas arcadas cegas, o que s. joáo de ™omar
A architectura em Portugal
217
põe uma discreta nota de còr na silharia nua dos corpos rein-
trantes.
Caminhando para o sul, temos em Thomar um monumento
antes de caracter bysantino, semelhante a certas capellas italia-
nas e rhenanas do período carolingio: a charola do Convento de
Christo. Igreja dos Templários, a sua construcção obedece a
padrão exótico e consta de um octogono de arcos exalçados,
acima dos quaes se rasgam outras tantas frestas de arcos de três
lóbulos ; do octogono central irrompe uma abobada em berço que
o liga a um octogono circundante, formando este o sobranceiro
períil que domina a cumiada histórica onde se acolheu Gualdim
Paes. S. João do Alporão, em Santarém, é um dos mais vene-
randos monumentos da região do centro; de faseies exterior ro-
mânico, definido na rosácea e no portal de archivoltas em arco
pleno, é já coberta por uma abobada ogival, talvez posterior á
fundação, de nervuras firmadas sobre misulas da mais engenhosa
estructura: troços de cor-
nijas onde pousam os ca-
piteis e que aos ângulos
se embebem na parede á
maneira de trompas. A
capella-mór, semi-circular,
de abobada exalçada e ner-
vada, illumina-se por fres-
tas que se rasgam entre os
columnellos, constituindo
ao fundo uma encantadora
galeria aberta, que prende
esta parte do edificio ao
typo dos baptistérios by-
santinos.
Na região alemtejana
merece especial menção a
Sé de Évora, a qual pelo
emprego quasi systematico
do arco quebrado, tanto
nas suas aberturas como
nas suas abobadas, vem
BATALHA - Poita dus capciíus impcrfoitiis sendo considcrada como
2l8
Á architectura em Portugal
CALDAS DA RAINHA
um monumento gothico. A fachada
tem todo o aspecto grave e robusto
dos edifícios românicos, com duas tor-
res salientes, entre as quaes se lança
um terraço, que constitue, sobre o
portal, uma galilé esteada em cruz de
ogiva.
As torres, com aberturas de meio
ponto e arco quebrado, coroam-se de
lindos coruchéus, o do norte formado
por um simples cone azulejado, o do
sul constituido por cone semelhante
circundado por uma theoria de peque-
nos pináculos, reduzido exemplar do
altaneiro zimbório do lanternim cen-
tral. A porta, á sombra da galilé, en-
riquece-se com o apostolado, massiças figuras de caracter româ-
nico, encostadas aos fustes das columnas, com os disticos e os
gestos da sua funcção evan-
gelizadora. Esculpidas em |^' Hilfinft
mármore, a sua brancura
destaca vigorosamente so-
bre o tom escuro do gra-
nito.
Por cima do terraço ras-
ga-se um Janellão que illu-
mina o coro e a nave
central, dividido por co-
lumnellos em quatro janel-
las geminadas, sustentando
as do meio uma rosácea
simples. Pelas cornijas de
todo o edifício corre uma
linha de ameias do modelo
usado em quasi toda a re-
gião alemtejana.
Interiormente divide-se
em três naves, com a abo-
bada central mais alta, de batalha -Parochia de d. Manuel
A architectura em Portugal
219
arco quebrado, galeria de triforio e clerestory; as abobadas late-
raes são de aresta, do typo denominado em barrete de clérigo;
no cruzeiro eleva-se o esbelto zimbório octogono que se liga ao
plano quadrado dos arcos por meio de trompas. Kste zimbório,
que domina o edifício e a cidade, é o mais bello motivo archi-
tectonico da Sé; coberto de pequenas lagens formando revesti-
mento escamoso, é circundado por uma linha de pináculos tam-
bém octogonos e lembra, no escorço geral, posto que de mais
modesta contextura, a torre dei gallo da cathedral velha de Sala-
manca.
Apesar dos arcos quebrados que constituem as suas aberturas
e geram as suas abobadas, a Sé de Évora é um edifício estructu-
ralmente românico. A existência d^aquelle typo de arco em nada
altera o principio orgânico em que ella assenta, e de transição
para o gothico apresenta ape-
nas um élo : a cruz de ogiva já
citada e que sustenta a abo-
bada da galilé. O seu bello
claustro, esse é francamente
ogival, já construido no sé-
culo XIII ; nos tympanos dos
seus arcos abrem-se rosáceas
com a decoração de cruza-
mentos geométricos tão usa-
dos em muitos exemplares de
azulejos hispano-arabes.
Não é fácil averiguar qual
o edifício português em que
se revela o primeiro emprego
da abobada nervada, caracte-
ristica essencial do gothico,
mas pela sua apparição em
S. Pedro de Rates e na ga-
lilé da Sé eborense, dado que
taes episódios sejam contem-
porâneos da fundação dos res-
pectivos monumentos, vê-se
que bem cedo se espalhou em
Portugal, talvez por processo THOMAR-Porta principal do Con vento de ChriMo
220
A architcctura em Portugal
da disseminação análogo ao que propagou os princípios românicos.
Vemo-la apparecer substituindo o berço de certas absidcs, no
deambulatório da Sé de Lisboa, no claustro da mesma Sé e mais
tarde na capella de Bartholomeu Joannes ; em vários outros claus-
tros como no da Sé de Évora, no monumento de Guimarães, nas
immensas naves e charola da igreja de Alcobaça, um dos pri-
meiros monumentos ogivaes do pais, e em muitos edifícios incom-
pletos na phase anterior aos quaes os architectos applicavam os
principios do novo cânon, quer acabando-os, quer demolindo por
vezes, afím de substitui-las, partes já construídas.
Lançado o novo systema, de tão admiráveis consequências
pela simplicidade e pela lógica dos seus principios, abre-se â ar-
chiteciura uma ampla estrada que os mestres peninsulares logo
trilharam com segurança
crescente, e de que temos
em Portugal um exemplar
já tardio mas integralmente
bello : a igreja de Santa
Maria da Vicloria.
Os prodromos da lucta
que se rematou com o épico
arranque de Aljubarrota, já
haviam dado ao Mestre de
Avis ensejo para a cons-
trucção de um edifício, tam-
bém filho de um voto so-
iemne, e ao qual o Regedor
do Reino queria imprimir
cunho de grandeza, no que
foi trahido pela modéstia
de vistas do architecto :
quero referir-me á igreja
da Senhora da Oliveira,
cm Guimarães. Da primi-
tiva construcção restam
apenas a fachada e os ar-
cos interiores, aqucUa en-
riquecida por um bello
portal, acima do qual se santa cruz de coimbrã
A architectura cm Portugal
221
rasga uma janella fortemente es-
cavada na frontaria, e que cons-
tituiria um originalíssimo* exem-
plar do goihico flammejanle se o
personagem que agora se encon-
tra voltado para o interior da
igreja é com eflfeito Jessé, do
qual devia irromper em maravi-
lhosa dichotomia, pelo vão da
vasta ogiva, a arvore genealógica
da sua descendência.
Mas um anno depois fere-se
Aljubarrota, e do solo ubérrimo
da região extremenha surge como
um hymno guerreiro e mystico,
o mais rico edifício da archi-
KvoRA tectura da Edade Media em Por-
tugal. Visto de longe, na iran-
quillidade da histórica planície, logo surprehende, ao rememo-
rar-se o eschema dos leviathans da architectura nórdica, pelo
predomínio das horizontaes e
como que pela adaptação da
sua solida e aérea membratura
á suavidade acolhedora doestes
países do sul. As suas linhas
não demandam o azul em arro-
jadas fugas de pináculos e agu-
lhas, mas correm com a alada
renda das platíbandas ao longo
dos terraços de ponto quasi
nuUo, e apenas trepam em as-
censão logo detida pelas obli-
quas pouco extensas dos bo-
taréos até á coroação superior.
Nesta sabia e esthetica hori-
zontalidade, o coruchéu da ce-
gonha destaca-se em altura,
mas tão modestamente que a
sua pyramíde, reticulada como
.t>N
^' ^%A
NO VARATOJO
222
A architectura em Portugal
uma asa de insecto, não perturba
a impressão que emana do es-
corço geral do edifício. Um cam-
panário humilde, como se fora o
campanário pobre de uma ermida
da serra, de um só sino em obe-
diência ao rito dominico, põe na
sumptuosidade da ornamentação
flammejanie, uma nota rústica de
simpleza aldeã.
A frontaria, expressão nitida
da planta, accusa a altura das
três naves, a do centro realçada
sobre as coUateraes em propor-
ções de admirável equilibrio, e
separada] exteriormente destas
por dois gigantes cujos pinácu-
los terminam á altura do janellão
central. Ao alto, uma plaiibanda horizontal, vasada em quadrilo-
bulos, lança-se como remate da frontaria entre dois pináculos
MATRIZ DE VIANNA DO ALE.MTEJO
jEKoxYMos — Porta piimipal
A architectura em Portugal
223
mais pequenos, ornamentados de
cogulhos; a silharia do corpo
central é estriada por meio de
filetes verticaes, decoração que
avantaja á vista as proporções da
fachada, dando-lhe assim maior
expressão da altura.
O portal, como no românico
centro convergente da decora-
ção, é povoado de imagens en-
tre os columnellos e ao longo
das archivoltas, e desse profuso
trecho de corte celestial parece
irromper um hossana á figura
do Padre Eterno que no tym-
pano abençoa entre as figuras em
baixo relevo dos quatro Evange-
listas. A janella que sobrepuja
o portal, separada d'este por
uma espécie de varandim, janella tão fina eque vse não podia
obrar com mais subtileza e cuidado em trancinhas de agulha^
PONTA DELGADA
jFRONYMos — Claustro
224
A architectura em Portugal
ou em lavor de cera, ou no espelho de uma viola» como diz
Frei Luís de Sousa, pertence typicamente pela sua ornamentação
flammejante ao gothico terciário. Ao lado direito da fachada, como
uma ampola na simplicidade da planta, segue uma das faces da
capella do Fundador, rematada pelo lanternim octogono onde
outrora se erguia a pyra sepulcral e tão graciosamente amparado
pelos esteios obliquos dos botaréos.
O desdobramento do edifício manifesta-se em toda a sua ma-
gnificência na fachada lateral sul, com os oito tramos onde se
rasgam as grandes janellas, o braço meridional do transepio, a
floresta dos botaréos, e a renda das platibandas que seguem com
delicadeza ao longo das linhas constructivas da enorme fabrica,
que pelo tom da pedra nos dá a impressão de um velho pergami-
nho de evangcliario onde se destacavam outrora as illuminuras
polychromas dos vitraes. No braço sul do transepto, ha ainda a
notar o sabor archaico do portal, que dir-se-hia concebido por
um alvenel em cuja sensibilidade
surgisse, atavicamente, a arte dos
velhos canteiros românicos. Ao
fundo do edifício de D. João I,
continua a linha irregular do tar-
dio appendice denominado aCa-
pellas Imperfeitas».
O interior, de uma imponên-
cia dominadora, com a floresta
gigante dos seus pilares polysti-
los, subindo em linhas arrojadas
até ás nervuras da abobada, pro-
jecta as longas naves envoltas em
vaga claridade, por onde a vista
suavemente segue até á nota mais
viva que cae das janellas absi-
daes. A capella do Fundador
lembra uma vasta tenda de pa-
rada, esteada por um octogono
de arcos afestonados de polylo-
bulos como pelas varas alçadas
de um palio rico, e assim heral-
dicamente cobre o leito mortua-
A éirchitectum em Portu^ctl
225
rio de D. João I que dá a mão leal á honesta inglesa mesmo na
paz da morte ; em volta fazem còro, como pagens funerários, sob
os arcosolios dos seus túmulos, os Ínclitos Infantes, seus Hlhos
e sua gloria.
Á fachada norte do templo encosta-se o claustro real, de
ogivas equiláteras, posteriormente alindado com tympanos no
complicado lavor da arte manuelina. Num dos seus lados, abre-se
a sala do capitulo coberta pela famosa abobada que deu ori-
gem á celebre lenda do architecto Afonso Domingues, cuja effigie
a tradição diz ser a que se vê esculpida a um canto, num arran-
que de nervura.
Se a igreja de Santa Maria da Victoria é uma radiosa e ines-
perada florescência das modestas tentativas da architectura gothica
portuguesa que desde a plenitude do românico vinha ensaiando
os novos principios constructivos, ou se foi integralmente conce-
bida pelo esforço anonymo da associação cosmopolita dos pedrei-
ros-livres, não ha aqui espaço para o discutir. Basta indicar que,
pelo seu estudo directo, a
devemos filiar no ultimo pe-
riodo d^aquella arte, varie-
dade do perpendicular in-
glês, não só pelo seu escorço
geral, mas por innumeros
pormenores orgânicos e de-
corativos característicos das
modificações derradeiras da
arte ogival.
Caminhando para o sul,
depara-se-nos o castello de
Leiria, onde encontramos
vestigios dos três typos de
architectura: civil, militar e
religiosa; — a linha das mu-
ralhas com a torre de me-
nagem, o palácio e a igreja.
Esta, de uma só nave, de en-
trada lateral sob galilé, com
um graciosíssimo abside co-
roado por uma abobada ner-
22Ò
A archiiectura em Portugal
vada de admiráveis linhas ascensionaes, faz derivar as suas
particularidades constructivas das condições locaes da sua erec-
ção: espaço estreito, quasi sobranceiro á escarpa. Em condições
análogas foi levantada por Nunalvares a igreja do Convento do
Carmo em Lisboa, cujas ruinas se erguem no velho morro que
no século xv dominava Valverde. Ao norte do Porto citemos a
histórica igreja de Leça do Bailio de três naves cobertas de ma-
deira; e dentro da cidade a Igreja de S. Francisco; em Villa
Real a igreja de S. Domingos ; em Thomar, a Senhora do Olival ;
em ^'ianna do Alemtejo a interessantissima igreja da fundação de
D. Dinis; a igreja de S. Francisco de Évora, e a Sé de Elvas;
em Santarém temos a esbelta fachada da igreja da Graça, tão
simples, tão pura no sóbrio desdobramento das suas linhas e na
elegância das suas proporções; na Guarda a velha cathedral
começada por D. João I a qual, pela sua dilatada construcção,
soffreu tardiamente a influencia da architectura manuelina.
A decomposição do gothico
começa em Portugal no reinado
de D. João IL Por decomposição
do gothico deve entender-se a
entrada do illogismo decorativo
na architectura, que caracteriza
o ultimo periodo da arte medie-
val, denominado flammejante ou
terciária. Uma das preoccupa-
ções dos architectos doeste pe-
riodo, manifesto symptoma de
esgotamento criador, consistia
em opporem a toda a curva uma
contracurva, em multiplicarem
os centros dos arcos, e em em-
pregarem uma exhuberancia or-
namental independente das linhas
constructivas. E no periodo em
que a arte ogival se caracteriza
por estas tendências, e quando
outro elemento novo, o elemento
clássico, a penetra começando a
fazê-la ruir, que se organiza em
A architectura em Portugal
227
Portugal a arte denominada manuelina. Obedecendo nos seus
principios fundamentaes ás ultimas variantes da abobada ner-
vada, portanto organicamente de traça gothica, a architectura
que floresceu em Portugal nos reinados de D. João II e de
D. Manuel, adquire caracter regional mais pela superabundância
da ornamentaria do que pelo emprego lógico dos motivos deco-
raes, resultantes entre nós do choque de correntes varias e de
civilizações diversas. Esta plethora de ornatos chega por vezes a
effeitos radiantes de cor, como no pórtico lateral da igreja dos
Jeronymos em que a linha ascensional das figuras, faz da escul-
tura um admirável cântico, e na entrada da igreja do Convento
de Christo, em Thomar, talhada em galilé, onde tão bellamente
sob a luz caminha a ronda das sombras projectadas.
Thomar é um dos repositórios melhor providos de arte ma-
nuelina que ha no país, objecto de carinho por parte do Rei Ven-
turoso que a dotou com os mais escrupulosos e expressivos
mestres do seu tempo. Foi a liça onde o gothico moribundo,
debatendo-se em espiraes de desordenada phantasia, sotfreu os
mais fortes embates da in-
tervenção clássica.
O coro da parte manue-
lina, que communica com a
charola bysantina por um
arrojado arco praticado em
duas faces do octogono do
velho oratório templário, é
coberto por uma. elegante
abobada nervada, e as suas
linhas exteriores são domi-
nadas por uma abundância
de decoração em que coleia
um vegetalismo ofifegante
de floresta virgem, o qual
attinge a sua expressão má-
xima na janella da casa do
capitulo.
A igreja dos Jeronymos
é o mais perfeito exem-
plar do gothico manuelino
TORRES VEDRAS
228
A architectura em Portugal
e reune as grandes qualidades de abundância e de brilho, de
rythmo e de cor que caracterizam o periodo mais equilibrado e
ao mesmo tempo mais luminosamente fluente d'esta expressão
de arte.
O interior chama irresistivelmente o olhar para a admirável
estructura da abobada polynervada que á mesma altura cobre as
três naves, esieando-se em seis pilares octogonos que fazem irra-
TORRE DE BKLEM
diar a umbella das suas nervuras como palmeiras gigantescas, e
cujas faces se enriquecem de decoração clássica em modenatura
gothica, interrompida pelo escavado dos nichos, vazios de imagens.
A abobada do cruzeiro, de i6 metros de abertura, independente
das abobadas das naves, é uma das mais arrojadas de toda a
architectura, e continua a norte e a sul nas curtas saliências do
transepto. Em todo o mterior, a mesma exhuberancia ornamen-
tal, nos dois púlpitos, nos pilares, nos fechos da abobada cober-
tos com rosetóes heráldicos, nas capellas absidaes, nos confessio-
nários da nave, de singular planta, e nos arcos Tudor que sus-
Aarchitcctura em Portugal
22g
tentam o varandim do côro. O effeito geral é o de um vasto
hymnario de pedra, cujos sons, entrechocando-se numa vasta
polyphonia, indefinidamente reboam, renovando-se indefinida-
mente. Ao fundo, em severo contraste, a capella-mór no estilo
clássico, espécie de pantheon de fria solemnidade apesar da bel-
leza das suas propor-
ções e da discreta po-
lychromia dos seus
mármores.
O claustro dos Je-
ronymos passa, com
justa razão, pelo mais
bello claustro do mun-
do. Dir-se-hia nascido
de um só jacto, por
uma esplendorosa e
brusca fecundidade da
natureza, tão sóbrio
no desdobramento das
suas curvas, tão rico
de notas originaes, tão
cheio do imprevisto
gracioso que resulta
dos compromissos das
duas architecturas an-
tagónicas. As pilas-
tras, os arcos, a deco-
ração, casam-no á cor-
rente clássica pelo elo
da Renascença fran-
cesa; as abobadas, as
penetrações das bases dos columnellos, a aérea irradiação das
rendas geminaes, prendem-no á tradição gothica: umas dão-lhe
a renascente simplicidade antiga, outras a riqueza languida dos
últimos tempos medievaes.
No pórtico principal da igreja, de arco polycentrico, vêem^-se
as estatuas orantes de D. Manuel e de sua mulher D. Leonor,
amparados pelos seus santos padroeiros; anjos e prophetas as-
cendem sob baldaquinos historiados ou suspendendo sobre a
s. MARCOS — Capclla dos Reis Magos
23o
A architectura em Portugal
entrada o escudo de armas, e ao alto, do lado esquerdo,
destaca-se o grupo da Annunciação, um dos mais delica-
dos trechos esculturaes do edifício: o geito enleado da
Virgem é cheio de timido pasmo e do recatado ni-
cho parece irradiar uma aureola azul como se o
nimbasse a aurora da bemaventurança.
Perto, á beira do Tejo, o lindo baluarte de
S. ^'icente, que dir-se-hia antes, pelo donaire do seu
perfil e a fantasia da sua ornamentação, a gruta
encantada onde se acolhiam, para tecer a teia das
lendas oceânicas, as Tágides invocadas por Camões.
A arte manuelina interrompe bruscamente a sua mar-
cha de audaciosa fantasia no incompleto pantheon real
denominado Capellas Imperfeitas, que D. Duarte pro-
"'*''*' jectou atrás da abside da igreja da Batalha. Sobre o octo-
gono ogival do fundador, cujas abobadas se adornam com o seu
moto de Principe Leal, taiit que serai, erguem-se, no tempo de
D. Manuel, seis gigantes interrompidos bruscamente na sua arro-
jada ascensão, e sobre os quaes devia assentar a cobertura do
edifício. Na torturada e embaraçosa decoração d'esses blocos
THOMAR — Claustro de D. João IH
inacabados, manifesta-sc, levada aos seus limites extremos, a
tendência dos alveneis em transportar para a ornamentação lithica
as subtilezas da modelação toreutica. Plaieresco (de platero, ouri-
ves) chamam a este principio os espanhoes, quando nelle filiara
edifícios que são uma ourivezaria de pedra. O rico portal de en-
A architectura em Portugal
23l
trada das capellas imperfeitas, desdobrado numa linda
curva polycentrica que ondula e se enlaça em gracioso
rythmo, dir-se-hia de prata martelada pelas ciosas e des-
tras mãos de um Gil Vicente. Sobrepujando-a e domi-
nando-a como expressão victoriosa da nova corrente ^y^l\
de arte, a admirável varanda de balaustro, cujas ^^^^S^^--j
proporções, belleza clássica e delicadeza decorativa \^
lhe dão um nitido contraste com o enredamento da gruta ^^
dos seis gigantes, e fazem d'ella uma das jóias da Renas-
cença portuguesa.
Além dos monumentos citados, ha em Portugal, no
estilo manuelino, as igrejas de Villa do Conde, Freixo de
Espada á Cinta, Thomar, Setúbal, Conceição Velha em
Lisboa, Santa Cruz de Coimbra, e portas nas igrejas da Gollegã,
Moura, na da Universidade, na sacristia de Alcobaça, na igreja
de Marvilla em Santarém, na igreja de Vianna do Alemtejo, na
Madre de Deus em Xabregas, na igreja de S. Julião em Setúbal,
na matriz de Foscôa, etc. Foi ephemera esta architectura; nas-
cida no tempo de D. João II, logo começa a soffrer os embates
do classissismo que triun-
fara em toda a Europa, aba-
fando os clarões vacillantes
das ultimas tentativas me-
dievaes.
Com a resurreição do
estilo
greco-romano.
Por-
INTERIOR DE MAFRA
tugal abandona definitiva-
mente as formas e a deco-
ração gothicas, lançando-se
como o resto da Europa
nos braços do módulo clás-
sico. Esta deserção da arte
ogival provocada pelas in-
fluencias italianas, começou
por fazer timidos enxertos
em vários edifícios religio-
sos e civis, embaraçando-se
no gothico moribundo para
dar o manuelino, e triun-
232
A archilectura cm Portugal
fando finalmente durante o reinado de D. João III com
a intervenção dos propagandistas italianos do novo câ-
non. Em Coimbra, já na fachada norte da Sé Velha
o Bispo D. Jorge de Mello mandara erguer a porta Es-
peciosa ; no Convento de Christo em Thomar levanta-se
o celebre claustro denominado dos Filipes, posto fosse
construido no tempo do rei piedoso, bem como innume-
ros fragmentos em varias partes do edifício; em Coimbra
temos o Convento de S. Tomás, e perto doesta cidade,
em S. Marcos, o pantheon dos Silvas, onde se admira
um dos mais perfeitos e elegantes trechos da Renas-
cença em Portugal: a capella dos Reis Magos. Commu-
nicando com o corpo da igreja por um admirável pórtico
em que a sobriedade clássica se allia á delicada modela-
ção da escultura ornamental, cobre-se com uma cúpula
de linha eleganiissima, assente sobre pendiculos, illuminada por
um lanternim central. Alem disso, ha portas nas igrejas de Ca-
minha, Chaves, Figueiró dos Vinhos, Faro, etc. A frescura dos
primeiros tempos da Renascença, impregnada ainda da fantasia
TERREIRO DO TACO
dos architectos florentinos, succede a pomposa e fria fase do
estilo barroco que corresponde, para os fins do século xvi e prin-
cípios do XVII, ao periodo da decadência do gothico na época
A architectura em Portugal
233
anterior; a superabundância ornamental, o predomínio das cur-
vas, o maneirismo decorativo caracterizam o estilo chamando
jisuita. Em Portugal podemos citar os conventos da ordem bcne-
dictina em Lisboa, Porto e Coimbra, e em quasi todas as igrejas
a atormentada superfetação de talha dourada que reveste a mem-
bratura interior dos edifícios com o enredamento das suas folha-
gens, a attitude preciosa dos seus cherubins e o geito languido
dos seus anjos e das suas virgens. Um dos monumentos mais
interessantes doeste periodo é o Convento da Serra do Pilar, na
riba Douro em frente do Porto, com a igreja de planta circular,
a que se junta um claustro
de igual planta, assente em / i jfc^
columnas jónicas, do mais a Ji "^àJUÊB^^ é tÇC^?
bello effeito; temos mais W ttT^^'''^'^''^^^^^
o claustro da casa-mãe
d'aquelle, em Grijó, e o so-
turno massiço que é o edi-
fício da Relação do Porto;
cm Lisboa, alem do demo-
lido torreão de Filipe II, no
Terreiro do Paço, S. ^'i-
cente e a incompleta igreja
de Santa Engracia, que se-
ria, acabada, um dos mais
perfeitos exemplares d'este
periodo pela sua linha só-
bria e pela sumptuosidade decorativa dos mármores que lhe
revestem o interior.
Com a entrada do italianismo pomposo do século xviii, mais
uma vez as formas já fatigadas e esgotadas da ultima Renascença
dominam a architectura em Portugal, e surge então o collosso
de Mafra, inspirado na Renascença michelangesca, enriquecido
ainda pela riqueza dos mármores e o resplandor da crysocalda
tão brilhante como o ouro dos dobrões que tilintavam na sacola
perdulária do seu fundador D. João V. A igreja, de bcllas propor-
ções, é uma reducção de S. Pedro de Roma, no que talvez ganhe
sobre a sua congénere italiana.
No Porto, do século xvni temos a Torre djs Clérigos, soberbo
exemplar de sabia construcção e bello equilíbrio, erguendo-se
QUELUZ — Píivilliáo das Ksphingcs
234
A architectura em Portugal
como um mastro da base ao topo numa altura de 76 metros, e
as graciosas igrejas unidas das Ordens do Carmo e dos Tercei-
ros, esta tão profusa de decoração rocaille, e em cuja fachada
dominam as linhas curvas
que imprimiram requebrada
elegância á arte francesa do
tempo de Luis XV.
Com a reconstrucção de
Pombal, talvez pela sua ur-
gência, nenhum facto novo
apparece na expressão ar-
chitectonica que se conserva
tiel ás suas antecessoras;
assim se levanta a soberba
Praça do Terreiro do Paço,
a^ igreja da Memoria, as
mais interessantes partes
do palácio de Queluz, a
Basilica dâ Estrella e a
graciosa igreja de Santo
António da Sé. O pouco
que se construe em Portugal durante o século xíx íiheatro de
D. Maria) não se afasta dos elementos clássicos dentro de cujos
moldes se debateram os architectos até ao alvorecer do período
contemporâneo.
JoÃo Barreira.
basílica da kstrfllA
^
^^
a»Si
^^^
OURIVEZARIA PORTUGUESA
ENSAIO HISTÓRICO
(.Uèjins dn sec x\)
I
Arte pre-historioa e proto-historioa
UEM houvesse de iniciar a historia da ourivezaria portu-
guesa ha vinte e cinco annos teria apenas como elemento
quasi único, archaico, a grande argola de ouro macisso,
achada em iS83 perto de Penella, numa saibreira, jóia
de tamanho e peso tão desusado (i'',()oo) que muitos a admittiram
apenas como collar céltico.
De facto, as únicas argolas de ouro, anteriormente conhecidas,
estavam somente desde 1881 ou 1882 na posse de Martins Sar-
mento, que as comprara por elevado preço; eram lisas, de appa-
rencia modestissima, á vista do magnifico exemplar de Penella.
Procediam de Folgosinho (região da Guarda) e constituiam aos
olhos do eminente archeologo um precioso thesouro. Elle mesmo
as discutiu commigo. Vi-as. Foram depois roubadas, com peças
de ouro do medalheiro da Sociedade Martins Sarmento I
Comprehende-se, pois, a surpresa causada pelo extraordinário
achado de i883, que veio revelar uma arte de ornamentação per-
236
Ourivesaria portuguesa
feitamente análoga á que já era conhecida na cerâmica das esca-
vações da Citania, ornamentação continuada tradicionalmente na
olaria popular até nossos dias.
Em face d essas provas tive de additar a um trabalho meu
extenso, e em parte já impresso, sobre a Ourweiaria Nacional,
um capitulo novo, precedido de uma introducção sobre a arte
pre-historica e proto-historica. Está inédito. E este, ampliado.
Hoje, os documentos d'esses períodos são numerosos e de
grande valor, graças aos estudos realizados no ultimo quarto de
século. Estão archivados
na notabilissima revista
Portugália.
Aos distinctissimos tra-
balhos dos Srs. Conse-
lheiro José Fortes, Ricardo
Severo, Santos Rocha, etc,
vieram juntar-se recente-
mente as acquisições va-
liosas do Sr. Dr. Leite de
Vasconcellos, que tem en-
riquecido as collecções do
Museu Ethnologico de Lis-
boa (Belém).
A seguinte lista não se
apresenta com pretensões
a inventario completo.
Temos as arrecadas de
ouro do Castro de Laun-
dos (concelho da Povoa de
Varzim), os braceletes de ouro de Arnozello e de Tellões, a xorca
de Cintra, os torques de Almoster, Serrazes, Lebução, Reguen-
gos e Cortinhas; emfim, o collar de Valle de Malhadas e o bra-
celete de ouro de Bairro. E fica a relação ainda incompleta.
«Convém (recommenda o Sr. Ricardo Severo) não abandonar
a lógica que deve guiar o nosso methodo analytico; do contrario
o espirito erra perdido pelo labyrinthico roteiro de povos e de ci-
vilizações. Admittiremos uma metallurgia indigena, regional, e
parallelamente uma industria de ourivezaria com a sua completa
tcchnica. Seja o estilo de longinqua origem oriental, através das
CBUZ LATINA — Estilo 1atinoby;cantino, século ix
Ourivesaria portuguesa
237
escolas gregas e das otticinas etruscas, transportado por phe-
nicios ou púnicos, seja esta civilização de origem céltica, o
facto é que em parte alguma encontramos o modelo originário
destas replicas peninsulares, com o seu particular feitio ibérico,
ou, mais especificadamente, lusitanico. Não podem negar-se
todas estas estranhas influencias nas civilizações peninsulares;
nem todas, porem, é possivel definir e explicar — e nem todas
as explicam».
Mais adeante o mesmo
erudito investigador acres-
centa:
«As formas da ouriveza-
ria primitiva modificaram-se
nos vários povos, consoante
a technica para a applicação
dos esmaltes e das pedras
finas. Entretanto, subsisti-
ram nas classes populares
muitos d'esses typos singe-
los em ouro e prata; assim
como ficou na joalharia o
uso do longo pingente car-
regado de ornamentos e de
pedras lapidadas. E de no-
tar que na Peninsula Ibé-
rica ininterruptamente per-
durou esta moda, que em
outros paises esqueceu, e
que a dama de Elche bri-
lhantemente exhibe ; d'ahi
voltou para a corte france-
sa, pelos meados do século xvi, enfeitando depois, á maneira
espanhola, as preciosas e os incroj-ables do século xviii.
«Se percorrermos a variada ourivezaria popular do norte do
país, encontramos actualmente os mesmos longos brincos de folha
de ouro e de filigrana, com pingentes, a mesma arrecada penan-
nular, em forma de caixa, com o travessão recto para atravessar
o lóbulo da orelha, e por ultimo o mesmo gosto pela sobrecarga
de volumosas jóias de grande apparato.
CRUZ LATINA, PROC.ESSIONAL. 12 14
238
Ourivesaria portuguesa
«Deveras interessante é também a persistência, como adorno,
dos berloques formados por minimas reducçóes de peças cerâmi-
cas que se vendem e usam nos mercados e romarias populares
de Trás-os-Montes. O collar de pequenas louças de barro de Mi-
randa do Corvo, adeante figurado, é um exemplo curioso desta
sobrevivência — tal qual os col-
lares de amphoras, ampullas,
bolas e crotales dos etruscos e
dos romanos; a pequena am-
phora diota do collar de Mi-
randa é replica d'esse typo am-
phori stico greco - italo - etrusco,
ao lado da pequena bilha de
bico trilobado.
«Existiu, pois, neste país do
noroeste da peninsula, desde
tempos, para nós, prehistori-
cos, uma ourivezaria caracte-
rística, com essa technica bar-
bara e de primitiva esthetica,
mas que manifesta uma feição
própria.
«Tem que se adiar a des-
trinça das influencias, quaes as
de origem, escola, technica,
gosto. Através do nosso estudo
indicamos as principaes. Em
muitos casos o problema ethnico
e histórico embaraça-as e con-
funde-as.
«Para definir o facto ethno-
graphico seria necessário que
todos os outros que parecem explicá-lo fossem determinados;
mas tem cada qual as suas incógnitas, funcções umas das outras.
Haverá, pois, entrementes, que restringir o problema aos limites
da zona occidental atlântica».
Um artigo do Sr. José Fortes {Duas Jotas archaicas\ logo em
seguida, traz, com o seu habitual escrúpulo scientifico, novos ele-
mentos de apreciação :
CRUZ PHOCESSIONAL — Estilo gOthicO, SCCllIo XIV
Ourivesaria portuguesa
239
«Podem dispor-se em seis gru-
pos as jóias d'esta categoria, até
agora exemplificadas em vários
espécimens:
I.**, collares fechados, circula-
res, massiços e roliços — typo, o
torques de Penella;
2.% collares de haste aberta,
cm forma de crescente, massiços,
com fecho independente — lypos,
os torques de Almoster e de Ser-
ra^es; o nosso camarada Ricardo
Severo propõe fundadamente in-
cluir neste grupo o celebre coitar
da Penha Verde ou xorca de
Cintra, que assim constitjiria
uma variedade ;
3.% collares penannulares,
massiços, com pequenos botões
terminaes — typo, o torques da
Serra da Conceição;
4.% collares penannulares,
massiços, com grossas cabeças
terminaes — typo, o torques de
I^bução;
5.% collares, adelgaçando do
meio para os extremos, que se
curvam formando ganchos de
prisão directa, como os de Wed-
more e Burwel descritos e figu-
rados por J. F>ans; secção qua-
drada — typo, o torques de Re-
guengos; e
6.% collares de fios torcidos
ou entrançados em grupo e fun-
dindo-se em cada extremo num
só ramo liso e roliço; em prata
e ouro — typo o torques de Cor-
tinhas.
CRUZ PROCE8SIONAL — Estilo maiiiieliiio
Base moderna do scculo xvm
240
Ourivesaria porti guesa
«O collar em estudo (Valle da Malhada) avizinha-se mais do
typo 3/\ que Esiacio da Veiga inscreveu hypotheíicamente na
idade do bronze ; a similitude accentua-se em particular nos extre-
mos, os quaes, nas duas jóias comparadas, finalizam em pyrami-
des quadrangulares. E se, considerando apenas o aspecto formal,
se cotejar o collar de Valle da Malhada com os quatro braceletes
inteiramente similares de Beachf Head, Sussex, averigua-se que
o alvitre do illustrado archeologo
português era procedente, e coin-
cide com o parecer de Charles
H. Read, o qual attribue legi-
timamente as jóias irlandesas
áquella idade, pela sua associa-
ção no mesmo meio archeologico
com uma espada e um winged
celt, de bronze.
«Seria mesmo esta para nós
a solução definitiva do problema
ethnographico e chronologico, se
não interviesse a duvida opposta
pelo caracter muito particular da
ornamentação, que os preceden-
tes exemplares confrontados não
exhibem. Em verdade, de um
modo geral, os coUares e brace-
letes da idade do bronze são aber-
tos, massiços, por vezes com de-
corações gravadas ; os da idade
de ferro, fechados, ténues, com
ornatos globulares, em carena,
em entalhes fundos, e ás vezes vazados — taes os da celebre ca-
chetle de transição de Launac, os dos cemitérios do Marne e dos
Alpes».
Os desenhos e gravuras que acompanham os estudos dos
Srs. José Fortes e Ricardo Severo são digna illustração do com-
mentario histórico, sendo por si só muito instructivas e perfeitas;
maior importância adquirem ainda confrontando-as com as peças
que vimos ha pouco tempo em poder do Sr. Leite de Vasconcel-
los e foram adquiridas para o Museu Ethnologico de I^isboa. No
CRUZ DE ALTAR — Kstilo RcHascença, 1540
Ourivesaria portuguesa
241
seu género rivalizam com o que ha de mais perfeito nas cele-
bres collecções de Schliemann, legadas ao Governo Allemão;
desenho e composição artística, caracteres do estilo e technica
oflicinal estão á mesma altura. Na região de Elche não appa-
receu nada mais perfeito. De onde
procedem esses thesouros? Serão
exclusivamente peninsulares?
O Sr. Ricardo Severo já apon-
tou para as dificuldades múltiplas
do problema. Tanto elle como o
Sr. Conselheiro Fortes poderiam
reforçar os alicerces da questão,
recorrendo ao exame dos estudos
notabilissimos do inglês George
Bonsor, tão erudito investigador
como felicissimo descobridor de
antiguidades phenicias.
Faltando-nos o espaço para jun-
tar aqui extractos convincentes dos
trabalhos de Bonsor, recommenda-
mos o excellente resumo que fez
um mestre allemão, o nosso amigo
Prof. Emilio Hiibner, ha pouco
fallecido.
Trata-se de objectos em mar-
fim, mas a technica, a ornamenta-
ção, o destino que os artifices lhes
designaram, emfim o processo e
as vias pelas quaes entraram na pe-
ninsula, sendo sobremodo exóticos,
aconselham um confronto com os
artefactos de metal, achados no
solo peninsular. Charles de Linas indica diptycos de marfim
antiquissimos, a que foi applicada uma ornamentação interior de
filigrana de ouro : orlas de oro afili granadas. São peças de igre-
jas asturianas. (Docum. de 910, pag. 77).
No fim diz Hiibner sobre o resultado das pesquisas de Bonsor:
«Pues aunque no hubiera encontrado ninguna otra cosa más
que los objectos en maríl arriba descritos, esto bastaria para
«^^^^^Kik.t*
Ev^/fl
l^^^l
^i^^
^^^^KB^PSl^^^H
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^mi^
'.'-i-iU.JJSLI":, *■
: • 3L, .,
CÁLICE E PATENA — Estilo gothico-manuelíno
16
242
Ourivesaria portuguesa
contarlo entre los investigadores más felices. Aquellas cajillas,
peines y escudillas de maríil son, efectivamente, los primeros
objetos de indudable origen fenicio encontrados en fl interior de
Ia península. Los hallazgos de la Punta de la Vaca, en Cadiz, que
hasta ahora eran los únicos de Ia misma procedência cierta, prue-
ban solo la existência de la colónia fenicia y su duracion hasta
una época relativamente reciente, ya bas-
tante conocida. Los marfiles dei Sr. Bonsor
nos ensenan como testimonios palpables,
que el comerciante fenicio supo penetrar en
el interior dei país, rio Betis arriba, para
cambiar ó vender los «artefactos» de su
comercio».
Rcpare-se bem na expressão: peneirar
no interior da peninsula.
Até aqui localizavam os archeologos as
colónias phenicias da Peninsula Ibérica ex-
clusivamente nas linhas da costa. George
Bonsor provou que os phenicios percorre-
ram toda a Betica, peneirando-a em todas
as direcções.
O facto tem importância capital, puis
nem sequer foi pressentido por um especia-
lista tão competente como Mõvers {Die Phõ-
ni:{ier), Martins Sarmento, para quem pro-
curiímos em Allemanha, em 1881, um dos
três volumes da grande monographia, que
se esgotara, suspeitou alguns dos factos re-
velados por Bonsor. Numa conversa que
tivemos em Guimarães, discutindo em
face da obra de Milchhõver sobre a arte
grega archaica, o estilo decorativo da cerâmica da Citania
e de parte dos bronzes, Sarmento demonstrou a intima relação
d'elle com os padrões apresentados pelo autor allemão, e que
eram em grande parte procedentes das pesquisas de Schlie-
mann.
Outras reminiscências levavam a pensar nas antiguidades de
Chypre e nas descobertas de Cesnola (vid. Domenech, Historia
General dei Arte, cap. Fenicia j^ Chipre).
CUSTODIA — ScCUlo XIV
Ourivesaria portuguesa
243
Do estudo do Prof.
Hubner, sobre as desco-
bertas de Bonsor, extrahi-
rei apenas uma citação,
sobre o novo aspecto da
influencia phenicia nas
provincias meridionaes da
península:
«Porque parece que
esta gente, industrial co-
mo ninguna otra de las
de la antigiiedad, supo
aprovecharse de la per-
feccion dei arte y de la
industria de las grandes
naciones dei Oriente, sin
tener nada de próprio que
anadir, y de la habilidad
de sus artifices, para com-
prar objetos de aquéllas
ó servirse de estos em
pró de su comercio. La
época á la cual han de
atribuirse objetos como
los que acabamos de des-
cribir, por el estilo de sus
grabados y su contenido,
no la han podido aun fijar
con certidumbre los co-
nocedores de la cultura
de los antiguos reinos dei
Oriente: se ha pensado
generalmente en el se-
gundo milénio antes de
Jesucristo, ó sean los anos
1400 hasta 1200. De todos
modos, su antigiiedad es
remota y nada impide el
atribuirlos ai comercio de
CUSTODIA DE BELÉM — K«tiIo maniiclino, i5o6
Foi alterada no i.« terço do século xvii
2AA Ourivesaria portuguesa
los antiguos gaditanos, talvez en el primer período de su gran-
deza mercantil, después de la fundacion de la colónia de Gadir,
cerca dei 1200 antes de Jesucristo».
Á primeira vista parece que os objectos de marfim alludidos
não se relacionam facilmente com os artefactos da torentica (arte
dos metaes). Já provámos o contrario, ha pouco. Repare-se ainda
que os primeiros relicários e os mais archaicos do principio da
era christã foram precisamente lavrados em marfim. Os diptychos
de marfim existentes no thesouro da cathedral de Oviedo perten-
cem ao primeiro terço do século vi. S. Isidoro, que nos deixou
nos seus trabalhos de grande erudição as mais preciosas noticias
sobre a historia das artes peninsulares (Eij'mologias\ não fala da
industria de escultura em marfim sob o dominio romano e visi-
gothico, mas é certo que os lavores ebúrneos da arte árabe, con-
servados quer em Espanha, quer em Portugal (Sé de Braga, no
thesouro) revelam uma perfeição que não podia adquirir-se senão
após longa aprendizagem. Muito embora com a invasão dos ára-
bes, no principio do século vni, entrasse com elles uma technica
aperfeiçoada em quasi todas as artes decorativas, ninguém po-
derá negar que os visigodos cultivaram antes d'elles algumas das
artes do metal e a arte dos esmaltes com grande perfeição. Basta
lembrar os esplendidos lavores que constituíam o chamado The-
souro de Guarraiar ' que vale só por si um museu de ouriveza-
ria e de esmaltes. Antes dos visigodos, porem, temos a arte dos
Suevos revelada nas suas moedas e cunhagens; esses antecesso-
res mantiveram um extenso dominio numa grande parte da pe-
nínsula e criaram uma capital afamada em Braga, semeando pelo
litoral varias officinas monetárias. Onde existiu a cunhagem da
moeda e a gravura dos cunhos floresceu sem duvida a ourivezaria
religiosa e profana, quer para adorno pessoal das classes abas-
tadas, quer para ornamento do culto.
Recuando dos Suevos para a arte dos povos que elles subju-
garam, encontramos varias influencias, predominando a romana.
Pouco resta das relíquias da ourivezaria romana, se pretendermos
restringir o termo aos metaes — prata e ouro ; mas convém adver-
I Estudos de Amador de los Rios e do francês Lasteyrie ; e recentemente
de Riano.
Ourivesaria portuguesa
245
poRTA-PAZ — Estilo manuelino
246 Ourivesaria portuguesa
tir que nos restam numerosos objectos em bronze, de adorno pes-
soal, com caracter artístico superior (fibulas). Uma única peça
existe, de notáveis dimensões e peso, o grande disco em prata do
imperador Theodosio, achado na Estremadura Espanhola, perto
de Almendralejo. Está excellentemente reproduzido na obra de
Lafuente (Historia de Espana), e foi achado em 1847; tem de diâ-
metro 28 g- pollegadas inglesas e pesa 633 onças. Guarda-se no
Museu da Academia de la Historia. Um disco muito menor, cha-
mado de Otanez, appareceu na provincia de Santander. Tem va-
lor sobretudo pela escultura allegorica que o ornamenta; é de
prata e em parte dourado; pesa somente 33 onças.
O numero de objectos de prata e ouro conservados hoje em
dia é naturalmente reduzido, porque a cubica, ateada em succes-
sivas e continuadas invasões, não os poupou; em compensação
abundam as citações dos autores clássicos, que em numerosos
documentos attestam a prodigiosa riqueza metallifera extrahida
dos jazigos da peninsula. Phenicios, Gregos, Romanos, Carthagi-
neses, emfim, os povos invasores do norte, todos, trabalhando sem
descanso, não conseguiram exgotar as riquezas do sub-solo ibé-
rico. HUbner resumiu excellentemente todos esses testemunhos
numa Memoria magistral, depois de haver lançado os grandio-
sos alicerces da archeologia peninsular durante o dominio romano
e os primeiros períodos christãos nos differentes volumes do
Corpus inscriptionum latinariim, comprehendendo as inscripções
romanas pagãs e christãs, a que pôs a coroa nos volumes do
Supplemento e na serie das Inscrições ibéricas. Ainda ha poucas
semanas provei em estudos publicados na revista A Arte, a pro-
pósito dos monumentos de Travanca e Balsemão, e em confe-
rencias publicas sobre a architectura românica archaica (meses
de junho e julho) feitas na Academia Portuense de Bellas Artes,
que esses estudos fundamentaes c!e HObner constituem uma mina
quasi inexgotavel, inclusivamente para toda a historia da arte
peninsular durante a Idade Media. Embora se interponha a
invasão árabe no século viii, todos devem saber hoje que
a arte christã, feitas as contas ás inevitáveis destruições e
derrocadas dos grandes templos que os suevos e godos haviam
propositadamente erguido para serem fortalezas (e não fra-
quele:{as, como no periodo gothico florido) — ganhou muito pelo
contacto com o Islam.
Ourivesaria portuguesa
247
Ficaram comtudo os pequenos templos, os cenóbios modestos
que não affrontavam a retaguarda do invasor com torres e mura-
lhas, castros e fossos; ahi se abrigou a arte, ahi floresceram in-
numeras pequenas industrias ; ahi redigiram monges eruditissimos
maravilhosos repositórios do saber lechnico, de que a Schediila
divei^sanmi artium é o typo mais precioso (editio Alberi llg).
COFRE— Fstilo Renascença, i540-i55o
Antes d'este celebre tratado, compilado no fim do século xr,
linha o eminente e santo prelado hispalense resumido toda a
sciencia, toda a arte theorica, toda a technica tradicional de gre-
gos, romanos, árabes e christãos ; havia criado uma encyclopedia
incomparável e reconhecido a importância da tradição dentro da
officina. Essa tradição não tem quasi limite de idade, tão vetusta
é. E pode hoje classificar-se de autochtona \
• Nada mais convincente do que o recente magnifico trabalho de Alcaide
dei Rio sobre as Pinturas y grabados de las cavernas prehistóricas de la pro-
248
Ourive:;aria portuguesa
Com quanta razão D. José Amador de los Rios defendeu, em
1861, a originalidade do trabalho peninsular na ourivezaria da
época latino-bysantina contra as pretensões de M. de Lasteyrie,
que não queria ver nas peças incomparáveis do thesouro de Guar-
razar (séculos v a vii) senão productos, oriundos dos paises seten-
trionaes germânicos, reconhece-se, de anno em anno, com mais
evidencia. O Sr. Pierre Paris, num
trabalho muito notável e recentissimo
(1903-1904), reconhece a existência de
uma civilização ibérica, claramente de-
terminada nos monumentos da arte e
da industria, anterior a quaesquer in-
fluencias que alcançaram a peninsula,
procedentes do Oriente mediterrâneo
por intervenção de gregos e phenicios.
Essa civilização produziu depois aquillu
que M. Pierre Paris chama arte ibérica
de estilo gf^eco-oriental, cuja obra mais
genial é, presentemente, a figura femi-
nina de Elche {Dante dElche\ celebre
e formosissimo busto adquirido pelo
Museu do Louvre.
Se a arte ibérica resistiu a todas as
invasões de povos estranhos e ás impo-
sições de modelos exóticos que um luxo
sumptuoso, mas de bárbaro gosto, lhe
apresentou, devia possuir a vitalidade
precisa para manter durante o periodo visigodo de mais intensa
acção (annos de 4io-65o) as suas tradições favoritas. Ainda
hoje as podemos admirar em innumeros objectos das artes
decorativas, que causam admiração a estrangeiros (e a nacio-
naes), que por força os querem filiar nas categorias sabidas e
conhecidas I
SANTO ANTÓNIO E O MENINO
Estilo português, século xvii
vincia de Santander : Altamira, Covelanas, Homos de la Pena e Castillo na
Portugália. Tomo 11, fase. 11, pag. 137-178, com numerosas e bellÍ3simas es-
tampas.
Ourivesaria portuguesa 24.Q
II
Primeiro periodo christào e Idade Media
(até i5()o)
A influencia poderosa da tradição sobre o estudo das condi-
ções technicas do officio seria matéria para uma dissertação
especial. Em outro logar e por mais de uma vez em conferencias
recentes tratei de S. Isidoro de Sevilha, cuja obra capital foi uma
fonte inexgotavel de estudo para todos os officios, uma encyclo-
pedia de receitas de influencia incalculável. Os árabes, conquis-
tando no século viii a Espanha, encontraram o terreno preparado,
aptidões technicas, desenvolvidas nas ofiicinas dos artistas visigo-
dos, que se haviam inspirado na obra do Santo Bispo. O árabe
ensinou ao espanhol a sua admirável ornamentação das superfí-
cies planas, o segredo do artista oriental, que produziu depois
o estilo mudejar. Nas provincias que resistiram d invasão conti-
nuaram os artistas godos produzindo obras notáveis, como a crn:{
de los Angeles, dada por D. Afonso II á cathedral de Oviedo, e
a cru:{ de la Victoria ou de Pelayo, da mesma igreja; ambas teem
inscrição e data, a primeira 808 A. D., a segunda 828 A. D.
A notável cruz de D. Afonso III, do thesouro da cathedral de
Santiago, vae mais alem, com a data de 912, isto é, 874.
Do saber do Santo Bispo viveu durante séculos a peninsula.
Depois, no fim do século xi, temos o celebre tratado (compi-
lação, de Theophilus Presbyter, já citado. O monge allemão e
ourives revela a influencia e o conhecimento dos processos de
trabalho usados em Espanha ^ Assim chegamos ao século xii,
XIII e xiv; nesta época já a arte hispânica concorre no mercado
europeu. Por differentes vezes tenho escrito a respeito dos esmal-
í Elle escreve no capitulo xlvii: De auro arábico; no capitulo xlviii: De
auro hispânico ; no capitulo xliii: De viridi hispânico; o aurichalcum hispani-
cumy citado pelo mesmo autor, era uma mistura de ouro e latão, que dava
uma côr avermelhada ao metal, característica do ouro hispânico. Sobre a saida
em grande escala de ouro hispânico para França e Aliem anha no tempo de
Carlos Magno. v. H. Meyer, Die Strassburger Goldschm., p. xdi.
2 5o Ourivejjria portuguesa
tes aragoneses, exportados para França no século xiv; nem
admira este luxo, se já em 12^4 publicava D. Jayme de Ara-
gão ' uma severa lei sumptuária, que provocou a de Sevilha
de 123G, repetida logo em i258 por Afonso X. As obras que
restam da época a que nos referimos (século xi-xiv) são mara-
vilhosas.
FRUTEIRO — F.siilo indo-portiigiiês, século xvi
Citaremos : o cálice de ouro da Abbadia de S. Domingos de
Silos, do século xi; um cálice de ágata, coberto de ouro e pedras
preciosas, da mesma época, dado a S. Isidro de Leão pela
> O domínio do Aragão alcançava até Monipellicr, enião uma grande
cidade commercial, adquirida em 1204. Para a historia especial das relações
politicas e sociaes de ambos os lados dos Pyrineus v. Cénac-Moncaull, /fis/oire
Jes peuples et des étais Pyrénéens, Paris, 1860, 5 vols.; obra importante,
mesmo para o estudo das questões artísticas e archeologicas d'esses países.
Em 1290 encontramos Dalmacio Suner, feitor catalão em Byzancio. Em
i3o2 tinha o Imperador Grego Androniko um corpo de mercenários catalães
ás suas ordens. Heyd, Levantehandel, vol. i, pag. 523.
Já em 1187 concedia Conrado de Montferrat o palácio verde de Tyro á
Companhia Provençal, que se compunha de colonos de S. Gilles, Marselha,
Ounve:jfaría portuguesa
25l
Infanta D. Urraca; o cálice de prata dourada do Abbade Pela-
gius (século xii); o cálice da Academia Real da Historia de Ma-
drid (século XIV); o relicário polyptico de Nossa Senhora dei
Cabello do Convento de Quejana (Alava), instituido em iSyS
por Hernan I^pes de Ayala; o esplendido altar de prata da Ca-
m^'m&m
S^ 'r>;^*:*., ^^ -r. ^i
sAi.vA — Estilo baroque, seailo xvii
thedral de Gerona (1348); a silla do Rei D. Martin de Aragão
(1393-14121, existente na Cathedral de Barcelona; as Tablas
Alfonsinas da Cathedral de Sevilha (século xiii) e outros objectos,
que dão uma alta ideia da antiga arte espanhola. No século xv
já alguns ourives barceloneses foram chamados a Roma para a
Montpellier e Barcelona. O Governo da colónia pertencia a um Consulado
composto de seis indivíduos ; os colonos tinham fóro commum, próprio. Heyd,
Levantehandel, vol. i, pag. 368. Em Alexandna, no Eg) pto, já Benjamin de Tu-
dela encontrou mercadores aragoneses em iiSy. Em i26() havia cônsules ou
feitores catalães em Alexandria, e em 1290 concluia-se um importante tratado
commercial e politico entre o Rei de Aragão e o Sultão Kilawun do Egypto.
Heyd, op. cit,, vol. 1, pag. 466.
252
Ourivesaria portuguesa
execução de peças importantes, como eram as rosas e estoques
de offerta, que os Papas costumavam enviar aos Principes da
Christandade por serviços relevantes.
Os centros das outras monarchias espanholas só apparecem
em scena muito depois de Barcelona, de Valência e mesmo de
Gerona ; primeiro Burgos no principio do século xv, depois To-
ledo, em seguida Sevilha; Leão no começo do século xvi, Valla-
dolid um pouco mais tarde, Cuenca, etc. Foi na passagem do fim
do século XV para o século xvi, depois do impulso dado ao génio
nacional pelos triunfos de Granada, que
se produziu um movimento de rivalidade
entre as cidades espanholas, na dotação
dos" seus templos com as grandes obras
da ourivezaria religiosa. A centralização
ainda não havia conseguido amortecer
o espirito provincial. Só em 1479 é que
o Aragão, que vimos unido á Catalunha
e Valência em i3o(), se fundiu com Cas-
tella pelo casamento dos Reis Catholi-
COS. Cidades de segunda ordem, prote-
gidas por uma nobreza opulenta, que
ainda não tinha abandonado os seus es-
plendidos solares, pondo em moda um
absentismo fatal á vida dos centros pro-
vinciaes, rivalizavam em generosidade
com os grandes centros; cada uma quis ter a sua peça cele-
bre. E então que os ourivezes começam as suas correrias
por toda a Espanha; que Henrique e António de Arphe, de
Leão, Juan Alvarez, de Salamanca, Juan Ruiz, de Córdoba,
os Becerriles, de Cuenca, Vozmediano, de Sevilha, executam
as suas admiráveis obras de ourivezaria religiosa. Descentrali-
zação, actividade, vida por todo o corpo hispânico; as grandes
feiras provinciaes ainda deslumbravam os forasteiros e peregri-
nos do século xiv e xv; hoje são apenas um pallido reflexo para
exhibição de modas internacionaes muito duvidosas, que fazem
ridiculissima figura ao lado da exhuberancia decorativa da tra-
dição castelhana.
GOMIL — Kstilo Renascença,
século XVI
Ourivesaria portuguesa 2 53
A arte da ourivezaria na Idade Media dependeu principalmente
de dois factores, da protecção do alto clero e das ordens religio-
sas; em segundo logar, do favor dos Principes e da nobreza que
lhe imitou os costumes, As primeiras officinas vamos encontrá-las
na Peninsula (como no resto da Europa) installadas dentro dos
próprios conventos. Só na primeira metade do século xiv é que
a ourivezaria se dedicou seriamente ao serviço profano e pro-
curou installações independentes da Igreja '.
Devemos, porem, recordar que esta divisão da actividade não
foi repentina e que prende com a separação dos artifices em dois
grupos, um de artistas religiosos, que perma-
neceram fieis ás antiquissimas officinas dos
conventos, e outro, separatista, que se foi
collocar fora, no meio da cidade, debaixo da
tutela dos grémios e das suas leis profanas.
Este movimento de separação accentua-se á
proporção que o espirito municipal se levanta,
inspirado pelo elemento burguês.
Os primeiros regimentos de ourivezaria
que conhecemos datam do principio do se- salva - Secuio xvh
culo xiii (Montpellier e Paris ^i; houve pois
tempo, um secuio, para preparar a transição de um serviço para
outro, que era indubitavelmente mais difficil, porque havia a atten-
der a variadissimas exigências e a innumeros caprichos da socie-
dade profana.
A comparação da nossa arte não pode, nem deve fazer-se sem
a deferência que devemos á arte irmã mais antiga da nossa vizi-
» Renan, Discours, pag. 148 e seg.; i63 e seg.; e 178. Texier, pag. 985,
pag. 1000 e seg. Labarte, op. cit,
2 Em outro logar demonstrámos já a relação de affinidade entre os Esta-
tutos franceses e aragoneses. Depois de Montpellier appareceu Limoges e
Toulouse do secuio xiv, com estatutos também em lingua provençal. Vid. Te-
xier, op. cit. Antiquíssimo também o Estatuto de Paris, redigido pelo Prévot
Étienne Boileau: Livre des Mestiers, anno de 1258-69, tit. xi, redacção origi-
nal em Lacroix-Seré, pag. 38.
2 54. Ourivesaria portuguesa
nha. Quando a nação portuguesa se tornou independente no sé-
culo xii encontrou uma tradição leonesa e castelhana na politica,
nas letras e nas artes, com todas as suas vantagens, vivaz e
fecunda, não falando na tradição gallega, que na poesia e na arte
dos Cancioneiros (musica, dança, illuminura) criou formas origi-
naes e uma esthetica própria.
Mas filhos já éramos da grande Hispânia.
Nesta arte decorativa, como nas demais, temos pois de dar
o primeiro logar, na Historia da Peninsula, á irmã mais velha — á
espanhola ou com mais correcção á castelhana, aragonesa e catalã.
A ourivezaría espanhola desenvolve-se em condições superiores.
Teve sobre a portuguesa a vantagem de começar muito mais
cedo a sua historia, e com relações de commercio por assim
dizer universaes; mesmo para o estudo technico e theorico teve
fontes de estudo muito antigas. Temos citado (e nunca será de
mais) S. Isidoro (Bispo de Sevilha, fallecido em (536), na sua Kn-
cyclopedia ou livro de Etymologias, em que trata de numerosíssi-
mas questões technicas. Os livros xvi, pedras e metaes, pesos e
medidas; xvui, arte da guerra, armas, musica, etc. ; xix, cons-
trucções navaes, architectura domestica, vestuário e sua orna-
mentação, jóias, etc, são os que nos interessam especialmente '.
A intima ligação com a França (onde vemos esta arte tão flo-
rescente no século xiv, a ponto de registar a historia 383 nomes
de ourivezes no periodo de i337 a 1400) pela Navarra e Catalu-
nha até á Provença, foco de cultura literária e artistica para onde
os Papas haviam transportado a sua corte desde i3o5 (em Avi-
nhão até iSyS); a posição e influencia excepcional de Barcelona
em todo o Mediterrâneo no século xni ; as intimas relações d'este
empório mercantil com o Império Grego de Byzancio, as suas
colónias na Syria e no Egypto — tudo isto produziu bem cedo
» Sobre a immensa influencia doesta obra v. Ebert, Geschichte der christ,
latein. Literatur, vol. i, pag. 555 e seg. ; e Menendez Pelayo, Historia de las
ideas estéticas en Espana^ vol. i, cap. 11.
Ourivesaria portuguesa
200
admiráveis resultados. Kstas relações abriram á metade oriental
da Peninsula horizontes vastissimos para o seu commercio e a
sua industria. Em cincoenta annos (1229 a 1282) arranca o Rei de
Aragão e Conde de Barcelona aos mouros as ilhas de Malhorca e
Minorca, os reinos de A'alencia e Murcia, e expulsa os franceses
da Sicilia; em i324 toma ainda a Sardenha. Emquanto na parte
Occidental lutavam os Reis de Castella, ora com os inimigos do
SALVA — Fstilo baroque. do meado do século xvii
sul, OS mouros, ora com os rivaes do litoral, os portugueses, con-
tinuava a casa de Aragão a sua carreira gloriosa fora da Penin-
sula, fundando ao mesmo tempo, por um governo sábio e liberal,
a prosperidade interna da monarchia. A serie de conquistas que
apontamos preparou a ultima e mais grandiosa empresa, a con-
quista do reino de Nápoles em 1442. A 25 de fevereiro do anno
seguinte fez o Rei D. Afonso a sua entrada triunfal na cidade, em
um carro de ouro, como um antigo César, a coroa de Nápoles
sobre á cabeça, e adeante de si, sobre uma almofada de brocado,
mais seis diademas: os de Aragão, de Valência, de Malhorca, da
Córsega, da Sardenha e da Sicilia.
256
Ourivesaria portuguesa
O que este grande monarcha fez em favor das sciencias e das
artes não sabe a historia como encarecê-lo. A vida dos mais emi-
nentes sábios, como Georgius de Trebizonda, Chrysoloras, Lo-
renzo Valia, Bartholomeu Facio, Panormita, o pode dizer. (Burck-
hardt, Die Cultur der Retiaissaitce, pag. 219;.
A arte deve-lhe, para citar só um facto, o incomparável arco
triunfal de Castel-Nuovo; e este arco symbolizava o predomí-
nio espanhol na Itália, que se havia de estender a toda a Europa
com o advento de Carlos V (i3i6). A tomada de Granada e a
descoberta de Colombo, no
mesmo anno, foram o re-
mate do novo edifício poli-
tico.
SALVA — Estilo de i65o
Quão differente foi a
nossa sorte I Emquanto os
espanhoes avançavam pela
Kuropa dentro, tomando
posse dos centros da civili-
zação antiga e da cultura
da Idade Media (Itália, sul
da Allemanha e Paiscs-
Baixos, linhas do Rheno e
do Danúbio), partíamos nós
para o Oriente, pelo mar tenebroso; abandonávamos quasí a
Europa; e teríamos perdido o fio ás relações occidentaes, se
não fora a continua emigração de gente europeia, que vinha
esperar nas margens do Tejo a resolução dos novos problemas
económicos. Este movimento inverso explica, de uma maneira
sufficiente, a differença entre o desenvolvimento artístico dos dois
países da península, e esta ditferença não é a nosso favor em
nenhuma das quatro artes, e ainda menos nas artes industriaes
até fins do século xv. Não alludimos a uma ou outra obra ex-
cepcional; não é isso o que se trata de confrontar; compare-se o
movimento, a marcha geral, fase por fase, desde o nascimento de
uma arte ou de uma industria até sua extincção. A emigração
artística para Portugal, a introducção de elementos estrangeiros
não podia desviar as consequências necessárias, fataes, do movi-
Ourivesaria portuguesa
257
mento a que obedecemos; podia apenas actuar isoladamente so-
bre certas organizações privilegiadas, e isto no curtissimo espaço
de trinta annos K D'ahi uma decadência rápida, quasi repentina,
como a de uma planta exótica que muda de clima. Qualquer
SALVA— Kstilo Renascença
movimento artistico, qualquer arte é o resultado de uma progres-
são histórica sensivel, mas lenta, durante séculos; não se importa,
repetimo-lo 2. A historia da ourivezaria e joalharia espanhola é
mais uma prova d'isso, como vamos ver. O foco d'essa industria
> É a duração do reinado de D. Manuel (1495-1521), o movimento come-
çou porem já nos últimos annos do reinado de D. João 11.
2 A pintura portuguesa nos séculos XV e XVI, Porto, 1881, pag. 9.
»7
258 Ourivesaria portuguesa
é O Aragão e a Catalunha ', o domínio doesse grande Príncipe
que em 1443 abria as portas da Itália aos espanhoes. A progres-
são abrange dois séculos.
Nesse mesmo anno triunfal estávamos nós de luto; expirava
então o Infante Santo nas enxovias de Tanger; pouco depois
começávamos nós as terríveis questões internas que cobriram de
precioso sangue os campos de Alfarrobeira (1449) ^ ^^ termina-
ram no cadafalso de Évora (1483). Emquanto aragoneses, cata-
lães e valencianos se tinham fortalecido durante dois séculos sob
a influencia das antigas civilizações, que haviam nascido em torno
do Mediterrâneo; emquanto castelhanos e leoneses desciam á
Andaluzia a admirar em paz as ultimas maravilhas do génio
árabe no Alcazar de Sevilha (i36o, a Alhambra é de i258), Por-
tugal procurava reatar antiquíssimas relações através do immenso
oceano; sustentava a Europa, cansada, esgotada, e acordava o
Oriente do seu torpor ^ ! Eis a differença de situação entre Por-
tugal e a Espanha.
Todo o reino de Aragão tirou grande proveito das conquistas
que enumerámos; a sua capital, Barcelona, tornou-se a rival de
Génova, principalmente durante o reinado do grande D. Jaime I,
o Conquistador ^. Da parte do Príncipe, liberdades locaes e com-
munaes concedidas com a maior franqueza, protecção racional.
> Capmany, Memorias y prova que Barcelona já tinha um commercio
activo de pedras preciosas com o Oriente no século xiv; v. também Heyd,
cap. Edeisteine, vol. 11, pag. 58 1. Barcelona e Montpellier, cidade ligada, politi-
camente, ao Aragão tinham corporações de ourivezes organizadas, com esta-
tutos, já no século anterior. Vid. Texier, pag. 1200.
3 A Europa estava, com efleito, exhausta. Em 1492 não tinha ella nos seus
cofres mais do que um milhar de milhões de francos, segundo Kiesselbach,
Der Gang des Welthandels, pag. 3o i e seg. Vid. as provas e a indicação das
causas no cap. Sobre o commercio oriental das especiarias^ em Arch. art,,
fase. IV, pag. i36 e seg. Posteriormente ao nosso estudo de 1877 appareceu a
lúcida exposição histórica do allemão Heyd, em 1879: Erschiip/ung der Han-
delsnationen am Mittelmeer, que occupa a maior parte do vol. 11 da sua obra.
3 Basta recordar que o primeiro código de commercio, a primeira compi-
lação de leis marítimas, o Consolai dei mar, foi impresso em Barcelona em 1458
em língua limosina, espalhando-se depois por toda a Europa. Sobre as varias
edições e traducções, vid. o Catalogo da Bibliotheca Salva, vol. u, pag. 692.
A melhor fonte de estudo é a traducção francesa commentada de Boucher.
Paris 1808, 2 vols., in-8.°
Ourivesaria portuguesa
259
dispensada largamente ao commercio e á industria; da parte do
povo tenacidade, iniciativa corajosa, actividade commercial, génio
inventivo para as empresas industriaes, — e tudo isto ajudado,
idealizado por notáveis faculdades artisticas — eis os elementos
que concorreram para a singular fortuna da casa de Aragão, uma
das maiores da Europa nos séculos xiv e xv. A politica centrali-
zadora e niveladora de Carlos V acabou com os foros e privilégios
de D. Jaime e seus successores. O Aragão fundiu-se na immensa
casa de Habsburgo e Borgonha. A sorte
que tiveram os foros aragoneses no
tempo do Imperador, quis Felipe II pre-
pará-la aos flamengos, mas o tempe-
ramento germânico resistiu e venceu
afinal. Entre a historia dos paises de
Flandres e do Aragão-Catalunha, entre
Bruges e Barcelona ha, com effeito,
mais de um ponto de contacto : o mesmo
espirito municipal que ensina o respeito
da lei ; a mesma força nas corporações,
que cria industrias florescentes e a ri-
queza da classe media; a mesma bur-
guesia valente e audaz nos mares e nos
combates, que abre a essas industrias
um mercado universal.
Com relação á ourivezaria e joalharia (a que nos temos de
restringir) isto já era assim, no século xiv. Davillier fornece noti-
cias valiosas sobre a corporação dos ourivezes de Barcelona, que
se referem ao século xiv e xv, e que podem ser completadas pelo
estudo de Ebert. A organização do ensino era solida; a disciplina
dispunha de penas severas; as relações entre os vários membros
da officina eram rigorosamente fiscalizadas, para prevenir toda e
qualquer injustiça do mais forte, ou desobediência do subordinado.
J05E PEREIRA LEITE
Ourives-artista
Conclusão: Inventários. Faollldades para o Estudo
O limitado espaço de que disponho não me permitte traçar
aqui a historia das peças mais arcaicas da ourivezaria peninsular,
e descrevê-la; já citei as mais importantes; aqui teria de restrin-
gir-me aos artefactos portugueses e aos que existem em collecções
25o Ourivesaria portuguesa
portuguesas e estrangeiras. Porem, a descrição sem as estampas
correspondentes, em escala avultada, não é proveitosa.
Para as reliquias dos nossos vizinhos, guardadas em Espanha,
França (Paris-Cluny) e Inglaterra (South-Kensigton) ha estampas
magistraes em publicações condignas, que enumeramos cuidado-
samente nas Fontes de consulta. Para lá remettemos o leitor.
Quem não puder adquirir essas obras tem ainda o recurso das
photographias, nas series opulentas da celebre casa Laurent de
Madrid, e a divulgação em volumes económicos.
Portugal descuidou-se durante longo tempo. A collecção de
photographias da casa Pardal (i 865-1 872), que Começou a archi-
var os thesouros do chamado Museu de arte ornamental existente
outr ora em duas salas escuras da Academia de Bellas Artes {Con-
vento de S. Francisco de Lisboa) foi uma mui louvável tentativa,
hoje esquecida; mas o photographo reproduziu somente dentro da
collecção official e não se importou com os outros thesouros da
arte existentes em Lisboa, por exemplo na Sé, em S. Vicente,
em S. Roque, nos Paços Reaes das Necessidades, Ajuda, etc.
A preciosa collecção do Rei D. Fernando (Necessidades) fora
mandada reproduzir pelo Museu de South-Kensington, que já
muito antes delegara o photographo Thomson para archivar os
monumentos mais característicos do reino. Figurou a serie do
Rei na Exposição de Vienna (iSyS) e depois trouxe-a eu ao Porto
para outro certamen. O publico de Lisboa pôde vê-la e admirá-la
no Museu do Carmo, ao qual fora dada. Continuou porem o se-
questro dos thesouros das cathedracs, confrarias, etc, até á
grande exposição de 1882, sem que o enorme dispêndio então
feito no Museu das Janellas A^erdes servisse ao publico, pois das
reproducções de Carlos Relvas fizeram monopólio official, em be-
neficio dos caprichos de um amador '. O photographo Sartorius de
> As casas Biel do Porto e Rocchini de Lisboa chegaram a fazer offertas
razoáveis, no caso de se abrir o concurso para as reproducções. Eu instei nesse
sentido ; mas o Inspector da Academia de Bellas Artes de Lisboa (Delfim Gue-
des) queria, por força, favorecer o seu particular amigo Carlos Relvas. Con-
struiu-se-lhe até, de graça, e de propósito, um atelier photographico de madeira
e zinco no jardim do Museu de Lisboa, que custou a bonita, mas inverosímil
somma de4:5ooííí)Ooo réis. Fomos lá vê-lo, por dentro e por fora; e deu-se-lhe
o monopólio das reproducções, sem nenhuma condição, ad libitum, A historia
por miúdo fica para outro logar.
Ourivesaria portuguesa 201
Coimbra e depois a casa Biel do Porto " ajudaram a reproduzir
nos últimos annos peças desconhecidas e valiosas; Rocchini enn
Lisboa e Serra em Évora vulgarizaram outras jóias da arte; mas
tudo isso foram migalhas ^.
Falta um inventario, em forma, da ourivesaria e joalharia na-
cional, com reproducções a preços razoáveis. Os desenhos de Ca-
sanova, que acompanham o catalogo official de 1882, não são
dignos do certamen, nem do valor das peças reproduzidas. Per-
deu-se uma occasião única para auxiliar os estudos da historia
das artes decorativas em Portugal e criar uma boa receita per-
manente para o Estado pela venda das photographias ! Resta-nos
esperar pela munificência sobejamente provada do Sr. Bispo-
Conde D. Manuel, que organizou ha poucos annos admiravel-
mente o opulento Museu de arte religiosa da mitra. O catalogo
já tarda um pouco; era fácil adeantar, ao menos, as photogra-
phias, pois esse Museu da mitra e a collecção adjunta ao Con-
vento Real de Santa Clara (edificio moderno), em devoção da
Rainha Santa Isabel ^, contém o melhor núcleo que podemos apre-
sentar 4 de peças de ouro e prata, esmaltes, jóias, não falando
nos estofos tecidos e panos bordados, etc, do periodo de 1000-
i5oo. E por aqui ficarei, por ser este limite o que abrange um
dominio da arte, em parte inédito e noutra parte, menos conhe-
cido. O século XVI é o de uma pujante florescência; abundam as
provas ; mas são peças de estilo mais corrente ^
Porto, agosto de ujo8.
Joaquim ue Vasconcellos.
> A Arte e a Natureza em Portugal. Publicação em 8 vols e yó fase. = 384
estampas, com texto em português e francês.
3 O Álbum de Aveiro e o de Vianna (Exposições de artes decorativas, an-
tigas) deram bom auxilio aos estudiosos.
3 O Sr. Dr. Ribeiro de Vasconcellos fez a historia d*essas relíquias, com
boas illustraçóes e excellente critério, na Vida da Rainha Santa^ em 2 vols.
Em Guimarães, a Collegiada de Nossa Senhora da Oliveira seguiu o exem-
plo, dado pelo Sr. Bispo-Conde. Bem haja.
4 h claro que não devemos esquecer a grande collecção do Museu Nacio-
nal ( Janellas Verdes) ; d'esta não ha, porém, ainda hoje ! nem esboço de cata-
logo, apesar de ser facillimo organizá-lo com os dados da Exposição de 1882.
^ O catalogo chronologico e critico da ourivezaria e joalharia nacional,
desde a fundação da monarchia, mesmo separado dos periodos históricos e
ante-historícos, obrigaria a um volume esoecial. Está feito nos nossos mss.
202 Ourivesaria portuguesa
NOTAS EXPLICATIVAS SOBRE AS ESTAMPAS DO TEXTO
1. Cruz latina de cobre, portátil, estilo latino-byzantino ; classificada de his-
pano-arabe, e como pertencente ao século ix, na coUecção do fallecido
Marquês de Sousa-Holstein. Ignora-se o paradouro actual.
2. Cruz latina, processional, de ouro, ornamentação de filigrana, com cabo-
chons de pedras preciosas. Altura o",6o. No centro tinha uma reliquia do
Santo Lenho; nas costas outra. Foi do Mosteiro de Santa Cruz de
Coimbra, onde era conhecida como cruz de D. Sancho I. Feita em 12 14,
segundo a inscripçao original da haste, por ordem do monarcha. Palá-
cio Real da Ajuda.
3. Cruz processional, de prata. Tem de altura i",3o e pesa 22 kilogrammas.
Foi do Mosteiro de Alcobaça. Estilo gothico florido, fim do século xiv.
Peça contemporânea e irmã, no estilo, da custodia n.<* 7. Museu Nacional
de Bellas Artes, Lisboa.
4. Cruz processional, de prata. Altura i^jiç. Pertence á Sé do Funchal. Da-
diva de El-Rei D. Manuel. Estilo manuelino ; este exemplar, de magni-
fico lavor, soífreu bastante do tempo.
5. Cruz de altar, de prata, com o vulto dourado. Altura o",9i. Na peanha,
tri-partida, alternam os passos da Paixão de Christo com scenas mytho-
logicas. Lavor perfeitissimo, que pertenceu ao Mosteiro de Belém. Es-
tilo da Renascença, cerca de 1540. Museu Nacional, Lisboa.
6. Cálice de prata dourada, com patena. Altura o",35 V»- Estilo gothico-ma-
nuelino. Pertenceu ao Convento da Ordem de Christo em Thomar;
hoje no Palácio Real da Ajuda. El-Rei D. Luis I mandou uma imitação
perfeitíssima d'este cálice, feita pelo ourives Leitão & Irmão, de Lisboa,
como presente, ao Papa Leão XII I.
7. Custodia de prata dourada. Altura o'",92. Largura o"^25. Segundo uma ins-
crição foi mandada fazer pelo Abbade de Alcobaça, D. Frei João de
Omellas, na era de 1404 (i366). As volutas, que ladeiam o hostiarío, são
do meado do século xvii e substituem antigos botaréos de estilo go-
thico. Museu Nacional de Bellas-Artes, Lisboa.
8. Custodia de ouro esmaltada, chamada de Belém, fabricada pelo celebre ou-
rives Gil Vicente; acabada em i5o6. Altura o",83. Peso 3o marcos de
ouro. É sobremodo notável o lavor do esmalte, na parte figurativa, que
lhe dá um logar único na historia da arte nacional. Na parte constructiva
soffreu alterações consideráveis. Legado de D. Manuel ao Mosteiro de
Belém. Palácio Real da Ajuda, Lisboa.
9. Porta-paz de prata. Altura o'",56. Largura o'",28. No centro Nossa Senhora
com o Menino, sobre a meia-lua, e um espinheiro florido. É uma das
obras de ourivezaria mais perfeitas e caracteristicas, no estilo manuelino.
Ourivesaria portuguesa 203
Foi do Convento dos Eremitas de Santo Agostinho de Nossa Senhora
da Graça de Villa Viçosa. Museu Nacional, Lisboa.
IO. Cofre de bronze dourado, com lavores de prata branca. Comprimento o",34.
Estilo da Renascença, cerca de 1540-1 5 5o. Parece-nos haver nelle eviden-
tes sinaes de influencia allemã. O ornato linear, de estilo oriental (mores^
che)^ recorda as composições de Peter Flõttner. Ha ainda muita analogia
com a cruz n.** 5, na parte figurativa. Foi do Mosteiro de Belém. Hoje
no Museu Nacional, Lisboa.
1 1 Imagem de prata, em parte dourada. Santo António com o Menino Jesus.
Altura o",3o. Estilo nacional do primeiro terço do século xvii. Renas-
cença, evolucionando para o estilo barôco. Peça característica na con-
cepção e na parte technica. Museu Nacional, Lisboa.
12. Fruteiro circular, de prata dourada, com pé. Diâmetro o*,32. Fim do sé-
culo XVI. Estilo indo-português, provavelmente de uma ofRcina de Goa.
A coroa ducal aberta parece indicar o possuidor D. Constantino de
Bragança, Vicc-Rei da índia. Collecção do Palácio Real da Ajuda.
i3. Salva circular, de prata dourada, repoussée. Estilo baroçt:e, lavor relevado,
bem nacional, do meado do século xvii. A execução, algum tanto carre-
gada com elementos decorativos, é de uma grande virtuosidade e de
eífeito sumptuoso. Museu Nacional, Lisboa.
14. Gomil grande de prata dourada, carregado com uma ornamentação fantás-
tica, no estilo da Renascença, cerca de 1540. Tem prato correspondente.
Antiga collecção de El-Rei D. Fernando; passou para seu neto El-Rei
D. Carlos. Paço da Penha, Cintra.
i5. Pequena salva, recortada, à jour. Diâmetro o" .3o. Trabalho do principio
do século XVII. Pertencia em i883 ao Visconde de Valdemouro. Aveiro.
16. Salva oblonga, grande, de prata repoussée, no estilo baroque (Luis XIV), do
meado do século xvii. No centro, em medalhão oval, a representação
do episodio do ovo de Columbo. Aparte o anachronismo dos trajes, é
um primor de arte, em tudo invenção original do celebre ourives por-
tuense Pereira Leite. Pertencia em i883 ao negociante Th. Alves Gui-
marães, Prior que foi da Ordem do Carmo, grande protector do mallo-
grado artista. Paradouro actual, ignorado. Photographia inédita.
17. Salva redonda de prata, relevada, estilo do meado do século xvii (tulipas
e rainunculos estilizados, género hollandês). No centro Cupido sobre
um leão (o amor vencendo a força); parece imitação de um camapheu
antigo. Do mesmo artista e do mesmo possuidor em i883. Paradouro
actual, ignorado. Photographia inédita.
18. Salva em estilo da Renascença por João Monteiro, ourives do Porto. Diâ-
metro o",57. Trabalho primoroso de um dos primeiros artistas contem-
porâneos. Officina na Rua do Bomjardim.
19. Retrato do ourives- artista José Pereira Leite, primeiro lavrante de prata
do norte do país, na segunda metade do século xix. Obteve a primeira
distincção na Exposição de Ourivezaria Nacional da Sociedade de Ins-
trucção do Porto em i883. Falleceu cerca de 1887. Retrato inédito.
254. Ourive!faria portuguesa
FONTES DE CONSULTA
Monumentos arquitectónicos de espana, com o texto espanhol e os addita-
mentos que os allemâes Uhde, Junghãndel e Gurlitt publicaram moderna-
mente, de 1880 em deante. Os franceses, em architectura não são isentos
de parti-pris (por exemplo, Enlart). O inglês W. Watson (1908), acaba
de publicar um estudo importante sobre a Architectura portuguesa (Lon-
don, A. Constable), em que envolve um pouco as artes decorativas.
Museu espanoi. de antiguedades, sob a direcção de Rada y Delgado ; e as
importantes monographias estrangeiras que completam a historia da
archeologia da arte na peninsula, em parte adeante citadas. A enumeração
completa encheria uma dezena de paginas. Escolheremos só os allemâes
HUbner e Justi; os franceses: Cariaillac. Pierre Paris (1903-1904), e Da-
villier. Deixamos de parte os autores sobre a pintura castelhana, arago-
nesa, catalã, etc, posto que os quadros dos séculos xiii a xvi contenham
espécimens da ourivezaria, joalharia, armaria, etc, peninsular, pintados.
Os dois volumes de Sanpere y Míquel, sobre os Primitivos hespanhoe:,
o provam; os quadros gothicos do nosso Museu Nacional do mesmo
modo
M. BoRRELL, Tratado de dibujo. Madrid, 1866-1878, 3 vol., foi. peq. — Esta
obra, capital para a Espanha, não perdeu, em trinta annos, o mérito e o
valor, que lhe assinalámos em 1879. (Reforma do ensino do desenho).
Posteriormente, as publicações mais valiosas espanholas, na forma de
manuaes, completaram e ampliaram essa obra fundamental. Veja-se
adeante. A Espanha tinha oficialmente uma cadeira de Historia da Arte
e Archeologia antes de 1875, pois a Diputacion provincial de Barcelona
mantinha a Escola de Bellas Artes, subsidiava pensionistas e pagava
a D. José Manjarrés (que a imprimia em 1873), a «prímera Historia ilus-
trada dei Arte que se ha publicado en Espafiu» — um volume de 370 pagi-
nas, com 195 gravuras. Manjarrés começou os seus Cursos livres em lições
dominicaes nos annos de 1868 a 1869; passaram a ser lecciones comoassi-
gnatura em 1872, entrando no programma oíiicial, obrigado, do professor,
que passou a cathedratico^ e ainda o era em 1880. Os manuaes espanhoes,
a que acima me refiro, são principalmente os de Gudiol y Cunill, Vicb,
1902; La Roza y Cabal^ Oviedo, 1893; Pena y Fernandez, Sevilla, 1890;
Miguel y Baia, Barcelona, 1879 e 1892, etc.
Menendez V Pelavo, Historia de las ideas estéticas en Espana. Madrid, i883
e annos seguintes (6 volumes, até 1889).— Lavor de grande mérito, cuja
leitura recommendo ha vinte annos ; que recommendarei sempre aos nossos
descobridores, nacionalistas de estufa, que teem medo do ar dos Pyreneus.
Ourivesaria portuguesa 265
Do MESMO, O discurso de recepción publica^ na Academia de Bellas Artes de
San Fernando, em 3 1 de março de 1901. Madrid, Fortanet.
Complemento da obra precedente.
Luís Domenech, Historia general dei Arte, Dirigida por L. D. Barcelona, Mon-
taner y Simon. — Estão publicados oito volumes, que abrangem também
as artes decorativas e os trajes. Obra de primeira ordem, inclusivamente
para o período pre-historico e proto- histórico. São do mesmo arrojadís-
simo editor da Historia general de Espana^ de Lafuente, continuada
por Valera (Madríd, 1877-1882; 6 vol.), outro monumento da imprensa
editorial espanhola, cheio de magnificas illustrações.
Joaquim de Vasconcellos. — O estudo histórico especial (inédito), em 2 volu-
mes sobre a Ourivesaria e Joalharia portugueza, e varias monographias do
autor sobre as artes dos metaes fToreuticaj no Boletim da Associação do
Carmo, desde 1882; na Arte Portuguesa, revista do Centro Artistico do
Porto desde 1880; na Revista da Sociedade de Instrucção, do Porto desde
1882 ; na Revista de Guimarães, etc, no decurso dos últimos vinte e cinco
annos.
Os theorícos antigos espanhoes dos séculos xv, xvi e xvii foram explo-
rados pelo autor, pode dizer-se, pela prímeira vez em Portugal, systematica-
mente, desde que começou a publicação da Ar cheologia Artística (1872).
Continuamos isolados nesse campo. Vide a respectiva Bibliographia, am-
plíssima, no estudo sobre Diirer (1877); no Ensaio sobre a architectura
manuelina (i885), appendice 11, etc.
Estatutos Portugueses dos ourívezes da prata e ouro, e dos ofiicios
manipuladores dos metaes, em geral. Grande collecção da Biblioteca Mu-
nicipal do Porto (44 volumes), que inventariei de 1877-1878; e de que
publiquei extensos extractos na Revista da Sociedade de Instrucção do
Porto, Annos de 1881 -i883, na Revista de Guimarães e na separata intitu-
lada Toreutica,
Catalogo da exposição de arte ornamental. Lisboa, 1882, em fascículos, com
estampas. — O volume de A. F. Simões, sobre este certame, é fraquíssimo.
Lisboa, 1882.
Álbum da exposição de aveiro (secção archeologica). — Aveiro, i883.
Álbum da exposição de vianna do castello (secção archeologica). — Vianna,
1898.
O Álbum Relvas, da Exposição de Lisboa, de 1882, foi um capricho de
um notável amador-photographo, mas sem efTeito para o publico, pela sua
tiragem limitadíssima (5o ex.). Ha, porem, d*elle o Álbum Completo, em 4
volumes (cerca de 400 estampas), exemplar único, dado ao Museu Nacional,
que é precioso. Na exposição de Ourivesaria e Joalharia Nacional, que orga-
nizei no Porto em i883, tirou a casa Bíel setenta e tantos clichés, mas não
266 Ourivesaria portuguesa
conseguiu assinatura para o album. Das exposições, chamadas archeohgi-
cas, realizadas em Lisboa por i85o e tantos, e no Porto (1865-1867), não
ficaram photographias, infelizmente.
E. A. A1.1.EN e Ferreira, Catalogo da coUecçáo de moedas visigodas^ perten-
centes a Luis José Ferreira. Porto, 1890. Com uma Introducção valiosa de
Allen. — Junte-se o catalogo da collecção Ferreira Carmo (hoje do Conde
do Ameal, pelo Dr. Pedro Augusto Dias (Porto, 1877), onde trata das offi-
cinas visigodas ; os volumes do Dr. Teixeira de Aragão sobre as moedas
portuguesas ; emfim, a grande obra de Heiss ( Aloys), Description générale
des Monnaies des Róis Wisigoths. Paris, 1872.
O ARCHE01.0G0 PORTUGUÊS. Publicação muito valiosa do Museu Ethnologico
Português, dirigida pelo Dr. Leite de Vasconcellos. — Appareceram até
hoje, junho de 1908, i3 volumes. Lisboa, Imprensa Nacional.
PoRTVGALíA. Revísta dirigida pelos Srs. Ricardo Severo e Rocha Peixoto. Cus-
teada toda pelo primeiro, sem subsidio algum. Porto, 7 fascículos, que bem
se podem classificar de volumes, e lhe conquistaram um dos primeiros
logares na secção scientifica da Península.
Historia y arte. Revista mensal illustrada. Madrid, marzo de 1895 a fevereiro
de 1896. Director, Adolfo Herrera. — Com profunda pena, vimos terminar
esta excellente publicação no 2." volume ! Contém monographias interes-
santíssimas sobre as artes decorativas da Espanha.
Entre as revistas portuguesas especiaes, é justo ceder o primeiro logar
ao Boletim do Museu do Carmo; as revistas de Lisboa; Artes e Letras
(vários volumes); a Arte, que veio depois; a Arte Portuguesa, editada
por Casanova ; a anterior, do mesmo titulo, que o Centro Artístico inau-
gurou no Porto — tudo isso contém elementos aproveitáveis, mas dispersos.
A publicação da Casa Biel & C* : ^4 Arte e a Natureza em Portugal,
ainda é, afinal, a contribuição mais valiosa dos últimos cem annos para
o estudo da Arte, da paisagem e da gente portuguesa e seus costumes.
Publicaram-se oito volumes, com 384 estampas (phototypias), e texto ra-
zoavelmente elucidativo, em português e francês.
JuAN F. RiANO, The industrial arts in Spain. London, 1879. Publicação official
do Museu de South-Kensington. Ensaio muito valioso, illustrado. — Não deve
confundir-se (como tenho notado em escritores nossos, que fingem consul-
tar livros de Arte sobre assuntos espanhoes) com outra obra do mesmo
autor : o Catalogo dos objectos de Arie espanhoes do dito Museu : Cias-
sijied und descriptive Catalogue 0/ the art objects of Spanish production in
the South K. M. London, 1872. Pertence-lhe um supplemento sobre as
tapeçarias: Report de 3o de abril de 1875, de Riano. Bem entendido : tape-
çarias do Palácio Real de Madrid. São para cima de MtL 1 que conhecemos
desde 1871. Como os objectos portugueses andam, mesmo em South-
Kensington, baralhados com os espanhoes (observámos esta confusão por
Ourivesaria portuguesa 267
toda a Europa, em viagens desde 1865-1876, e ainda depois em 1881 !)
é mister fiscalizar as classificações de todos os especialistas espanhoes^
incluindo as de um dos mais eruditos, o nosso fallccido amigo Riafío.
O bem conhecido Sr. J. C. Robinson (escritor sobre Grão- Vasco) na obra
em seguida mencionada, e que é também objecto de confusão com as duas
de Riafío, deu-se uns ares de quem resolve o enygma, e achou os caracte-
res de differenciação entre os productos espanhoes e portugueses nas ar-
tes decorativas. (Vide a Introducçâo, pag. 1 1). Já respondi a essa pretensão
na Revista da Sociedade de Instrucção (vol. 1, 1882, pag. 4o3). No fim
doesta nota vae o titulo da terceira obra que, como as duas citadas, foram
matéria incógnita para a illustre Commissâo da Exposição de Arte Orna-
mental de 1882 (Lisboa). É justo dizer que o medico-archeologo Sr. Dr. Sousa
Viterbo consultou Riaiio e o Catalogo da Loan exhibition, de 1881, muito
depois de fechado o certamen de Lisboa ; mas como o Boletim da Sociedade
de Geographia de Lisboa (onde imprimiu o seu escrito em Junho de i883),
andava atrasado nas datas, parece, á primeira vista, que o Sr. Viterbo tinha
conhecimento em 1882 do que andava impresso em Inglaterra em 1872 e
1879. No Catalogo oílicial da Exposição de 1882 não apparece vestigio de
haverem seus autores folheado qualquer dos três guias que indicamos: i.
Catalogo de objectos espanhoes em South-Kensington (1872); 2. Resumo
histórico de Riafío (1879); e 3. Catalogo de objectos de arte ornamental
expostos em Londres em 1881, de empréstimo (on loan) ; porque, a final,
foi esta exposição londrina que provocou a de Lisboa, de 1882. Eis a ver-
dade.
Catalogue of the special exhibition of spanish and portuguese ornamental
ART, South-Kensington Museum, 1881. Kdited by J C. Robinson. — A in-
troducçâo é de Robinson ; o Essay on spanish art é de Riafío, reimpresso
da primeira obra, supra, de 1872. Este catalogo da exposição de Londres
custava um shilling (225 réis); o da Exposição irmã de Lisboa, 1^440 réis.
Davillier (baron ch \ Les arts décoratifs en Espagne au moyen age et à
la Renaissance, Paris, 1879. Edição, ampliada dos estudos feitos na revista
L'Arty de Paris. Obra indispensável, que a famosa Commissâo de 1882 igual-
mente desconhecia. Esqueceu á illustre commissâo também o seguinte :
Do MESMO, Recherches sur Vorfévrerie en Espagne, au moyen age et à la
Renaissance. Paris, 1879. In-4."
Hubner (Prof. Emil.). — Haveria a citar uma biblioteca, taes, tantos e tão valio-
sos foram os seus estudos sobre a archeologia da peninsula.
Resumiremos : i ) O corpo das inscrições latinas (vol. 11 da grande serie
da Academia de Berlim), com supplemento. 2) As inscrições latinas, chriS"
tás, com supplemento. 3) As inscrições ibéricas, 4) A memoria premiada
La arqueologia de Espana. Barcelona, 1888; emfim, entre a numerosís-
sima serie de pequenas monographias, a que tem o titulo : Objetos dei
comercio fenicio encontrados en Andalucia, em que aprecia as importantissi-
268 Ourivesaria portuguesa
mas descobertas de George Bonsor e seus estudos^ publicados na Revue
Archeologique de 1898-1899 e depois em volume. Temos presente uma
separata da Revista de ArchivoSy Bibliotecas y Museos (com que o pro-
fessor allemão brindou somente alguns amigos). Madrid, 1900.
E. Renan, Discours sur Vétat des Beaux-Arts en France au quatorpème siècle.
Faz parte da Hist. littéraire de la France au xiv siècle. Vol. n. Paris, i865,
pag. 123 e seg.
Abbé Texier, Dictionnaire d'orfévrerie, de gravure et de ciselure chrétiennes
(com a historia dos metaes, esmaltes e pedras preciosas). Paris, iSSy.
In-8.« gr. — Pertence á celebre Encyclopedia theologica, de Migne. Tem
ainda grande valor.
Paul Lacroix et Ferdinand Serre, Histoire de Vorfévrerie, joaillerie et des
anciennes communautés et confrèries, etc. (France et Belgique). Paris, i85o.
In-8.*» gr. — Obra indispensável, com os mais antigos documentos, Esta-
tutos dos officios (1234) e marcas. 450 estampas, em parte coloridas.
Linas (Charles de), Orfévrerie mérovingienne. «Les oeuvres de Saint-Eloi et
la verroterie cloisonnée». Paris, 1864. In-8.*— Esta obra, infelizmente já
muito rara (tiragem 100 exemplares), trata com a mais solida erudição
e ajuizada critica da ourívezaria peninsular desde o século v até ao sé-
culo IX ; e deve confrontar-se a cada momento com os trabalhos de Mr. de
Lasteyrie e Amador de los Rios.
John H. Pollen, Ancient and modem gold and silversmith's work in the South
Kensington Museum^ described, etc. London, 1878 — É o grande Catalogo
illustrado das coUecções (edição critica). Como supplemento, a grande
serie illustrada, em fascículos, The South- Kensington Museum.
A. Darcel, Notice des émaux et de Vorfévrerie (collecçóes do Louvre). Paris,
18Ò7. — Edição critica.
H. Barbet de Jouv, Notice des gemmes et joyaux (idem). Paris, 1872,
Ferlinand de Lasteyrie, Description du trésor de Guarrajar. Paris, 1860.
F. Didot.
D. José .\mador de los Rios, El arte latino-by^antino en Espana y las Coro-
nas de Guarra^ar. Madrid, 1861. Nos Monumentos Arquitectónicos de Es-
pana; e em volume separado. Outro estudo de Rada no Museu Espaúol,
(vol. ui), é de 1874.
Ourivesaria portuguesa 260
Palx Mantz, Notes sur Vorfévrerie anglaise, na Gajette des Beaux-ArtSy 2ême
periode, tomo ix e tomo xvi.
WiLFRiED J. Cripps, ColUgc and Corporation plate. «A Handbook to the re-
productions of silver plate in the South-Kensington Museum». Lon-
don, 1881.
Hlytens (Jules), Recherches sur les corporations gantoises. Gand^ 1861. Fo-
lio. — A historia dos armeiros da mesma cidade contém outras e mui pre
ciosas informações que aproveitam á ourivezaria e seus processos techni-
COS. Veja-se : Ferdinand Vanderhaeghen, Histoire de la Gilde souveraine,
etc. dite chef-confrérie de Saint-Antoine à Gand. Gand. Septembre, i8C"o.
In.8.*» gr.
Dr. J. Stockbauer. NUrnbergisches Handwerksrecht des XVI Jahr. Nlirnberg,
1879. In-4." gr. — Sobre as Corporações da Allemanha do Sul.
Hans Meyer, Dic Strassburger Goldschmiedejun/t, com documentos históri-
cos, importantes de i365-i68i. — Pertence á Biblioteca de Sciencias Sociaes
e Politicas, dirigida por G. Schmoller. Leipzig, 1881. Volume 111. Sobre
a Corporação de Strasburgo.
ExposiTiON uNiVERSELLE DE 1867 A PARIS, «RappOFts du jurv intematlonal, pu-
bliés sous la direction de Michel Chevallier» — Secção : Joaillerie et bijou-
terie. Tomo iv.
ExposiTioN uNivERSELLE DE viENNE EN iSjS. Commission supérieure. France,
Paris, 1875. Tome ii. Rapports.
EXPOSITION INIVERSELLE INTERNATIONALE DE 1878 A PARIS. RappOFtS du jurV in-
ternational. (Mariial Bernard, Roubleaux, Dugage e outros). — Paris, 1877
e 1880.
Deveríamos começar por onde acabaremos, recommendando a exploração
cuidadosa das seguintes obras : Provas da Historia Genealógica da Casa Real
(6 volumes); Portugalice Monumenta Histórica; os Documentos históricos da
cidade de Évora, do século xvi,.por Gabriel Pereira, e as suas numerosas, pe-
quenas monographias, onde abundam noticias de valor; emfim, a obra Vima-
ranis Monumenta Histórica, a saec. nono P. C. Vimarane, 1908, dirigida pelo
Sr. Abbade de Tagilde, precioso complemento das abundantes noticias da Re-
vista de Guimarães. A cidade do Norte prova que o exemplo dado pelo Mu-
nícipio de Lisboa (collecção de Documentos Freire de Oliveira) frutificou.
O Município do Porto parou, infelizmente, com a sua iniciativa.
J. DE V.
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A MUSICA EM PORTUGAL
olpe de vista retrospectivo. — Prlliminar. — Não permitte
o plano d'este brevíssimo resumo tomar o fio da historia
^ em época muito remota, pois isso obrigaria a investiga-
^ çóes forçosamente extensas.
Somente se pode constatar que o desenvolvimento da arte
musical adquirido na Europa depois do periodo medieval e re-
presentado principalmente pelos contrapontistas flamengos, encon-
trou no nosso país terreno bem disposto, e que as obras dos
mais celebres d'esses contrapontistas, taes como João Ockeghem
e Josquin do Prado, nos eram familiares, como se reconhece
pelas referencias que lhes fazem vários escritores coevos. Princi-
palmente nos séculos xvi e xvii, mestres portugueses muito notá-
veis brilharam entre os mais afamados da peninsula; os nomes
de Manuel Mendes, Frei Manuel Cardoso, Soares Rebello e
Duarte Lobo {Eduardus Lúpus em latim, Kduardo Lopes em
espanhol), foram celebrados num poema de Faria de Sousa, que
os colloca a par dos espanhoes Morales, Guerrero e \'ictoria.
Duarte Lobo, que viveu io3 annos, parece comtudo ter sido
a figura primacial d'esse movimento, não só pelas obras que
escreveu, algumas das quaes ainda chegaram até nós, como pela
sua influencia e acção educativa sobre grande numero de discípu-
los notáveis que teve.
, EDVARDVS LVPVS m OLISIPONENSI
: EccLEsiA MvsiCES pr^fex:tvs.
DUARTE LOBO
A musica em Portugal 273
O restaurador de Portugal, D. João IV, ínteressando-se parti-
cularmente pela musica, juntou uma biblioteca riquíssima na espe-
cialidade, sem duvida a primeira do seu tempo, mas que, por
pouco estimada, veio a dispersar-se. A dispersão, levada a efteito
principalmente nos reinados de D. Affonso VI e D. Pedro II,
terminou com o terramoto de lySS. O interesse que a casa de
Bragança sempre teve pela arte musical, a partir do Duque
D. Theodosio, bisavô do Restaurador, e apenas interrompido
nos dois reinados que citei, prolongou-se, porem, como adeante
veremos, nos descendentes de D. Pedro II.
Século XVUL — Todo o povo que tem linguagem sua, caracter
próprio, vida autónoma, deve também possuir uma arte nacional:
se não a tiver, precisa adquiri-la; se a perdeu, deve esforçar- se
em recuperá-la. Portugal está hoje nesta ultima situação: perdeu,
ha exactamente dois séculos, a sua musica característica, e procura
agora dar-lhe novos alentos. Nunca poderá ter, nunca teve, escola
própria, mas tenta adquirir um caracter distinctivo que lhe dê
direito de nacionalidade. Vão-se tornando notáveis e frequentes
certas tentativas para fazer entrar nos dominios da arte mais
esmerada as canções tradicionaes ouvidas nos recantos das po-
voações rústicas, aquelle «cantar saudoso» — segundo a frase
de João de Barros — que caracteriza a melopeia dos povos penin-
sulares. Esse cantar saudoso nunca deixou de existir, visto que,
decorridos quatrocentos annos depois de ter sido notado por João
de Barros, elle se encontra ainda não raro ecoando pelos nossos
campos e serras. Somente da arte culta o desterraram as árias
e recitativos garganteados pelos capadinhos romanos, que D. João V
e D. José importaram juntamente com outras mercadorias, não
sei se tão avariadas como aquella.
A musica portuguesa começou principalmente a ser enxertada
pela italiana quando a rainha D. Maria Anna de Áustria casou
com D. João V (1708), trazendo de Vienna o uso da opera nos
paços reaes. Com a opera vieram cantores, instrumentistas, bai-
larinos, scenographos, compositores e até poetas, para comporem
e executarem aquellas representações denominadas operas, que
substituíram os antigos e nacionaes autos ennobrecidos pela
memoria de Gil Vicente. Músicos portugueses foram enviados
a Roma para beberem na própria fonte o manancial dos gorgeios
18
D. JOÃO IV
Gravura de Balthafar Moncornet, Paris
A musica em Portugal
275
italianos. Da escola de Nápoles vieram mestres para também
aqui ensinarem as formulas da composição e o modo da execução
de taes gorgeios K Os primeiros músicos alados a Itália foram:
António Teixeira, em 17 17, e Francisco António de Almeida,
pouco depois. Muitos outros se lhes seguiram, sendo o ultimo
Marcos António Portugal.
Simultaneamente, veio para Lisboa o celebre cravista Domin-
gos Scarlatti, que D. João V contratou para seu serviço, em 1721,
e foi mestre affeiçoado da
Infanta D. Maria Barbara,
mais tarde Rainha de Es-
panha. Partindo Scarlatti
com a sua discipula para
Madrid, veio em 1762 ou-
tro mestre napolitano de
grande fama, David Peres,
que exerceu profunda e du-
radoura influencia nos com-
positores nacionaes. Ficá-
mos, desde então, comple-
tamente italianizados.
'. É justo, porem, confes-
sar que o ensinamento ita-
liano foi notavelmente proli-
tíco: numerosos composito-
res portugueses receberam
esse ensinamento e produzi-
ram trabalho de incontestá-
vel valor na sua espécie,
como se reconhece pelo que d'elles nos resta. As partituras que
se conservam na Biblioteca da Ajuda dão testemunho de que a
DAVID PERES
Gravura de Bartolozzi
Adviria-se, porem, que a arte italiana não avassalou unicamente o nosso
país. A supremacia que desde o século xvii adquiriu sobre a polyphonia fla-
menga, vencendo com a simples monodia o trabalho complexo dos mestres
contrapontisias, tomou-se geral em toda a Europa, ou mais exactamente em
todas as cortes da Europa, visto que a opera foi a principio uma arte pura-
mente cortesã.
276
A musica em Portugal
segunda metade do século xviii marca um periodo áureo para a
musica theatral na corte portuguesa. Desde 1720, época em que
as representações italianas começaram a tomar maior incremento,
até á inauguração do theatro de S. Carlos, em 1793, isto é,
durante setenta e três annos, cantaram-se nos theatros régios
para cima de duzentas operas differentes, um terço das quaes
foram escritas por músicos portugueses. As restantes eram dos
autores em voga na Europa, figurando com maior numero os
dois mestres napolitanos David Peres e Nicola Jommelli. Este
ultimo firmara em 1769 um con-
trato pelo qual se obrigou a en-
viar para Lisboa copias de todas
as partituras que compusesse,
contrato que cumpriu até falle-
cer, em 1777.
Ao mesmo tempo, o theatro
publico imitava o exemplo da
corte, e não só companhias ita-
lianas, mas também as portugue-
sas exhibiam, com muita frequên-
cia, operas de mistura com as
farças e burletas nacionaes. Foi
neste meio que se criou a cele-
berrima cantora Luisa Todi e o
não menos celebre compositor
Marcos Portugal.
Por essa época desenvolveu-se
extraordinariamente entre nós o
gosto pela musica, como affirma
uma carta escrita em 1765: «Na musica temos feito os maiores
progressos. Não ha casa onde se não ache algum instrumento
musico, ou quem saiba cantar» *.
Dos compositores portugueses produzidos pela escola ita-
liana, ou mais especialmente napolitana, sobresaiu João de Sousa
Carvalho, que esteve em Itália, e a quem coube a honra de ser
Lithographia do Plutarcho Português
» Carta aos sócios do Jornal Estrangeiro y em Paris, por Miguel Tibério
Pedagache.
A musica em Portugal
277
O successor de David Peres em todos os cargos da corte : mestre
da família real, compositor e director das operas, mestre da
capella e mestre de contraponto no Seminário Patriarchal, que
era então a nossa primeira escola de musica. Teve por melhores
discipulos António da Silva, Leal Moreira, Marcos Portugal,
João José Baldi, e por ultimo João Domingos Bomtempo, alem
de muitos mais que não lograram igual reputação.
A par de Sousa Carvalho trabalharam outros músicos de não
menor valor, que foram também pensionistas em Itália, como
Luciano Xavier dos Santos,
João Cordeiro da Silva, Jero- ^^
nimo Francisco de Lima e seu
irmão Brás de Lima. Quasi
lodos compuseram numerosas
operas italianas. Leal Moreira
e Marcos Portugal foram, alem
d^isso, mestres nos theatros pú-
blicos do Salitre e Rua dos
Condes, escrevendo nessa qua-
lidade muita musica para as
peças nacionaes ali representa-
das. As árias e lunduns que
essas peças continham, e mais
caiam no agrado publico, pas-
savam a ser cantadas nas salas
e tornavam-se populares. As-
sim nasceram os dois typos
que hoje se julga geralmente
serem os principaes represen-
tantes da musica portuguesa:
a «moda» ou — segundo o eufemismo brasileiro — «modinha»,
que outra cousa não é senão a ária italiana amoldada ao gosto
nacional; o «fado», derivado de dança africana que com o
nome de «lundun» divertia as plateias populares, tornando-se
favorito nos bordeis, onde recebeu a nova designação. Não
constituem, decerto, estes dois typos a única substancia da mu-
sica portuguesa, que em tal caso bem pobre seria; mas nelles
se encontra o espirito interno que a caracteriza e tem sido notado
pelos estrangeiros.
Agua-forte de Sequeira
278
A musica em Portugal
A par da musica theatral, também a musica religiosa italiana
exerceu decidida influencia entre nós, levando-nos na orientação
viciosa que frequentemente fez confundir o estilo próprio da
igreja com o do theatro. Essa orientação foi boa a principio:
D. João y contratara em 1729 um mestre veneziano, João Jorge,
para dirigir a escola de canto religioso que fundou; era um mes-
tre hábil na especialidade e criou excellentes discipulos. Entre
MARCOS PORTUGAL
a enorme quantidade de musica sacra dos compositores acima
citados, encontram-se bastantes exemplares de bom e serio estilo;
sobre todos, Luciano Xavier dos Santos produziu trabalho muito
notável. Mas o gosto pelas árias dos castrados e o interesse does-
tes em se tornarem indispensáveis, obrigava os autores da musica
a fazerem dos textos litúrgicos assunto para elles brilharem,
e assim se perdeu a noção da verdadeira musica religiosa, que
entre nós se tornou raridade.
A musica em Portugal
279
Século XIX. — Com a inauguração do theatro de S. Carlos
(1793)9 encerraram-se para sempre os theatros privativos da
corte. Leal Moreira, director e ensaiador de musica no theatro
da Rua dos Condes, passou com igual categoria para o de S. Car-
los, e ahi se conservou até 1800, cedendo então o logar a seu
cunhado. Marcos Portugal, recemchegado de Itália. Tanto um
como outro, escreveram ainda algumas operas, que se cantaram
sob a sua direcção, até 1810, ultimo anno da residência de Mar-
cos em Lisboa. Mesmo por mais algum tempo ainda se repetiram
certas operas d'este compositor, mas depois só muito raramente
os músicos portugueses teem tido
accesso no nosso theatro lyrico,
seja para compor ou seja para
dirigir. Apenas lhe ficou o re-
curso dos bailados, para os quaes
Santos Pinto, de iSSg a i863,
escreveu musica de valor relati-
vo, seguindo-se-lhe Angelo Car-
rero. Rio de Carvalho e Justino
Castilho.
Attenuando a falta do thea-
tro italiano, adquiriu a musica
maior desenvolvimento nos thea-
tros nacionaes, e época houve
(meado do século), em que o pu-
blico recebia de mau grado qual-
quer peça dramática que se apresentasse sem musica. Muitos
compositores trabalharam nesse género, já collaborando em dra-
mas, peças fantásticas, comedias, etc, já escrevendo verdadei-
ras operas cómicas e operetas. Foi dos primeiros António José
do Rego, autor dos Velhos Gaiteiros, burleta muito popular
em 1814. Merecem também nota: João Evangelista Pereira da
Costa, mestre ensaiador no theatro da Rua dos Condes em 1820;
Jacob Osternold, que desde i836 escreveu tanto para este thea-
tro como para o do Salitre; e António Luis Miro, que traba-
lhou para os theatros do Salitre e Gymnasio até 1849. A par
de Miro, sobrevivendo-lhe ainda alguns annos, trabalhou Santos
Pinto, estreando-se em i83g com a musica para o drama de
Mendes Leal Os dois renegados. Guilherme Cossoul escreveu
siurros pnrro
28o
A musica em Portugal
algumas operas cómicas, representadas entre os annos de 1848
e i863.
Mas a todos sobrelevou Joaquim Casimiro, que se fez pri-
meiro notar em algumas comedias de Molière, representadas na
Rua dos Condes em 1842. O trabalho de Casimiro foi abundante,
attingindo a cifra de duzentas e nove peças, para as quaes escreveu
musica muito apreciada pela vivacidade e frescura da inspiração.
E justo mencionar neste
ponto Angelo Frondoni, nas-
cido em Itália mas estabe-
lecido em Portugal, onde
exerceu a maior parte da
sua actividade artistica; tor-
nou-se popularíssima a Can-
ção da Saloia, intercalada
numa farça que se represen-
tou em 1844, canção digna
de nota pelo sabor nacio-
nal. Escreveu muitas peças
portuguesas, representadas
em diversos theatros de Lis-
boa até ao anno de 1873.
Monteiro de Almeida
escreveu bastante musica
para o theatro da Rua dos
Condes, entre 1860 e 1868.
Emfim, dos composito-
res lisbonenses mais notáveis já fallecidos. Rio de Carvalho, Júlio
Soares e F^rancisco Alvarenga, trabalharam assiduamente para o
theatro nacional durante o ultimo quartel do século xix. Alvarenga
foi muito. applaudido no Rio de Janeiro, onde falleceu em i883.
No Porto, João Medina de Paiva, nascido em 1810; Sá Noro-
nha, melodista inspirado, que trabalhou desde 1854; José Fran-
cisco Arroyo, musico de grande valor pela mesma época ; José
Cândido, autor da popular opereta Narciso com dois pés (1874), que
teve centenas de representações; Alves Rente e António Canedo,
seus contemporâneos, escreveram para uma infinidade de peças.
Um logar especial é porem devido ao portuense Domingos
Cyriaco de Cardoso, pela sua verve offenbachiana e pela extraor-
CÀRLOS DE SEIXAS
Retrato de Fr. Vieira, gravura de Daullé
 musica em Portugal
28 [
dinaria habilidade em ensaiar e dirigir. As popularissimas operas
burlescas Burro do Sr. Alcaide e Solar dos Barrigas, cuja musica
se allia com a mais pittoresca jovialidade aos versos do mallo-
grado poeta D. João da Gamara, constituem preciosos exempla-
res da genuina graça nacional. Cyriaco de Cardoso nasceu no
Porto em 1846, e quasi encerrou o século xix, fallecendo em
Lisboa a 16 de novembro de 1900.
Foram numerosos os
virtuosi notáveis durante o
século XIX. Não contando já
com Luisa Todi, cujos do-
tes de perfeitissima cantora
receberam os maiores tes-
temunhos de admiração em
Madrid, Paris, Londres,
Vienna, Berlim, S. Peters-
burgo e muitas cidades de
Itália e Allemanha desde
1777 até 1796; deixando
mais remotamente ainda o
organista e cravista José
António Carlos de Seixas,
que floresceu na primeira
metade do século xviii, abre
o caminho á brilhante plêia-
de do século passado o pia-
nista João Domingos Bom-
tempo, nascido em Lisboa, no anno de 1773, o qual partiu para
Paris em 180 1 e de lá passou a Londres, sendo muito apreciado
nessas duas capitães, onde residiu alguns annos, pela sua maravi-
lhosa execução. Voltou a Lisboa em 1820, e aqui fundou a pri-
meira sociedade de concertos, sendo também o primeiro director
do Conservatório; falleceu em 1842. As suas sonatas, concertos
com orchestra e outras composições, publicadas a maior parte
em Londres, são clássicas no estilo de Clementi.
O clarinetista José Avelino Canongia, nascido em Oeiras no
anno de 1784, saiu de Lisboa em 1806, esteve alguns annos
em Paris e Nantes, passou a Londres, percorreu varias cidades
da Itália e Allemanha, Espanha, dando concertos, exercendo a
J. D. BOMTBMPO
Gravura de VendramiDÍ, Londres i8i3
282
A musica em Portugal
sua arte; veio a Portugal em 1816, estabelecendo-se definiti-
vamente aqui em 1821. Era admirado pela belleza do som e
primor da execução. Fez imprimir em Paris quatro Concertos
e dois Themas cariados, para clarinete com acompanhamento de
orchestra.
Pela mesma época, primeira metade do século xix, brilhou
no Porto um flautista, João Parado, fallecido em 1842, mestre
muito considerado e autor de di-
versas composições para o seu
instrumento.
A familia Ribas, oriunda de
Espanha e estabelecida no Porto
desde o principio do século, pro-
duziu vergonteas de grande valor
na arte musical. Contam-se entre
as principaes: i.% João Antó-
nio Ribas, nascido no Ferrol em
1799, mas criado no Porto desde
a primeira infância, hábil em
quasi todos os instrumentos, es-
pecialmente no violino e no vio-
loncello; 2.*, José Maria Ribas,
irmão do precedente, que em Lon-
dres, onde residiu desde 1828 até
1841, chegou a ser o primeiro
flautista do seu tempo, publi-
cando-se naquella cidade muitas
das suas obras para flauta; 3.% Hypolito Ribas, filho de João
António, também Hautista considerado no Porto; 4.*, Nicolau
Ribas, violinista, que em Bruxellas estudou com Bériot.
Francisco Eduardo da Costa, nascido em Lamego, em 18 19,
mas criado no Porto, onde desenvolveu toda a sua actividade
artística, foi excellente pianista, organista e compositor inspirado,
principalmente de musica de igreja; cultivava com amor e profi-
ciência a musica clássica.
O autor das operas Arco de SanfAnna e Beatri^ de Portugal,
PVancisco de Sá Noronha, foi também festejado, principalmente
na America do Sul, como brilhante concertista no violino. Mas
o violinista português que mais justas homenagens recebeu no
FRANCISCO EDUARDO DA COSTA
Desenho de João Correia, i85o
A musica em Portugal 283
Brasil, quasi adquirindo ali foros de patrício, foi um filho do
Porto, Francisco Pereira da Costa. Estudou em Paris com Garcin
e Alard, tornando-se principalmente notável pela expressão e ma-
jestosa sonoridade com que tocava um adagio, pelo que grangeou o
epitheto de «rei da 4.* corda». Falleceu no Rio de Janeiro em 1890.
Não seria justo esquecer outro bom tocador de violino, natu-
ral do Porto, Augusto Marques Pinto, que falleceu em 1888.
Entre os lisbonenses mais notáveis do século xix compete um
dos primeiros logares a Guilherme Cossoul, que exerceu as func-
ções de maestro no theatro de S. Carlos, entre os annos de 1860
e 1878. Esteve em Madrid, Paris e Londres, fazendo-se applaudir
como violoncellista primoroso.
Um amigo e companheiro de Cossoul nos trabalhos artisticos
cumpre mencionar a seu lado: o fagotista Augusto Neuparth que,
indo á AUemanha em busca de mestre que o aperfeiçoasse, mal
encontrou quem o igualasse. Coevos de Neuparth e Cossoul, per-
tence o logar immediato aos irmãos Croners, António (flauta) e
Rafael (clarinete); Rafael Croner percorreu por mais de uma vez
a America do Sul, onde o festejaram enthusiasticamente ; apre-
sentou-se também no Palácio de Cristal de Londres, e ali desper-
tou um enthusiasmo raro na capital inglesa.
A brevidade obrigatória neste resumo só me deixa citar de
passagem mais alguns nomes; serão elles: os violinistas Ignacio
de Freitas (/J- i8i5), seu filho José Maria de Freitas (-J- 1867),
Caetano Jordani (-J- 1860), Angelo Carrero (f 1867), Narciso
Pitta (7 1893), Victor Wagner (•]- 1877), Garcia Alagarim (f 1897);
os violoncellistas João Jordani (-J- 1860), seu discipulo Sérgio da
Silva (•J- 1890) e o discipulo de Cossoul, Eduardo Wagner
(•J- 1889); os flautistas José Gazul (-;• i865) e João Emilio Ar-
royo (-J- 189(3); o clarinetista Carlos Campos (7 1888) ; o harpista
Galeazzo Fontana (^|- 1876); os pianistas Duarte dos Santos, que
se estabeleceu em Londres, onde gozou boa reputação de pro-
fessor (•;- i855), Guilherme Daddi (-J- 1887), Eugénio Mazoni
(Y 1899), José António Vieira (-J- 1894), Miguel Angelo Pereira
Já disse que as operas de portugueses rarearam desde o prin-
cipio do século, pela difficuldade em serem recebidas no theatro
italiano ; darei agora a lista das que lograram tal ventura, depois
de Marcos Portugal ter encerrado o período fecundo.
284 ^ musica em Portugal
1. Egilda di Provença, de João Evangelista Pereira da Costa,
1828».
2. // Sonâmbulo, de António Luis Miro, theatro das Laran-
jeiras, i835.
3. Atar, do mesmo autor, i836.
4. Virgínia, do mesmo autor, 1840.
6. Inês de Castro, de Manuel Innocencio dos Santos, 1839.
6. Cerco de Diu, do mesmo autor, 1841.
7. Bianca di Mauleon, de José Francisco Arroyo, theatro de
S. João no Porto, 1846.
8. Sampiero, de Xavier Migone, i852.
9. Mocana, do mesmo autor, 1854.
10. Beatri:{ de Portugal, de Sá Noronha, theatro de S. João
no Porto, i863.
11. Arco de SanfAnna, do mesmo autor, theatro de S. João,
1867, S. Carlos, 1868.
12. Tagir, do mesmo autor, theatro de S. João, 1876.
i3. Eurico, de Miguel Angelo Pereira, 1870.
14. L'Elisire di Giovine^a, do Visconde do Arneiro, 1876.
i5. Beatrii, de Frederico Guimarães, 1882.
16. Laureana, de Augusto Machado, 1884; Marselha, i883;
Rio de Janeiro, 1886.
17. I Dória, do mesmo autor, 1887.
18. Mário Weiter, do mesmo autor, 1898.
19. Frei Luis de Sousa, de Francisco Gazul, 1891.
20. D. Branca, de Alfredo Keil, 1888, com repetição em i88y.
21. Irene, do mesmo autor, 1896; Turim, 1893.
22. Serrana, do mesmo autor, 1899, com repetição em 1900;
Coliseu dos Recreios em Lisboa, 1901 ; S. João, no Porto, 1902.
AcTUAUDADE. — Começarci pelo ensino, visto que ainda d^elle
não tratei. O ensino da musica era noutros tempos ministrado
com profusão nas cathedraes, mosteiros e seminários, visando
particularmente a musica religiosa. Nos séculos xvi e xvii sobre-
saiu entre todas a escola de Évora, pela excellencia dos mestres
1 As que não tiverem indicação especial cantaram-se em Lisboa no theatro
de S. Carlos.
 musica em Portugal 285
que a regiam e dos discípulos que produziu. Depois tomou-lhe o
passo o Collegio dos Reis, seminário instituido em Villa Viçosa
pelo Duque de Bragança, D. Theodosio II. Á semelhança do
Collegio dos Reis estabeleceu D. João V em Lisboa, no anno de
1713, o Seminário Patriarchal, largamente dotado, e que veio a
ser a nossa escola superior de musica até aos principios do sé-
culo XIX.
Já em decadência, foi o Seminário absorvido pelo Conserva-
tório Real de Lisboa, criado em i835 por Almeida Garrett, sendo
seu coUaborador na parte musical João Domingos Bomtempo, que
ficou exercendo os logares de director da secção musical e pro-
fessor de piano. Muitos mestres notáveis, alem de Bomtempo,
teem ensinado nesta escola, taes como:
Canongia e seu successor Neuparth, dirigindo a aula de ins-
trumentos de palheta ; Migone, as aulas de piano e de composi-
ção ; João Jordani e Cossoul, a aula de violoncello ; Masoni, Frei-
tas e Alagarim, a aula de violino; José Gazul e João Emilio
Arroyo, a de flauta ; Ernesto Wagner, a de trompa, etc. Nume-
rosos e bons discipulos tem produzido durante os setenta e três
annos da sua existência, não se podendo, portanto, dizer com jus-
tiça que a historia do Conservatório carece de paginas honrosas.
Em varias épocas tem sido modificada a sua organização, e
sem duvida a melhor lei que o tem regido é a actual, decretada
pelo Ministro Hintze Ribeiro em 24 de outubro de 1901. Esta
lei conservou a divisão primitiva do ensino em duas secções, mu-
sica e declamação, cada uma com acção independente e director
privativo, ambas sob a gerência artistica e administrativa de um
inspector. Criou de novo um Conselho de Arte Dramática e ou-
tro de Arte Musical, corpos consultivos formados de professores
do Conservatório e de individues a elle estranhos, nomeados pelo
Governo. É actual inspector o membro da Academia das Scien-
cias, Eduardo Schwalbach, que elaborou a lei vigente e seu regu-
lamento interno, auxiliado por Augusto Machado, director da
secção musical e professor de canto.
O ensino de musica comprehende os seguintes cursos: rudi-
mentos ; solfejo preparatório de canto ; canto ; piano ; harpa ; vio-
lino e violeta ; violoncello e contrabaixo ; flauta ; instrumentos de
palheta ; instrumentos de metal ; órgão ; harmonia, contraponto e
composição. Alem doestes cursos estabelece a lei mais as seguin-
286 "^ musica em Portugal
tes classes, obrigatórias para os alumnos matriculados nas outras
aulas : canto coral, musica de orchestra, musica de camará, his-
toria da musica e litteratura musical, lingua italiana. O curso de
rudimentos é de dois annos; os de piano, violino e violoncello
dividem-se em curso geral e curso superior, com uma totalidade
de oito annos ; o curso de harmonia é de três annos, continuado
pelo de contraponto e fuga, que abrange mais quatro annos. Os
cursos de solfejo preparatório de canto, canto individual e collec-
tivo e canto theatral, constituindo o estudo completo do cantor,
abrangem uma totalidade de sete annos. Os cursos dos outros
instrumentos são de quatro, cinco ou seis annos, conforme o ins-
trumento.
Os professores estabelecidos pela lei são; dez de i.* classe,
com o ordenado annual de Soo^ooo réis ; dois de 2.* classe, com
400^000 réis; onze auxiliares, com iSo^r^ooo réis; quatro adven-
ticios, contratados temporariamente por quantia não superior a
240.^000 réis. O professor de lingua italiana vence a gratificação
de 200^000 réis. As classes de orchestra, camará e canto coral
são dirigidas por professores dos outros cursos, com a gratifica-
ção de i2o.rooo réis'.
Os logares de professores são dados por concurso publico ; a
lei estabelece, porem, uma excepção, dispensando de concurso e
deixando ao arbítrio do Governo a nomeação de «qualquer pro-
fessor estrangeiro que pela sua provada aptidão julgar necessário
para o aperfeiçoamento do ensino».
Uma applicação muito latitudinaria doesta excepção tem graves
inconvenientes.
O Conservatório é frequentado por trezentos alumnos em me-
dia, os quaes são leccionados por vinte e oito professores, alem
dos monitores nomeados pela escola em numero indeterminado.
Os livros de estudo são obrigatórios, approvados pelo Conse-
lho da Arte Musical, de cinco em cinco annos, ou antes de con-
cluído este prazo se o professor de qualquer curso justificar a
conveniência de ser substituída alguma das obras adoptadas.
A frequência dos alumnos é gratuita, exigindo-se-lhes apenas
o pagamento de pequenas propinas pela abertura e encerramento
A classe de historia c literatura ainda não funcciona.
A musica em Portugal 28?
de matricula. As provas de aproveitamento são dadas annual-
mente em exame publico, perante um jury de três professores e
dois membros do Conselho da Arte Musical, que dá a classifica-
ção de approvado ou adiado; dois adiamentos successivos na
mesma disciplina importam exclusão. Alem dos exames ha con-
cursos a prémios, e a admissão aos cursos superiores faz-se tam-
bém por meio de concurso.
Uma circunstancia se dá neste Conservatório que, sendo aliás
útil, não tem equivalente nos estabelecimentos congéneres do es-
trangeiro : é a admissão de examinandos não alumnos. A princi-
pal utilidade doesta medida é dar ás pessoas que estudam parti-
cularmente um certificado do seu aproveitamento.
O canto coral nas escolas primarias está consignado na lei de
instrucção publica desde 1878, mas a sua pratica é ainda rara e
imperfeita. Uma das causas doesta falta deve attribuir-se necessa-
riamente ás escolas normaes, onde os futuros professores não
praticam esta matéria nem lhe ligam a menor importância. Con-
sequência natural, sociedades orpheonicas também não ha, embora
se tenham feito tentativas em differentes épocas para vulgarizar
o canto harmonizado ; geralmente quando se canta nas escolas ou
nas sociedades populares é em unisono. Em compensação pullu-
lam por todo o país, até nas mais recônditas aldeias, as «socie-
dades philarmonicas», constituindo bandas de musica militar; são
também muito populares as «tunas» ou «sol-e-dós», conjunctos
formados principalmente por instrumentos de cordas dedilhadas.
Se passarmos da arte popular para a arte culta, reconhecere-
mos que a época actual é animadora e que os músicos em Portu-
gal acompanham de perto a evolução moderna.
Um artista exuberante de talento, que infelizmente deixou ha
pouco de existir, mas que pelo modernismo das suas tendências
pertence de direito á geração actual, Alfredo Keil, produziu obras
de incontestável valor em diversos géneros. Não só nas três ope-
ras acima mencionadas, que se cantaram em S. Carlos, mas na
cantata Patrie, no poema Orientaes, em outras composições com
orchestra e nos numerosos trechos publicados para canto e para
piano, encontra-se a flux trabalho de um musico activissimo, an-
sioso de produzir e sedento de gloria.
Mais valioso trabalho ainda elle deixou inédito entre a multi-
dão de composições que completou, mas não chegou a publicar,
288 A musica em Portugal
e também na grande quantidade de esboços por concluir, entre
os quaes a partitura de uma opera sobre a descoberta da índia e
outra intitulada Pedro o Ruivo. Alfredo Keil era artista de grande
coração e patriota devotadissimo, como provam os assuntos das
suas operas; muitas vezes se inspirou elle, com subida arte, na
musa nacional. Era seu desejo intimo criar a opera lyrica portu-
guesa, e nessa intenção tinha composto a Serrana sobre poema
português, escrito por Henrique Lopes de Mendonça.
Os actuaes compositores mais em evidencia, que pelas suas
obras mostram uma orientação moderna, são Augusto Machado,
Júlio Neuparth, Francisco Gazul e, recentemente, João Arroyo.
Augusto Machado possue bagagem artistica de considerável
valor, pois que, alem das três operas já mencionadas, tem apre-
sentado nos theatros nacionaes muitas operas cómicas, operetas e
outras peças com musica; concluiu uma opera italiana que espera
o favor de ser cantada em S. Carlos, e outra portuguesa que
brevemente apparecerá. Muitas das suas composições estão publi-
cadas. A tendência ou maneira — como se diz dos pintores —
que Augusto Machado tem manifestado é puramente francesa,
mas algumas vezes tem ido á fonte nacional buscar uma ou outra
nota característica.
Júlio Neuparth, professor de harmonia no Conservatório, tem
produzido musica syraphonica e de camará — entre ella um bello
quartetto — e peças theatraes portuguesas, alem de vários trechos
para canto e para piano, que estão publicados.
Francisco Gazul, também professor no Conservatório e ex-
cellente harmonista, fez da sciencia de compor uma occupação
principalmente profissional, e no exercício d'ella escreveu e arran-
jou durante alguns annos para o theatro da Trindade em Lisboa
enorme quantidade de musica com que ornou peças de todos os
géneros representadas naquelle theatro. Da parte mais artistica do
seu trabalho deve destacar-se a opera Frei Luis de Sousa, um
Libera-me que pode considera r-se entre nós raro exemplar de boa
musica religiosa, e alguns trechos symphonicos, dando testemunho
de sciencia technica.
João Arroyo surgiu ultimamente de improviso, como um quasi
milagre. Filho de José Francisco Arroyo (vid. acima este nome)
era muito conhecido pela sua brilhante carreira politica, mas de
musica apenas se sabia que a cultivava como amador nos mo-
 musica em Portugal 28q
mentos de repouso. Repentinamente, e começando por onde é
costume acabar, apresenta uma bella opera — Amor de Perdi-
ção — e consegue (não menor milagre) fazê-la cantar em S. Car-
los, com o maior êxito e unanimes applausos, durante duas épo-
cas consecutivas, em 1907 e 1908. O Amor de Perdição foi a
primeira opera de compositor português que se cantou em
S. Carlos no século xx.
Quanto aos compositores que actualmente trabalham para os
theatros populares, são mais notáveis : Joaquim Delnegro, que de
óptimo trompista se fez autor e arranjador de musica para toda
a qualidade de peças theatraes ; Filipe Duarte, autor de duas fes-
tejadas operetas, a Lancha Favorita e o Oito, esta ultima com
letra de D. João da Camará ; Luis Filgueiras, Dias Costa, Calde-
ron, etc.
Cumpre ainda notar entre os compositores : Frederico Guima-
rães, autor da opera Beatri\; o pianista António Soller, cujas obras
publicadas para piano são muito numerosas ; o pianista Oscar da
Silva, também autor de varias obras publicadas para o seu instru-
mento; o organista Costa Pereira, que se dedicou á musica religiosa;
António Taborda, mestre da banda de musica da Guarda Munici-
pal de Lisboa ; e outros que a brevidade me não deixa mencionar.
Os autores de valsas e obras congéneres para piano são mui-
tos e as suas obras contam-se por centenas ; entre elles sobresaiu
Fabião Figueira, ha pouco fallecido, cujas valsas tiveram voga.
Ultimamente teem saido do Conservatório alumnos com apro-
veitáveis aptidões, os quaes teem feito promettedores ensaios;
mas a carreira de compositor não offerece estimulo para com-
mettimentos de grande monta, que podem considerar-se verdadei-
ras excepções, exigindo desafogo nos recursos materiaes. A luta
pela vida obriga a rastejar quem não pode voar.
Executantes de primeira ordem temo-los em José Vianna da
Motta e Alexandre Rey CoUaço ; sobre o valor de ambos não ha
que dizer, tão provado elle está e tão grande é. Resta só frisar
que nas suas producções vibram muitas vezes as cordas da lyra
popular, ennobrecendo-a com arte superior.
Francisco Bahia, professor no Conservatório a par de Collaço,
é também pianista de muito merecimento.
Teria logar á frente dos primeiros pianistas portugueses o
decano d'elles, Arthur Napoleão, natural do Porto, se o Brasil
2QO ^ musica em Portugal
não o considerasse de ha muito seu glorioso e dilecto filho
adoptivo.
E outro português illustre residente em país estranho, com
direito a honrosa menção nesta fugitiva galeria dos nossos prin-
cipaes músicos, é o primoroso cantor Francisco de Andrade, tão
applaudido na Allemanha e tão estimado na corte de Berlim.
Para concluir: Bernardo Moreira de Sá é um nome que a
justa critica manda não esquecer; litterato, mathematico, violi-
nista e compositor, tem, com as suas múltiplas aptidões, prestado
os maiores serviços á cultura da arte musical no nosso país.
E como Moreira de Sá no Porto, Michelangelo Lambertini
em Lisboa, com o seu enthusiasmo artístico, illustração e saber
technico, trabalha também devotadamente no mesmo sentido.
Lisboa, 1908.
Ernesto Vieira.
índice
Pag.
Advertência preliminar — por António Arroyo v
O PAÍS PORTUGUÊS — O solo, O cHma e a paisagem — por António Arroyo.
O Minho I
Trás-os-Montes ... 1 1
O Douro i5
As Beiras 24
A Serra da Estrella 3o
Aveiro, Coimbra 3ó
Estremadura 43
Cintra 47
O Tejo e Lisboa 53
Alemtejo 60
Algarve 66
O POVO PORTUGUÊS — pof Antonio Arroyo 73
Praias e estações thermaes — Portugal, estação de inverno — por An-
tonio Arroyo 101
As praias portuguesas io3
Aguas e estações thermaes 119
Rheumatismo e doenças da pelle 120
Doenças da pelle 128
Doenças das vias digestivas i3i
Doenças diversas ... 133
2Q2 Índice
Pag.
Doenças das vias respiratórias e arthritismo iS;
Aguas purgativas i38
Portugal, estação de inverno iSq
A HABITAÇÃO EM PoRTUGAL — por João Barreira 147
Arte decorativa portuguesa — por Joaquim de Vasconcellos.
l 17Q
II 188
A ARCHiTECTURA EM PoRTuGAL (Breve noticía sobre) — por João Barreira 209
OuRivEZARiA PORTUGUESA — Estudo historico (até fins do século xv) —
por Joaquim de Vasconcellos.
I. — Arte pre-historica e proto-historica 233
II. — Primeiro periodo christão e Idade Media (até i5oo) .... 249
Conclusão : Inventários. Facilidades para o Estudo 259
Fontes de consulta 264
A MUSICA EM Portugal — por Ernesto Vieira.
Preliminar 271
Século XVIII 273
Actualidade 284
Erratas principaes 2q3
ERRATAS PRINCIPAES
Pag. 68 — linhas 23 e 24 — em logar de : vem ajuntar-se a palmeira do
esparto — ler: vêem ajuntar-se a palmeira e o esparto.
Pag. 119 — linha 17— em logar de: mais